Um vermelho menstrual

 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


Posfácio a O FOGO DO FOGO NO FOGO, de Luísa Demétrio Raposo (Col. Ventriloquia, Um Coletivo/ Tigre de Papel). Publicado em 2023 com prefácio de Cátia Terrinca e Ricardo Boléo e posfácio de Estela Guedes.


Ler Luísa Demétrio Raposo equivale a tentar abrir uma caixinha de segredo, que às vezes chega a uma Aldeia da Mata, ou Almojanda, outras, não. Entrar nos meandros desta escrita solicita espírito de sacrifício como este, de, em Bonito, Mato Grosso, duas escritoras já de bastante idade, a saber, a brasileira Marcia Kupstas e eu, empreendermos um lote de visitações a locais belíssimos, que, na totalidade, implicariam percorrer longas trilhas no cerrado, subindo e descendo vertentes de montanha, flutuar, mergulhar em apneia nas mais critalinas águas do planeta, trepar por íngremes caminhos até penetrarmos em grutas profundas tão trabalhadas pela água e pelo tempo que se chamam “catedral”, e outros calvários que, sim, cumprimos pelo menos a oitenta por cento. Hoje, dia 24 de Agosto de 2023, falta só a última estação do calvário ecológico, visitar as instalações do Projeto Jibóia e pegar numa delas, enrolando-a ao pescoço ou sustentando-lhe o peso nos braços.

Parece que nada disto se relaciona com a poesia de Luísa Demétrio Raposo, mas sim, conhecer a mulher, a fêmea, exige coragem e uma peregrinação ao lugar da sua maior interioridade, que não será tanto a genitalia, sim o espaço da imaginação sexual, a fonte de que toda a vida brota, para no termo “Fonte” fundar eu uma referência maior, a de Herberto Helder, dos raros poetas homens a conseguir falar das coisas íntimas da mulher como Luísa Demétrio Raposo faz. Basta pensar no poema, vindo dos confins dos anos sessenta, “A menstruação quando na cidade passava”. Neste como no texto da autora, o vermelho é bandeira menstrual de género.

A autora é uma performer, e nessa qualidade apresenta-se em movimentos e gestos que tanto remetem para um palco, para um ritual, como para uma narração. A própria pele desempenha papel dramático, ao constituir-se como suporte orgânico de informação, seja pela maquilhagem, seja pela tatuagem. Atitudes míticas, recuadas para práticas religiosas ancestrais em que gnomos habitavam árvores e druidas preparavam o gui em gamelas de madeira.  Em suma, ela é uma cultora do mundo mágico da mulher e sua condição matriarcal, que também é matricial, ao mesmo tempo excluída de tantos espaços em que o patriarca domina e a apaga até às cinzas, para apenas permitir que brilhe o seu próprio fogacho. Neste caminho de caminhantes separados, instaura-se uma via sacrificial, que lamentavelmente não só vigora ainda hoje, como se revigora na decadência moral do fascismo e neo-nazismo que mais ou menos a descoberto nos ameaça um pouco por todo o mundo civilizado e democrático com o que tem: cultura do ódio.

Neste entremês de culto e execração situa-se a arte de Luísa Demétrio Raposo, rara entre mulheres ainda hoje, mas que tem a sua garantia de legitimidade no rasto que desde romanos e anteriores a eles se vem perpetuando entre homens de diversa estirpe e produção de objetos culturais: pintura, estatuária, teatro, poesia. Entre nós, recordo, com pesar, a brusquidão com que uns certos pegaram em picaretas para destruir o anel de relevos obscenos que ornavam o portal da sé de Lamego, deixando apenas uma graciosa e discreta cena de fellatio, recordo ainda as cantigas de escárnio, a estonteante narrativa a inúmeras mãos de frade que é, em título telegráfico, o Palito métrico, até chegarmos a Bocage e outros mais modernos, caso daquele que foi meu amigo e como amigo estimo, o Luiz Pacheco de O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor.

Luísa Demétrio Raposo tem uma passadeira vermelha na qual pousar a sua literatura. Espero que quem a leia, antes de lhe criticar o legítimo direito ao “Falo!”, se lembre de reverenciar os antigos.


Maria Estela Guedes

Bonito, Mato Grosso do Sul, 24 de Agosto de 2023