Frei BENTO DOMINGUES, O.P.
- É conhecido o ditado latinosi vis pacem, para bellum, isto é, se queres a paz, prepara-te para a guerra. De facto, a paz acontece como um pequeno interregno entre guerras. Segundo uma estimativa, bastante rigorosa, entre a II Guerra Mundial e 1992, contaram-se 150 guerras e 26 dias de paz[1]. Na Europa, depois de 1945, tentou-se, com algum êxito, contrariar essa loucura: se queres a paz, tens de a cultivar.
Paulo VI, na sua visita histórica à ONU – a primeira de um Papa –, a 4 de Outubro de 1965, exprimiu e repetiu o grande desejo dos povos: nunca mais a guerra! É a paz que deve guiar o destino dos povos e de toda a humanidade.
Com esse espírito, em Dezembro de 1967, instituiu o Dia Mundial da Paz: «Dirigimo-nos a todas as pessoas de boa vontade, para as exortar a celebrar o Dia da Paz, em todo o mundo, no primeiro dia do ano civil, 1 de Janeiro de 1968. Desejaríamos que depois, cada ano, esta celebração se viesse a repetir, como augúrio e promessa, no início do calendário que mede e traça o caminho da vida humana no tempo, para que seja a Paz, com o seu justo e benéfico equilíbrio, a dominar o processar-se da história no futuro.
«Pensamos que esta proposta interpreta as aspirações dos povos, dos seus governantes e das entidades internacionais que intentam conservar a Paz no mundo; das instituições religiosas, tão interessadas no promover a Paz; dos movimentos culturais, políticos e sociais que fazem da Paz o seu ideal; da juventude, em quem mais vivas estão as perspectivas de caminhos novos de civilização, necessariamente orientados para um seu pacifico desenvolvimento; dos seres humanos prudentes que vêem quanto a Paz é necessária e, ao mesmo tempo, quanto ela se acha ameaçada».
Este dia destina-se a que nunca seja esquecida uma outra iniciativa do ano anterior. Na célebre Encíclica Populorum Progressio (1967), Paulo VI tinha lembrado que a causa da paz está intimamente ligada à causa da justiça: «Ultimamente, no desejo de responder ao voto do Concílio e de concretizar a contribuição da Santa Sé para esta grande causa dos povos em via de desenvolvimento, julgamos ser nosso dever criar entre os organismos centrais da Igreja, uma Comissão pontifícia encarregada de suscitar em todo o povo de Deus o pleno conhecimento da missão que os tempos atuais reclamam dele, de maneira a promover o progresso dos povos mais pobres, a favorecer a justiça social entre as nações, a oferecer às que estão menos desenvolvidas um auxílio, de maneira que possam prover, por si próprias e para si próprias, ao seu progresso; Justiça e paz é o seu nome e o seu programa. Pensamos que este mesmo programa pode e deve unir, com os nossos filhos católicos e irmãos cristãos, as pessoas de boa vontade. Por isso, é a todos que hoje dirigimos este apelo solene a uma acção organizada para o desenvolvimento integral do ser humano e para o desenvolvimento solidário da humanidade» (nº5).
O desejo de Paulo VI, na fidelidade à herança deixada por João XXIII (Pacem in Terris, 1963), tem sido acolhido por todos os seus sucessores, segundo o estilo e sensibilidade de cada um e de cada época. Este ano, Bergoglio celebra o 56º Dia Mundial da Paz, em cruel tempo de guerra. Contrariando o individualismo dos poderosos, continua a insistir que ninguém pode salvar-se sozinho. Recomecemos, a partir da Covid-19, a traçar, juntos, novos caminhos de paz.
Nasceu daí uma persistente cultura da paz. Para continuar a desenvolver essa indispensável cultura, precisamos de manter o coração aberto à esperança. Não nos podemos fechar no medo, na dor ou na resignação; não podemos ceder à dissipação nem desanimar, mas pelo contrário, a comportarmo-nos como sentinelas capazes de vigiar, vislumbrando as primeiras luzes da aurora, sobretudo nas horas mais escuras.
É frequente a tentação de fugir à complexidade dos tempos que vivemos, cedendo às ideologias mais extremistas, aberrantes e simplistas. Não podemos esquecer como a pandemia atingiu pontos sensíveis da ordem social e económica, pondo a descoberto contradições e desigualdades que só podem ser resolvidas em termos democráticos, no respeito pelos direitos e deveres humanos.
- O empenhamento na construção da paz renasce do Natal, no canto simbólico dos anjos:glória a Deus e paz na Terra – desejo de Deus a inspirar todas as iniciativas, todos os gestos de todas as pessoas de boa vontade de todos os povos, crentes e não crentes. O Papa Francisco, já no dia 14 de Dezembro, fez um apelo aos cristãos para que fizéssemos todos um Natal mais humilde, com presentes mais humildes e enviássemos o que foi poupado para as vítimas das destruições na Ucrânia.
São incontáveis as respostas a este apelo, com os destinos mais diversos e nas comunidades mais diferentes, para não dissociar o Natal da partilha do acolhimento aos mais isolados, dos dons recolhidos em todas as situações e oferecidos aos mais necessitados. É essa a verdadeira partilha da alegria do Natal. É essa a melhor forma de desejar um bom Natal e um bom Ano Novo. Não é por acaso que o Dia da Paz é o do começo de cada ano, programa do ano inteiro.
- Estamos na oitava do Natal e, no calendário litúrgico, celebra-se a Mãe deste Dia ou, como escreveu Carmen Garcia, numa deliciosa crónica sobre o presépio desfalcado,em Belém, uma mulher chamada Maria tornou-se Mãe do Mundo.
A primeira leitura é recolhida do livro bíblico dos Números (6, 22-27), mas inscreve esse belo texto de bênção sobre Israel, no contexto novo da universalidade cristã: O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te favoreça! O Senhor volte para ti a sua face e te dê a paz! Deveria ser este o desejo universal para este Novo Ano.
A segunda leitura é da ousadia de S. Paulo aos Gálatas (4,4-7): «Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher e sujeito à Lei, para resgatar os que estavam sob o domínio da Lei e nos tornar seus filhos adoptivos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: «Abbá! Pai!» Assim, já não és escravo, mas filho. E, se és filho, és também herdeiro, por graça de Deus».
Nesse Espírito de intimidade divina, Paulo encontrou a verdadeira raiz da cultura universal da paz: não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus[2]. É nessa onda universalista que o Papa Francisco nos chama a enfrentar, com responsabilidade e compaixão, os desafios do nosso mundo.
Um novo ano não é uma página em branco. Está marcado por um passado, que não pode ser um destino. É o verdadeiro desafio para a imaginação criadora de esperança.
[1] Cf. Fernando Gil, Acentos, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, p. 305
[2] Gal 3, 28
Público, Janeiro 2023