Uma cara de fado para toda a gente

 

 

JOSÉ RIBEIRO MARTO


A D. Irina cantava fados a gente conhecida e particularmente aos vizinhos. A transeuntes não sei. A mim, cantou-me duas ou três vezes, quando me encontrava a caminho de casa, vinha ela do supermercado. Pedia – me para a ajudar a carregar dois sacos que não pesavam nada e a conversa desgarrava para o fado. Eu seguia a D. Irina a par, como se artista e espectador se reunissem num palco. Acompanhava –a com os sacos na mão e ia ouvindo aquela voz despedaçada por amores traídos, ciúmes incalculáveis, honras desfeitas, acertos de contas, brios recuperados, enfim, fados de outros que ela fazia seus.

A senhora parava para dar alento à voz e, indiferente ao meu tempo, puxava pela vantajosa caixa torácica que se sobressaltava com tremuras e repelões. Num instante, um fadinho ligava-se a outro num estribilho bem batido de peito e esganiço de voz. A senhora não cantava muito alto, mas fazia render bem tempo e fado. A sua voz vinha das entranhas, era figadalmente amorosa do nada, escura e tragicamente apaixonada pelo vazio de passados. Na verdade, não era tanto o sentimento passado ou mesmo postiço que soava naquela garganta, era a impossibilidade natural daquelas cordas vibrarem e fazerem alguma justiça ao fado. Que importa!? O fado também é isto, cheguei a pensar. O fado também é este grande desacerto com a vida, esta lamúria que vem lá do fundo e na presença de ouvinte teima em concertar aquelas palavras fingidas, vencidas pelo tempo, mas interpretadas e impostas aos outros. Se não houver acaso, cria-se a circunstância: ajude-me aqui, não leva pressa, pois não?

Nas minúsculas paragem de tempo, a D Irina, a cara de riso para toda a gente, a minha quase vizinha da rua Farinha Beirão, acrescentava que não se podia ser sorridente para toda a gente. Era um desabafo interesseiro, um pequeno introito para dar aso à confissão. Eu parecia-lhe o interlocutor certo. Mais do que outros vizinhos ou pessoas de passagem!? Nessas vezes, a D. Irina levava a mão a um coração de ouro no fio dobrado, aquilo abria –se num maquinismo estranhíssimo, repentino, obra de ourives, falecido entretanto, disse-me uma vez. Naquele gesto súbito, eu que visse, surgia o rosto dela, depois o da filha, uma fotografia da primeira comunhão. Fotografias minúsculas!  Um dia, veio a lembrança da madrinha da filha, um coirão, acrescentou uma vez, mas segurou o epíteto com o perdão da palavra. Até lhe tinha feito um fado, a ela e ao pai da filha, aos dois, um fado de dor, um fado inspirado naquele jantar que era iluminado por um candeeiro que vinha lá de cima do teto deixar cair a luz na mesa da sala de jantar. Num relance entre eles, ela desconfiou de um olhar que veio iluminar outros relances já passados e perguntou confrontou, concluiu.

Deus e o fado, em estreita aliança, tinham ajudado a D. Irina a ultrapassar o caso e a pô-la em fuga da loja de facas, navalhas e canivetes na avenida Almirante Reis. É que ela ouvia vozes noite e dia! Vozes vindas de fora e de dentro. Quantas vezes não tinha ido ao trinta e dois da Avenida Almirante Reis! Quantas!? O Diabo atentava: Irina leva esta, Irina esta, Irina corta a direito, mas vinha a outra voz, em socorro, ela sentia as vozes no corpo e na  alma . Ela parava e ouvia-se: Irina canta o fado, Irina não cedas, canta a deus. Não tenhas vergonha, não te sintas culpada, não cedas à tentação rápida dos criminosos. A um crime não se responde com outro crime!

Eu ouvia este relato ou outros parecidos, já a acelerar o passo, com os sacos de plástico na mão, parava dois passos adiante e via -a de penteado curto, louro ,impecável, a pele muito branca, muito fina, enrugada apenas no duplo pescoço. Uma película pintalgada de manchas de sangue, se um bisturi a puxasse, descolava.

Vinha às vezes  a história da filha emigrada em Espanha. Outra cara de riso para toda a gente. Era secretária numa multinacional, umas vezes vivia no centro de Madrid e a empresa ficava nos distantes arredores, comboios de horas e horas, outras vezes era o contrário, mas eu já não ouvia , porque fado e percursos distantes , emaranhados de linhas ferroviárias não se coadunavam com o meu caminho . A filha surgia nos relatos de pausa de fado que se cruzavam com dificuldades incalculáveis e trágicas na multinacional, onde a portuguesa punha ordem a um frenesim inexplicável de combate ibérico. Os portugueses estavam prestes a ser vencidos , mas havia  sempre o golpe de salvação da filha.

Quem não gostava daquela filha?

Eu subia a  rua  Garcia Rosado cheio de fado . De repente chegava o Senhor Abrantes que protestava:  lá  vens tu a cansar as pessoas… Com fados, com fados!

O senhor Abrantes era o seu segundo marido, não era uma cara de riso para toda a gente como ela , mas ria-se bem, de vez em quando, disse-me uma vez  . O homem lá levava os sacos. Eu desandava , abria a porta , antes de entrar no prédio ainda os via a caminhar a par, muito devagar , muito devagar na  rua Garcia Rosado e imaginava as escadas íngremes do terceiro andar da rua  Farinha Beirão.

O tempo passou e eu passei a vê-la lá no alto, à janela, onde me gritava a custo para me dizer adeus e atirar um beijinho que eu  retribuía naturalmente. Já não vinha à rua.

Talvez eu fosse o espectador de fado  preferido . Talvez o sofrimento encenado de fado antigo e oco de honras perdidas, à distância de tantos anos, já não sangrasse nem verdade nem traição , e só o alto da janela   fosse solidão  absoluta  e  resignação  de quem se sente  impossibilitada  de vir à rua  desafogar mágoas   às pessoas  e aos vizinhos  mais próximos  particularmente.

 José Ribeiro Marto