Uma poética de fragmentos

 

 

 

 

 

 

 

 

GLEDSON SOUSA


Gledson Sousa. Nascido em Juazeiro do Norte em 1972. Reside em São Paulo desde 1991. Formado em História, com especialização em História da Arte. Tem trabalhos publicados no site Triplov (www.triplov.com), e nas revistas eletrônicas MUSA RARA (https://musarara.com.br/) e RUÍDO MANIFESTO (https://ruidomanifesto.org/), além dos seguintes livros publicados:  O Ovo – Meditações Sobre a Semântica do Mundo. São Paulo: Ed. Janos, 2004; A Iconografia Interior – Kandinsky e a Teosofia. Lisboa: Ed. Apenas Livros, 2014; O Livro das Novas Mutações ou O Oráculo da Natureza. Lisboa: Ed. Apenas Livros, 2014; Fantasmas – Contos. Rio de Janeiro: Editora Jaguatirica, 2018; Pôr a Poesia – Seguido de Espiral – Ensaio/poema.  São Paulo: Editora Córrego, 2020. A Mimesis Mágica – Poemas – São Paulo: Editora Córrego, 2022. Poemas de Um País Esquecido – Plaquete da Coleção Poetas da Gangue – São Paulo: Editora Córrego, 2022. Jaguar, TrovãoPoemas. Diadema: Editora Clóe, 2024 .O Que Vem Depois – Contos. Rio de Janeiro: Editora Jaguatirica, 2024. Além de participação em obras coletivas: Presença do Feminino no Relato dos Viajantes, no livro Desigualdade no Feminino. Lisboa: Apenas Livros, 2009; Uma Espiritualidade Nietzschiana?, no livro A Religião que Anda no Ar. Lisboa: Apenas Livros, 2014.Poeta, prosador e ensaísta.


 

A linguagem poética é a linguagem do humano antes da queda, diga-se de passagem, a queda na razão, essa razão de dominação, que se considera a primeira e última instancia de medida do que seja humano. Talvez a poesia seja a linguagem da própria mente e da totalidade do que somos antes do ego, o próprio pensamento em sua essência.

E como sendo o próprio pensamento em sua essência, a linguagem poética tem a ver com o respirar: inalamos, exalamos, retemos e expiramos poesia; em tempos sufocantes, nossa respiração é entrecortada, o ar que entra precisa ser retido e condensado e as palavras às vezes se concentram no essencial ou se fragmentam.

             É pensando numa poética de fragmentos que terminei a leitura do livro O Cão Com Ornamentos Delicados (Diadema: Editora Clóe, 2024), último livro publicado pelo poeta e editor Marcelo Torres: sem esconder sua dívida para com João Cabral de Melo Neto, de quem o título de certa forma homenageia o mítico livro O Cão Sem Plumas, diferente do cão cabralino, que segue seu fluxo de rio e, pensando na nossa metáfora respiratória, de uma longa exalação, a poesia de Marcelo Torres é rigorosamente fragmentária, mas o fragmento aqui não é o incompleto, mas o pensamento em elipse, e a respiração é entrecortada.

Sinais dos tempos e da sufocação que o poeta vive? O poeta é ele mesmo um cão, como aparece naquilo que chamarei de fragmento XXV (mas que pode ser lido como o poema XXV ou a vigésima quinta parte da primeira parte do livro, chamada Boca em Fogo):

(…) O cão é um poeta

Ou redemoinho

Acredita na mágica,

Na didática dos infernos.

O Cão, quando volta

Para casa, não espera

Gestações nucleares

Se motiva com o outro acenando

Gruda em suas pernas

Para demonstrar alegria

             Nunca havia pensado no cão como representação do poeta: na longa imagética associada ao cachorro ao longo dos tempos, os cães já foram associados aos mortos (como Cérbero) ou como guia dos mortos (como Anúbis) ou como representação da amizade ou do próprio instinto (potência), principalmente como potência sexual; essa imagem do cão/poeta que “Se motiva com o outro acenando” é ao mesmo tempo comovedora e triste, porque traduz a solidão própria ao ato poético, que o tempo todo busca ser uma forma de comunhão e ponte que, na maior parte das vezes, lança o poeta em seu próprio isolamento, por aquilo que não pode ser traduzido, mesmo na experiência poética, da solidão essencial da existência humana.

A poética se forma no intrapsíquico, e muitas vezes aquilo que alguns tomam como “rigor formal” é na verdade censura ou esterilidade; não é o caso do Marcelo Torres: aqui, o fragmento e a cesura expressam na verdade a angústia, a respiração entrecortada e o silêncio, não de uma quietude estática, mas de uma contemplação ativa:

II

Quando começarem a morrer

Os neonazistas, me avisem

Quero ornamentar a rua com flores

De laranjeiras, plantar pés de mangueiras

Fazer um rito

Para as almas podres serem presas

Em fossos de lava

             Aqui, o indesejado ganha nome (neonazistas) e o poeta se situa no olho do furacão da contemporaneidade, ele não se isenta e não silencia: para os que fazem uma política que celebra a morte, só a morte pode ser desejada.

Poeta-leitor, como todos os bons poetas, além de editor da Clóe, Marcelo Torres numa operação antropofágica, reelabora a essência da Odisseia na terceira parte do livro: Ítaca + Palmares + Amores = Uma Aventura, onde os sinais do passado e do presente se fundem e onde a história se transforma também numa aventura interior, mesclando à metáfora do regresso, da volta para casa com as lutas e a afirmação num mundo pequeno, comezinho, menor que o poeta:

Depois de tanto

Navegarmos

Em terras

Estranhas

 

Com as entranhas

Como musgos,

Ladrões pintores,

Poemas lidos em sebos,

 

Grafitamos nos cômodos

:

Ítaca, meu amor

Nos fodemos lá fora

             Há um eco antropofágico, ou mera coincidência, da Coisa Nº 8 – Navegação, bela composição do maestro Moacir Santos, que começa com o verso: Depois de tanto procurar/ Motivações, explicações / Depois de tanto palmilhar/ Desvios e bifurcações[1]. Como diria Guimarães Rosa, Na Panela do pobre, tudo é tempero. Coincidência ou reelaboração, o fato é que Marcelo Torres, com a humildade que lhe é própria, não esconde os poetas de sua devoção, nem que busca alcançar uma linguagem que esteja à altura das reverberações que esses poetas provocam, como na bela homenagem que faz ao poeta VIVO Celso de Alencar, que do alto da sua marginalia, deve ter se sentido honrado:

VII

Poeta de meias vermelhas,

Cachecol de pudim,

Passei uma semana contigo

De mãos laçadas.

Língua afamada

No teu primeiro inferno,

Cheio de saliva alheia

Das jovens moças

Trabalhadeiras,

Das casas de tijolinhos

Que só abrem depois das 20hrs

             Aqui aparecem a referência ao livro Primeiro Inferno (de Celso de Alencar), à indumentária peculiar do poeta, ao imaginário celsiano dos bas-fonds e humanidade das pessoas simples, à irmandade entre os poetas: bela maneira de dizer que o poeta está vivo, que a poesia está viva e é compartilhada e digerida até o ponto de sublimação.

Marcelo Torres é um poeta que se aproxima de sua “forma”; explico-me: apesar da vasta experiência, ele é um poeta em ebulição que se aproxima das bodas entre o querer e o fazer; poderia usar a expressão kandinskyana “necessidade interior” para falar dessa fusão ideal entre forma e conteúdo, não fora a natureza restritiva dessa expressão, que traz em si a privação e não a liberdade criadora; as bodas com a palavra do qual Marcelo Torres se aproxima é justamente a assunção de uma certa liberdade criadora, de um ajuste sutil entre o sentir e o pensar, de um deixar-se respirar.

Bons poetas não são ‘rigorosos’, são amorosos: o rigor lembra o trato militar com a palavra e o que a poesia pede é magia sexual, como bem lembrou Breton: “A poesia se faz sobre os lençóis…”

Esse cão com ornamentos delicados mostra suas caras e não renega nenhuma delas: carente, amoroso, de fazer amor com as galáxias e festa com a morte dos fascistas, de retornar a uma Ítaca sempre devastada enroscando-se nas pernas dos leitores, esse amigo, esse irmão, esse distante e sempre outro, para o qual a experiência se traduz em abertura, mas não se resolve em comunhão.

Oxalá o cão nos a leve a outros rios, fragmentados ou não, mas sempre cheios da alta tensão poética, que só o fogo da verdadeira poesia traz.

 

 

[1] A Coisa Nª 8 – Navegação, foi interpretada magistralmente por Milton Nascimento no disco Ouro Negro, que reúne as principais composições do maestro Moacir Santos.