Um texto na Revista ACROBATA, Brasil

 

NICOLAU SAIÃO


Em fins de Outubro do ano transacto recebi uma carta de Ana Santos que me dava uma triste notícia.

Ela originou que tivesse logo escrito o texto que vai a seguir publicado no TriploV e no Casa do Atalaião: 

Carlos Martins

“Morreu o pintor e ceramista surrealista Carlos Martins

Na quinta-feira da semana passada, dia 28 de Outubro, pelas cinco e um quarto da tarde, faleceu Carlos Martins – pintor, ceramista, colagista, galerista e membro do Movimento Surrealista Internacional.

Participante activo daquela entidade, amigo de muitos anos e colaborador em diversas realizações artísticas vivenciais, foi membro do Bureau Surrealista Alentejano e, a seguir, do Bureau Surrealista de Lisboa, tendo levado a efeito, com Mário Cesariny, a Exposição Internacional de Surrealismo e Arte Fantástica – com o apoio do Movimento PHASES (França) e de diversos autores das secções internacionais daquele Movimento. A mostra esteve patente, de início, nas instalações do Teatro Ibérico, sendo depois transposta para a Sociedade Nacional de Belas Artes.

Comigo e com Hugo Guerreiro, tendo a colaboração de sua mulher, a também ceramista e pintora Ana Santos, organizou a Mostra Internacional de Estremoz, dedicada a Mário Cesariny logo após o falecimento do Poeta.

Participou em sessões culturais e exposições de pintura e Arte Postal (mail art), com colagens e poemas-colagens em Portalegre, Cascais, Lisboa, Sacavém, Paris, Chile, México, Bélgica, Canadá, etc , estando representado em colecções particulares de pintura e cerâmica na Alemanha, Estados Unidos, França, Portugal, etc. Mantinha com sua mulher Ana Santos a galeria & loja de artesanato criativo Via Áurea, sediada em Setúbal.

Escreveu em conjunto comigo o livro “Os labirintos do Real – sobre a Literatura Policial”. Em Bissau, aquando da comissão militar por imposição ali cumprida, experimentou trabalhos em cerâmica e tapeçaria com artistas nativos.

Democrata libertário e personalidade interventiva, fez parte de diversas tomadas de posição e comunicados do surrealismo internacional, em vista do seu relacionamento com membros do universo surreal”.

Durante vários anos convivi com ele, pois foi um dos meus amigos e companheiros mais próximos.

Em resposta a uma pergunta de António Cândido Franco formulada aquando duma entrevista que este me fez, destinada à IDEIA, referi aludindo ao nosso encontro:

“Creio que fará sentido ir a uns breves meses antes, para se ter uma noção clara de tudo: uma certa noite, na caserna do quartel de Leiria onde então estacionava na primeira especialidade, conheci Carlos Martins em circunstâncias especiosas: estando já deitado, um grupo de outros militares entrara para se recolher ao leito e um deles, ao subir para o beliche, caiu dele para baixo…Os outros desataram a rir. Eu, algo preocupado e num impulso, dirigi-me ao tombado, perguntei-lhe se se magoara e ajudei-o a levantar. (Teria procedido a libações?…) Repare-se que isto se passou na penumbra…No dia seguinte, pela altura do almoço, alguém se me dirigiu e identificou-se como o caído, agradeceu-me o gesto e referiu-me que já reparara em mim por eu andar geralmente com um livro na mão…

Ficámos amigos desde então, frequentámos a seguir, na Trafaria, a mesma especialidade (serviços cripto, material e segurança) e, depois de mobilizados, fomos com dois meses e picos de intervalo, ele antes de mim, para o quartel-general em Bissau.

O nosso contacto e identificação com a surrealidade em particular e as artes & letras em geral, intensificou-se. Todos os bocados livres que tínhamos usávamo-los para ler e dar grandes passeatas por Bissau, estabelecermos convívio com outros militares interessados e gente da população, em suma: visando preenchermos da melhor forma aquele tempo de exílio…E foi um tempo de descobertas, encantamentos e, simultaneamente, de preocupações (o nosso trabalho militar a isso levava).

Comprámos materiais simples (canetas de feltro, guaches, etc) pintávamos e fazíamos colagens (ele principalmente, na colagem era um mestre) e, arriscando o couro se assim me exprimo, compusemos mesmo um livrito na tipografia da Secção da “secreta” a que estávamos adstritos. Eu dei-lhe como qualificação, com a sua aquiescência, “Edição do bureau surrealista Alentejo/Lisboa”. (Não sei se ele terá conservado algum exemplar, eu tenho apenas fragmentos dessa poemaria).

 Ao vir passar as férias intercalares que proverbialmente estavam concedidas aos expedicionários a meio da comissão de serviço, quando regressou levou-me como oferta o livro de Cesariny “A Intervenção Surrealista”. Congeminámos então que quando voltássemos entraríamos em contacto com os surrealistas que conseguíssemos achar (não tínhamos bem a noção de quem eram exactamente nem onde se encontravam.)”in A IDEIA 75/76, 2015).

Sobre a questão das lembranças, da memória por extenso, escrevi eu a dado passo no meu livro “As vozes ausentes”:

“A quem servem as evocações? Em certas alturas, a nós mesmos. Talvez a um que outro, recheado de minutos de dúvida sobre a face da sociedade. A gentes projectadas num futuro incerto, possivelmente, viajando entre recordações e utopias. Entre os rochedos da memória provável.

A certas horas, rodamos em torno das recordações como um lobo em volta da presa. É a nossa própria carne que, como num espelho, se faz significado, matéria afastada que pouco a pouco se ilumina. Se para se escrever uma página, como referia Rilke no seu “Malte Laurids Brigge”, é preciso a frequentação de muitas ruas, muitos rostos, funerais e nascimentos, deambulações ao acaso e a cor quotidiana da vida e da morte nos olhos de nascituros, grávidas, simples seres solares e lunares que subitamente ficam presos à rota que vai do princípio ao fim – é preciso igualmente a decantação da memória para que ao termo, no cadinho que são os nossos olhos brilhando na obscuridade, num quarto vazio, a pouco e pouco as sementes auríferas se separem das escórias e palpitem, ainda que nuas e frágeis, ainda que em solidão singularmente solene. Crê-se que o futuro nos poderá ver como num espelho iluminado, devolvidos à nossa verdadeira imagem; mas a matéria do futuro é incerta, vaga, na sua superfície criam-se como que buracos negros que não é possível preencher: ainda estão e estarão por muitos anos, de pé, as aparelhagens pseudo-sociais, constrangedoras e inúteis, para desequilibradamente acantonarem neste local, naqueloutro, em outro ainda, as verdadeiras faces dos que, na sua passagem pela Vida, criaram mundos de liberdade que a “realidade societária”, informe e espúria, não quer consentir.”.

Aparecem-me como em flashes sucessivos, dispersos pelos anos, as imagens dos encontros que durante décadas mantivemos: as andanças por Lisboa e pelo Alentejo profundo, a incursão pelos alfarrabistas lisboetas à cata de “pechinchas” de alfarrábios de qualidade (nomeadamente os policiais que faziam o nosso encanto) as idas ao cinema – pois éramos ambos cinéfilos encartados – a esperança de melhores tempos em que a imaginação e a liberdade se irmanassem, as breves idas a uma Espanha que tínhamos “en el corazón”, a busca, em galerias, de pinturas que nos entremostrassem o ponto supremo… Se assim o digo, resíduos reais da convivência de uma intensa juventude, depois transfigurada em idade madura, antecipando o fim que, para ele, iria chegar demasiado cedo – assim se esforça por me dizer a minha grande saudade.

Num artigo que me enviou em 1993, intitulado “O conhecimento do Caos” e com que apresentava uma sua Mostra, Carlos Martins diz-nos assim:

 I – A pintura como interrogação e expressão da vida

 Como pedir ao pintor que cale e oculte a sua melancolia e a mágoa de ter dentro de si, rebelando-o, o fogo do desencanto e da abjecção?

 O pintor livre situa-se pois num pleno que escapa às arrumações economicistas e materialistas que pretendem reduzir a vida e a complexidade das sociedades humanas a uma mera luta de interesses entre classes ou grupos sociais. Há mais mundos – já escrevia José Régio. O pintor, como poeta da paleta, não pode deixar de reflectir nas suas telas o desmoronamento do mundo que se processa à sua volta.

 Entregue à tela como aos braços e ao ventre da mulher e do homem amado, o pintor segue as coordenadas e os caminhos ditados pelo subconsciente, numa busca incessante de realidade para além das aparências e das sombras. Porque aquela não se apresenta fácil e fiel a todos os olhares, antes se confundindo e insinuando como uma fórmula secreta. E aqui chegados, desde logo relacionamos o pintor como um descodificador de símbolos e segredos cujo empreendimento sabe nunca poder terminar. Daí a sua vida ser um imenso percurso que se realiza sobretudo através dos outros, mais propriamente através do espírito e da palavra dos outros, isto é, para além dos limites da sua própria existência.

 O assunto, amante fiel da forma, é o alvo do pintor invadindo-o até às entranhas, ainda que seja conhecido que um e outra se conciliam como no amor. O acto de pintar é para o pintor violentamente orgástico e experiência íntima que sobeje para deixar de fora todos os que dele colhendo a iniciação, somente desejam os seus frutos tentadores, ignorando ou desprezando os caminhos de sacrifício que o mesmo encerra. A Pintura como a Alquimia não é campo de cultivo para assopradores de circunstância ou cultores de catavento que desertam à menor das dificuldades. Ritual de vida e de morte, a pintura implica uma disponibilidade do criador para a aceitação dos obstáculos.

 Na tela as cores estão lá todas, absolutamente em tudo. As cores quentes confundindo-se com as mais frias, os vermelhos e os negros do fogo e do sangue relacionando-se com os azuis e os verdes da pureza e da degeneração. Contudo com as cores, levando-as na ponta do pincel, nos dedos ou na espátula, vão também os fantasmas da realidade, as regiões ocultas que só o poeta tem a faculdade de penetrar.

A minha própria experiência de pintor que monta o atelier na rua ou nos parques da cidade, sob sol intenso ou recebendo no corpo e na alma a fúria dos ventos, tempestades ou invejas mesquinhas, permitiu-me (e permite ainda) percorrer os labirintos, subterrâneos e infernos da vida contemporânea e sentir o compasso ignóbil por onde se rege a maioria dos homens da sociedade moderna e “civilizada”. Não é obrigatório que outros tenham de o fazer e haverá certamente outros modos de lá chegar. Todavia é uma experiência única (e aterradora) pois coloca o pintor no meio da vaga redutora onde se matam à nascença todos os sinais de inocência e ilusão.

A minha pintura não cessa de reflectir estas viagens de realidade e pesadelo, encontros com a matéria-prima com que se concebem o ódio e a degeneração do espírito humano.

Os meus últimos trabalhos, estes que exponho aos vossos olhos belos e selvagens, ostentam o monstro com o ventre repleto de novos embriões. O retrato do Indizível não está ainda terminado mas já se lhe vê nos olhos a ambição de ficar por largo tempo, tentaculando virgens e homens de mera condição.

Em data que desconhecemos, neste século em que as sombras do racionalismo se fecharam como garras sobre o Mundo, de Bruxelas escreveu Saldanha da Gama para o poeta Mário Cesariny: “Ou aller pour vivre, ivre, maigre, mais libre?”. O drama para o poeta do nosso tempo e particularmente dos dias de hoje, é o da sobrevivência espiritual e igualmente física, numa sociedade e num mundo onde a vontade dominante se inclina vertiginosamente para o holocausto e a queda, arrastando nessa tragédia colectiva todos os que não se submetem às suas inclinações destrutivas e antropofágicas.

Farol de poesia e liberdade, a pintura continuará, contra todas as aparências (e apesar de todas as resignações e conformismos) a iluminar as zonas de sombra da realidade. Sem quaisquer vinculações a correntes ou postulados estéticos ou ideológicos, antes agindo como ave de voo largo e universal, o pintor continuará a traçar na tela o agitar frenético de vampiros que invade o rosto do homem e lhe sulca na pele os caminhos da rendição.  É essa a sua condição.

Um dos eventos em que mais se empenhou, juntamente com Cesariny, foi a Exposição Internacional de Arte Fantástica e Surrealista, a ter lugar no átrio do Teatro Ibérico onde ele era então o responsável da Secção Cultural, sendo a sua mulher, Ana Santos, uma das actrizes da companhia. A esse propósito endereçou-me a seguinte carta, que dá elementos para conhecermos os pormenores da mesma e que, também, evidencia de algum modo os seus interesses culturais, sempre patentes:

5/7/84

Querido Nicolau

Junto te envio o livro “Biografia do Diabo” e algumas fotocópias do livro “Tudo começou em Babel” nomeadamente as que se referem às passagens da intervenção sobre a palestra de Heródoto. No entanto e para que possas ficar com este livro na totalidade vou continuar a tirar as fotocópias até ao final do mês e vou enviando conforme possibilidades. Creio que assim é melhor para ambos pois o mesmo também me faz falta pois é uma obra de consulta constante quase mesmo diária.

Quanto ao primeiro peço-te encarecidamente desculpa pelo estado mas também é verdade que o material utilizado (cartão da capa) é do pior que tenho visto. Para os nossos amigos de Espanha, e eu estou de acordo com eles, o que importa sobretudo é a edição em si, quanto ao material depois se vê. Por isso é que eles têm tanta coisa e nós por cá ficamos com aquilo que é “aceitável” para os realistas e neo-realistas que dominam ao nível da edição em Portugal.

A Expo. do Fantástico passou definitivamente para Novembro. Em Outubro vamos ter no T.I.(Teatro Ibérico) o Festival de Teatro Espanhol também durante todo o mês. Vamos ter grupos e pessoas excepcionais tal como Nuria Espert e outros.

Quanto ainda ao Fantástico já estive com o Mário de novo e temos já confirmados mais de sessenta obras incluindo os principais animadores do Movimento Surrealista nos E.U.A. e França (Jaguer do grupo Phases e outros). Já estive com ele a seleccionar os trabalhos mas ainda virão mais. Quanto ao catálogo dependerá sobretudo do dinheiro existente, o IPL (Instituto Português do Livro) já nos concedeu os 150.000$00 e falta ainda o M.C.(Ministério da Cultura) 200.000$00 já assinados pelo Ministro. No entanto estamos ambos de acordo que sairá com uma reprodução de cada autor representado ou não sairá com nenhuma (preto e branco por causa do preço) e com uma pequena biografia de cada, um pouco à maneira do velhíssimo Dicionário Abreviado do Surrealismo.

Quanto aos autores portugueses contamos com entre outros ( 2 obras por cada um com uma ou outra excepção em resultado de obras colectivas ex. cadáver esquisito, etc): Nicolau Saião, Cesariny, Calvet, Perez, Paula Rego, Carlos Martins (2 obras recentes), Cruzeiro Seixas, Ilda David, Eurico, Inácio Matsinhe, Malangatana, Joaquim Antunes, etc.

Dos E.U.A. contamos já com a colaboração amiga e fraterna dos membros do grupo de Columbus(Ohio) Dauben, Tom Burns, etc. e do grupo de Chicago (Franklin Rosemont, Debra Taub), etc. Falta-nos ainda o E.F.Granell e alguns mais, poucos). No entanto, temos já obras suficientes para uma exposição internacional com bom nível quer na qualidade dos trabalhos quer em número de obras apresentadas já (algumas foram já dedicadas especialmente à Expo, outras são propriedade do Cesariny).

O Mário ofereceu-me com muita simpatia algumas coisas que eu não tinha (mais por falta de dinheiro do que pelo interesse que sempre foi bastante).

Há ainda uma grande novidade para ti – os teus poemas foram entregues ao Stefan Baciu que já os apreciou e considera estar-se perante uma grave injustiça os mesmos não terem sido há muito editados em Portugal (opinião do Mário que nada pode fazer mesmo junto da Assírio). Ele tem já coisas nossas para compilação e análise para o livro que está a preparar sobre o Surrealismo em Portugal.

De qualquer forma escreverei mais alongadamente um pouco mais tarde. Abraços de montanha e muitos beijos de estrela para todos do vosso sempre,

Carlos Martins

A pintura de Martins, bem como as suas colagens e objectos, aponta para uma intensa carga poética, resolvida na junção de elementos que, ultrapassando a simples imagética, conferem aos trabalhos um amplo sentido de humor negro, de lirismo sóbrio mas significativo através de notações apelando para a cultura popular e erudita (os pulps e as novelas gráficas populares, Moldoror ou Fantômas, Lautréamont ou a simbologia de Lovecraft e recorrências de romances policiais), todo um universo de memórias do que foi vendo e sentindo mediante o cinema e as publicações que, de alguma maneira, ilustram o quotidiano da sociedade em que viveu.

Como ele um dia me disse, “o pintor seguirá adiante mesmo perante o riso ou o desdém de quem sente que lhe conceberam o retrato a negro e sem memória. Só as vozes livres saberão seguir-lhe o rasto de cometa insubmisso e serão essas vozes que acompanharão o pintor pelos séculos adiante. O pintor continuará incessantemente a pôr em tela os infernos ou os paraísos que vê distintamente no íntimo dos homens”.

Neste momento em que escrevo este bloco, em que se desenrola no norte da Europa uma guerra de agressão com todos os horrores que tal infausto evento provoca, estas suas palavras singulares não podiam ser mais justas, precisas e adequadas.

Aos 13 de Abril de 2022

Nicolau Saião