Uma viagem ao fim do mundo

 

 

 

 

 

 


ADELTO GONÇALVES


Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


Ensaios mostram como a expedição de Fernão de Magalhães/Juan Sebastián Elcano
foi o ponto de partida para o atual processo de globalização

 

I

O Rio de Janeiro foi o primeiro porto visitado nas Américas pela expedição empreendida pelo navegador português Fernão de Magalhães (1480-1521) e pelo espanhol Juan Sebastián Elcano (1476-1526) em 1519-1522, que entraria para a história como a primeira viagem de circum-navegação mundial.  Para celebrar esse acontecimento de cinco séculos que trouxe uma nova visão do mundo e comprovou que a Terra é redonda, foi realizado o Seminário Internacional do 5º Centenário da Primeira Volta ao Mundo, nos dias 12 e 13 de dezembro de 2019, no auditório do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, com palestras de historiadores do Brasil, Espanha, Portugal, Argentina, Chile, Peru e Uruguai e o apoio do Instituto Camões, de Lisboa, e do Instituto Cervantes, de Madrid, e dos consulados desses países.

O excepcional resultado está num livro de mais de 500 páginas, organizado pelo professor doutor Paulo Roberto Pereira, diretor científico do seminário, e que reúne as 14 conferências ministradas naquela ocasião. Trata-se de obra imperdível para quem quiser conhecer a magnitude do impacto econômico, político e cultural da expansão europeia que resultou no planeta que temos hoje, pois traz reflexões que estabelecem pontes entre o passado e o presente, revisitando a história sob uma perspectiva contemporânea, a partir daquela iniciativa que, a rigor, constituiu o ponto de partida para o atual processo de globalização.

A expedição espanhola, comandada por Fernão de Magalhães, composta por cinco navios e mais de 200 homens, saiu de Sevilha em agosto de 1519 e foi além da costa do Atlântico Sul, que já havia sido percorrida acidentalmente por Pedro Álvares Cabral (1467-1520) e, depois, por Gonçalo Coelho (1451-1512) e Américo Vespúcio (1454-1512) até o Rio de Janeiro. A este local, conhecido na cartografia da época como Rio de Janeiro ou Baía da Guanabara, nomes dados nas duas viagens feitas à região por Américo Vespúcio para fundar a feitoria do Rio de Janeiro/Cabo Frio, o navegador Fernão de Magalhães preferiu chamar de Baía de Santa Lúcia por chegar no dia da santa católica.

Aqui a expedição chegou a 13 de dezembro de 1519 e permaneceu treze dias para seguir adiante, valendo-se da informação de que, em 1515, uma armada comandada pelo espanhol Juan Díaz de Solís (1470-1516) já chegara ao Rio da Prata, o limite até então conhecido. Seus comandantes tinham a quase certeza de que, seguindo adiante, haveriam de encontrar uma passagem para a Ásia, com possibilidade de se chegar à Índia e à China.

Com a morte de Magalhães nas Filipinas, coube a Elcano fazer a viagem de volta por meio do caminho marítimo do Cabo da Boa Esperança, concluindo o trajeto que confirmava que a Terra era redonda com a chegada a Sevilha, a 6 de setembro de 1522, acompanhado por apenas 18 argonautas.

II   

Entre as conferências ministradas naquele seminário, uma que se destaca por sua abrangência é aquela feita pelo professor doutor Arno Wehling, da Academia Brasileira de Letras (ABL) e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que discute os desafios jurídicos da expedição de Fernão de Magalhães. E mostra que as divergências entre Espanha e Portugal quanto à soberania no mundo que se “descobria” seriam solucionadas de forma extrajurídica, depois da expedição, em 1529, em Saragoça, encontrando-se uma solução política: mediante uma indenização de 350 mil ducados, o rei de Portugal adquiriu do rei Carlos V os eventuais direitos da Coroa espanhola à região das ilhas Molucas, um arquipélago que hoje faz parte da Indonésia

Na impossibilidade por questão de espaço de se resumir aqui cada uma das conferências, deve-se lembrar, entre outras, a conferência ministrada pelo professor doutor Antônio Filipe Pimentel, da Universidade de Coimbra, que destaca as transformações sofridas pela Lisboa quinhentista à época da juventude de Fernão de Magalhães, sob o reinado de D. Manuel I (1469-1521), especialmente com a abertura da Rua Nova dos Mercadores.

Já o professor doutor José Manuel Garcia, da Academia Portuguesa de História, autor de recente biografia de Fernão de Magalhaes, em seu texto, ressalta a trajetória do descobridor do estreito que separa o oceano Atlântico do Pacífico e que hoje leva o seu nome. O estudo demonstra a cuidadosa preparação da viagem, com a encomenda de mapas a cartógrafos portugueses, o que permitiria ao navegador encontrar o estreito que o levaria às ilhas Molucas.

Outra conferência que se destaca por sua profundidade e pesquisa é aquela em que a professora argentina María Luz González Mezquita, da Universidade Nacional de Mar del Plata, faz referência a Antonio Pigafetta (1492-1531), marinheiro, geógrafo e escritor vêneto, que fez parte da expedição e foi um dos 18 que retornaram com Elcano a Espanha. Pertencente a uma família abastada e versado em astronomia, geografia e cartografia, Pigafetta fez um alentado relato da viagem em que se sobressai uma descrição dos patagões.

Nesse relato, descreve o contato com um homem de estatura gigantesca, que estava numa praia quase nu e cantava e dançava ao mesmo tempo. “Este homem era tão grande que nossa cabeça chegava apenas a sua cintura”, conta Pigafetta, que inicialmente teve de negociar sua participação na expedição como passageiro pagante, mas que depois ganhou a confiança de Magalhães e serviu como intérprete, cartógrafo e escrivão.

III

Já a professora doutora Margarita Suárez, da Pontifícia Universidade Católica do Peru, observa, em seu estudo, que a circum-navegação de Magalhães-Elcano foi crucial para o entendimento do mundo, com a constatação de fenômenos naturais e sociais próprios da América e dos novos mundos que se iam encontrando, mas não deixa de ressaltar que o acontecimento também esteve ligado intimamente à fantasia e fábulas.

Por sua vez, o professor doutor Salvador Bernabéu Albert, da Escola de Estudos Hispano-Americanos, da Espanha, estuda os principais acontecimentos da travessia, revendo temas como a fome generalizada ocorrida durante a viagem e as doenças que atingiram os marinheiros, bem como a permanência dos navegadores nas ilhas Marianas, no Pacífico, que ficam próximas das Filipinas e do Japão, além de abordar os objetivos de Magalhães para além das ilhas Molucas, sem deixar de destacar o espírito impetuoso do grande navegador que não hesitou em mandar matar selvagens e queimar suas casas, depois de um roubo de um esquife num dos navios da expedição.

Do livro, ainda constam conferências dos professores doutores Rafael Sagredo Baeza, do Chile, Guilherme Giucci, do Uruguai, María Saavedra Inajara, Carlos Martínez Shaw e María Dolores Higueras Rodríguez, da Espanha, do capitão de navio José María Blanco Nuñez, da Espanha, do capitão de fragata Jorge Semedo de Matos, de Portugal, e do almirante de esquadra Marcos Augusto Leal de Azevedo, do Brasil.

Por fim, o leitor ainda encontrará um balanço final do seminário em que o professor doutor Paulo Roberto Pereira comenta cada uma das conferências, confirmando “a diversidade de visões sobre esse acontecimento capital da história da humanidade”.

IV