MARIA ESTELA GUEDES
Lido por Maria Azenha no Encontro promovido pela Ordem de Ourique
para homenagem a Pinharanda Gomes.
Casa das Monjas Dominicanas . Lisboa . 12.05.2018
Dois velhos bem velhos
Ele ainda mais do que ela
Viviam numa casa de lousa
Na companhia da cadela.
A quinta, nos altos socalcos do Douro
Via em baixo raiar o rio
Nas manhãs de neblina fria.
Refletia a água
Amendoeiras em flor, vinhas e
Pomares de espinho.
Os velhos
Um dia
Fecharam a porta do lagar
Deixando presa lá dentro a amada cadela.
Já ambos surdos
Não ouviam ganidos nem latidos
Mesmo quando passavam pela gateira
Atrás da qual chorava ela.
Passou um dia, dias passaram.
Aflitos
Os velhos buscavam o animal
Preso pela língua mais ainda
Que pela porta do lagar.
Então a cadela discorreu: se não me ouvem
Preciso de dizer que estou aqui
Trocando o som
Por diverso sinal.
Na base da porta luzia
Buraco onde não cabia inteira
Mas a cauda, se a enfiasse na gateira
E a pusesse a acenar na rua
A atenção dos velhos chamaria.
Dia após dia com o rabo acenou
Até os velhos o verem
E comovidos libertarem
A esfomeada companheira.
Passou-se este caso em Ligares
Terra de Guerra Junqueiro
Junto à Quinta da Batoca
Onde viveu o poeta
Além dos velhos já surdos
E da caudófona cadela.
Maria Estela Guedes
Folhas de Flandres
1ª ed. – Lisboa : Apenas Livros, 2014