Uma breve reflexão sobre o ateísmo

JOSÉ ROBERTO BAPTISTA


Las religiones seguirán atrayendo a la gente mientras haya miseria, guerra e ignorancia, porque ellas proveen algo que la ciencia no da: consuelo e ilusión de seguridad. Mario Bunge


Tenho assistido, vez ou outra, nas televisões brasileiras, alguns debates sobre religião e ateísmo.

Representantes das mais diferentes denominações cristãs reúnem-se em torno do tema entre indigestas concordâncias, no que diz respeito à liberdade de cada um de crer ou não crer. De início chama a atenção a maneira como são, em geral, compostos os grupos de debatedores. De um lado, três ou quatro religiosos. De outro, um único e solitário ateu. No início e no fim, o discurso dos religiosos não sofre variações e apresenta-se como uma espécie de slogan: “Respeito todas as religiões”. “Respeito até os ateus.” – Até os ateus? Sintomático.

Também do lado ateu, embora numérica e claramente inferior, o discurso apresenta poucas variações. Via de regra limita-se a discordâncias sobre as Sagradas Escrituras.

O que é claro, nesse contexto, apesar do “sintomático” respeito dos religiosos até pelos ateus, e não é preciso uma mente privilegiada para perceber, é que sobre o ateísmo, propriamente dito, a discussão limita-se, friamente, “aos que não creem”. Uma falha permissiva por parte dos ateus.

Destacamos este aspecto em virtude de pouco se abordar a descrença, diferentemente com o que se faz com a crença, com base em seus fundamentos históricos, que não é uma simples negação da história das crenças religiosas.[1]

Desprezado esse aspecto histórico do ateísmo, invariavelmente a discussão reencaminha-se, como por um passe de mágica, para preceitos religiosos em confronto com preceitos não religiosos. O tom já é o esperado. De um lado, para os que creem, a religião, e particularmente seus livros sagrados, são as palavras reveladas por Deus, portanto, uma inquestionável verdade que fundamenta suas convicções. Diferentemente, por parte daqueles que não creem, o entendimento é que as explicações religiosas fundamentadas em livros “sagrados” jamais foram além  das fragilidades das próprias explicações.

Desse embate, insuperável na nossa opinião, apesar de uma miríade de opiniões contrárias, que entendem não haver conflito entre os que creem e os que não creem, os ateus passam a ser “os outros”,  personae non gratae.

O problema engendra uma pergunta: quem são, de fato, para os que creem, os que não creem? Certamente não há uma única resposta para tal pergunta.

De início devemos observar (e admitir) que a própria palavra ateu não é isenta. Ao longo do tempo sempre conservou uma carga semântica negativa, envolta numa espécie de maldição que, consciente ou inconscientemente,  origina uma velada “perseguição” aos não crentes. Isso pode parecer um exagero. Mas, para se ter uma ideia do que estamos dizendo, o ateísmo figura,  segundo a concepção católica, claramente expressa no seu Catecismo, “entre os mais graves problemas de nosso tempo”.[2]  Ora, isso, por si só, já deixa claro que o ateísmo não está limitado à não crença. É, acima de tudo, um problema. Não um problema menor. Mas, um “dos mais graves problemas de nosso tempo”, pelo menos segundo o ponto de vista da igreja de Roma.

Contudo, tal posição nos causa estranheza, e nos deixa à mercê da sorte, ao vermos Oscar Niemeyer, conhecido e reconhecido arquiteto brasileiro, declaradamente comunista e ateu,  ter sido nomeado, por João Paulo II, ‘Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno’, título que reconhece “o mérito de contribuir com a Igreja e a sociedade através dos bons exemplos.”[3] O que dizer? Mas, deixemos de lado essas questiúnculas. O fato, que nos parece reconhecido pelo bispo de Roma, é que Niemeyer, mesmo vivendo na ausência de Deus, não era um tolo, como afirmam as Escrituras.

Todavia, falar-se em ausência de Deus (sem Deus) é diferente de falar-se em descrença, que nos remete a não acreditar em Deus. Nota-se que ao nos referirmos à ausência, de algo ou alguém, é mais suportável que nos referirmos à descrença, não acreditar em algo ou alguém. Há um fator psicológico nisso. E, talvez, perpasse por aí a razão de muitos preferirem declarar-se sem religião a declarar-se ateus, termo sempre associado a outros não menos negativos: ímpios, incrédulos, etc.

Mas, convenhamos, tais associações são mais um passaporte para extravagantes e equivocadas interpretações, que acabam por imputar alquimicamente atos de natureza estranha ao ateísmo. Por exemplo, de os ateus praticarem, ao longo dos séculos, crimes de perseguição e extermínio de grupos religiosos.

Todavia, o termo ateu, nesse contexto generalizante, está sendo empregado de forma incorreta e desonesta. Em primeiro lugar porque, como alguns já disseram, entre eles Richard Dawkins, ateus podem fazer maldades, mas não fazem maldades em nome do ateísmo. Em segundo lugar a palavra que designa aqueles que praticam tais crimes não é ateu, é genocida. Há ateus genocidas? Sim. Há religiosos genocidas? Sim. Essa questão é infinitamente mais complexa e não pode ser associada em termos de causa e efeito a ateísmo ou religiosidade.

Não vemos exagero, contudo, afirmar que  tanto religiosos como ateus, ao compartilharem o mesmo mundo, abraçam posições específicas diante da realidade que se lhes apresenta e, em consequência de suas decisões, traçam sua história pessoal. Mas, atribuir-se fria, incompleta e equivocadamente crimes de genocídio aos ateus ou aos religiosos é uma afirmação, no nosso entendimento, que habita No limiar do mistério.[4]  Devemos cuidar, portanto, para não juntar alhos e bugalhos.

De toda maneira, a visão daqueles que creem, em relação aos que não creem extrapola, em muito, a etimologia da própria palavra ateu  (ἄθεος – a = ausência; teos = Deus). Mas, não queremos reduzir a discussão à etimologia da palavra. Longe disso. Apenas estamos convencidos que os ateus devem ser percebidos não apenas como opositores desgarrados das crenças religiosas, mas enquanto sujeitos ativos de uma história da não crença, tão antiga quanto a história das crenças e que não é apenas uma negativação da história das crenças religiosas[5]. Mais que isso, o desprezo pela história da não crença é um dos fatores, na nossa forma de entender, que conduz a pensar-se o ateísmo enquanto uma escolha, não uma convicção.

Mas, a condição para alguém declarar-se ateu, na grande maioria dos casos, passa por reflexões profundas, nem sempre confortáveis e muitas vezes conflituosas. Nada tem de opção, como inadvertidamente dizem alguns pensadores de exceção. Essa confusão conduz muitos a pensarem o ateísmo como uma “espécie de religião”. Tal afirmação não se sustenta. Associar-se o ateísmo a uma “espécie de religião” é insensato. Já se perdeu no tempo a origem de tão atabalhoada afirmação, sempre repetida como um mantra por religiosos.

O ateísmo não tem um livro sagrado, não tem dogmas, não tem rituais, nem ameaça aqueles que pensam diferentemente de sofrerem eternamente no inferno. Então, em que sentido o ateísmo é uma espécie de religião? A que, ou a quem, religar-se-á o ateu?

O ponto de partida ateísta não são as respostas prontas, reveladas. Mas, as perguntas sem resposta. Ateu é, então,  simplesmente aquele (a) que está, por convicção, fora do sistema religioso, consequentemente fora do sistema de crenças. Nesse sentido, o ateísmo “pode ser concebido como […] uma tentativa do homem de criar sentido para si mesmo, de justificar para si mesmo sua presença no universo material, de nele construir um lugar inexpugnável.”[6] Esta postura conduz o homem a uma ressignificação de seu lugar e papel no mundo. Isso não significa dizer que o ateu é alguém melhor. Mas, da mesma maneira, não faz do ateu alguém pior.

Esse aprendizado, que estamos tratando de ressignificação de seu lugar no mundo, um mundo sem Deus, ou deuses, é que, na prática, neutraliza a importância das discussões sobre a existência de Deus. Para os ateus, essa questão está superada, não tem mais lugar, e passa a ter um valor nostálgico que mais se assemelha a uma ilusão. Nesse sentido, parece-nos, e só nesse sentido, “Deus está morto”, segundo Nietzsche. Por isso perguntar-se a um ateu se ele acredita ou não em Deus não faz o menor sentido. É  uma pergunta limitada em inteligência. O que pensaria um religioso se perguntado, diretamente, se acredita ou não em Deus?

Para os ateus, então, o objeto de discussão migra para outra fronteira: a influência que grupos religiosos organizados, crentes de todas as crenças, exercem sobre a sociedade civil, com suas bases religiosas, sob o ponto de vista ateu, como já o dissemos, alicerçadas em frágeis fundamentos. Mas, isso, convenhamos, não pode ser interpretado como uma ameaça ateia aos religiosos, o que transferiria o debate do plano das ideias para o plano pessoal, aparentemente, desejo de boa parte dos religiosos. Confunde-se, então, crítica à religião com ameaça à religião. Por essa razão, afirmar-se que os ateus são uma ameaça à fé e, consequentemente, às religiões, é algo que soa extravagante. As maiores ameaças aos grupos religiosos não vêm dos ateus. Isso é tão verdadeiro quanto afirmar-se que a pneumonia é uma patologia relacionada à falta de penicilina no organismo.

A verdadeira ameaça aos grupos religiosos vem de outros grupos religiosos, por vezes de mesma origem, que se consideram superiores em sua fé e advogam, com todos os meios disponíveis, em favor de sua primazia em relação aos outros,  subliminarmente. Embora a questão não seja simples, de antemão podemos perceber que há um certo tipo de colisão entre sistemas de crenças, daí a necessidade “de infundir pensamentos edificantes ou, em termos mais gerais, de cercar a vida com uma moldura ordenadora é sobreposta pela necessidade de se ter razão.”[7]

Todavia, e diametralmente oposto ao enfrentamento explícito de ideias, claramente expressos sem subterfúgios pelos ateus, tais grupos de força (veladamente grupos de extermínio), utilizam-se de discursos politicamente corretos, embora perversos, de aparente respeito pela crença de outros grupos, que pensam diferentemente, ou que obedecem a princípios contrários. Os caminhos são os mais tortuosos e, muitas vezes, beiram a insanidade. Basta observar-se a indefinível prática em que várias denominações religiosas cristãs, que se digladiam veladamente, “convidarem” para seus cultos crentes de todas as crenças sob o pretexto de que – A nós não importa a tua religião. Venha até o nosso templo/igreja ter um encontro com o verdadeiro Deus. Nós respeitamos todas as religiões. Ora, nada há de humildade nisso. E o cajado da tolerância, não sejamos inocentes, não habita nessa seara. Contrariamente, embora não nos interesse ofender deliberadamente a quem quer que seja, exibe um nível abjeto de cinismo, que ultrapassa claramente questões ligadas à fé.

A disputa não é nova e não se limita às fronteiras do cristianismo. Ninguém ignora que o cristianismo, como alguém já disse, uma espécie de segunda geração do judaísmo, diverge deste em pontos fundamentais, tendo chegado em determinados momentos a um tal paroxismo que levou Pio X, (1835-1914), ter declarado que o “judaísmo teria sido ‘substituído’ pela religião cristã, logo não se poderia “continuar concedendo-lhe existência”‘.[8] Até mesmo Jesus, pelo menos sob a pena do evangelista João, chegou a dirigir-se aos judeus como “filhos do Diabo”:  O vosso pai é o Diabo, e quereis cumprir o desejo do vosso pai. Ele era assassino desde o começo e não se manteve na verdade, porque nele não há verdade.[9]

Por outro lado, o islamismo acusa tanto judeus quanto cristãos.  Os judeus de serem frívolos e hipócritas, “visto que não estariam levando a sério seus próprios profetas; [e] os cristãos são confrontados com o dado muito sério de que, em sua cegueira, teria falsificado o profeta Jesus como Filho de Deus, ao passo que todo verdadeiro saber a respeito de Deus, segundo o islamismo, começa com a noção de que o Supremo estaria eternamente só e não teria filho.”[10] Isso gerou a polêmica tese islâmica contra a doutrina trinitária que é posta em suspeita de triteísmo.

O que podemos vislumbrar diante disso tudo? Que cada grupo eleva orações diárias aos céus pedindo ao criador que proteja todos aqueles que não tiveram o correto discernimento? Nessas contendas onde estão os ateus?

Parece-nos que Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.[11]


[1] MINOIS, Georges. História do Ateísmo: os descrentes no mundo ocidental, das origens aos nossos dia. [trad. Flávia Nascimento Falleiros]. São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 2.

[2] Muitos […] dos nossos contemporâneos não percebem esta íntima e vital ligação a Deus, ou até a rejeitam explicitamente; de tal maneira que o ateísmo deve ser considerado um dos fatos mais graves do tempo atual». in CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulinas, Loyola, Ave-Maria, 1993, §2123.

[3] Ver http://www.radiocoracao.org/noticias/papa-concede-titulo-a-professor-felipe-aquino (grifo nosso) – Consulta em 19 dez. 2017.

[4] Nome do título, em português, do romance de Charles Richet. Título original em francês Au seuil du mystère.  Editeurs: J. Peyronnet et Cie Paris (1934). in http://www.autoresespiritasclassicos.com/Pesquisadores%20espiritas/Charles%20Richet/No%20Limiar%20do%20Misterio/Charles%20Richet%20-%20No%20Limiar%20do%20Mistério.pdf

[5] Georges Minois, 2014, op. cit. 4-5.

[6] MINOIS, Georges, 2014, op. cit., p. 4.

[7] SLOTERDIJK, Peter. O zelo de Deus: sobre a luta dos três monoteísmos. [trad. Nélio Schneider. São Paulo: Editora Unesp, 2016. p. 22.

[8] SLOTERDIJK, 2016, op. cit., p. 48.

[9] João 8:44, in BÍBLIA SAGRADA. [trad. CNBB, com introduções e notas]. Edições CNBB, 7ª ed.

[10] SLOTERDIJK, 2016, op. cit., p. 51

[11] Mt 13:9