O Contador de Histórias sobre Um Contador de Histórias:
Um Tesouro Dentro de Outro Tesouro
Por MARIA HELOÍSA DIAS
Professora da Unesp
Acabo de ler o livro de Álvaro Cardoso Gomes, recém publicado[1], que me fez não apenas vivenciar as deliciosas aventuras de um universo ficcional, como também mergulhar em reflexões sobre como o ato de contar pode engendrar processos estéticos extremamente criativos para capturar o leitor, seja este jovem ou não, crítico, ou amador.
Como sou apreciadora de imagens, ou melhor dizendo, de ilustrações, a capa e as páginas que introduzem os cinco capítulos (mais o Epitáfio) chamaram minha atenção: a originalidade e o primor com que Alexandre Camanho coloca em sua arte plástica são dignos de destaque.
E há vários outros aspectos a serem destacados nesse livro, pertencente à coleção Meu Amigo Escritor, aliás, interessante projeto editorial que certamente produzirá efeitos positivos, entre os quais o de tornar mais próximo (familiar?) do leitor escritores famosos, não necessariamente por estarem inscritos num cânone universal, mas porque seus textos, “clássicos”, são aqueles que “nunca terminaram de dizer aquilo que tinham para dizer”[2], conforme as lúcidas palavras de Ítalo Calvino. Por isso é que eles solicitam re-leituras permanentes, capazes de dialogarem com os implícitos de sua construção narrativa.
É o que o autor de O Contador de Histórias realiza em sua revisita à obra ficcional de Robert Louis Stevenson, escritor de fins do século XIX[3], a qual merece ser resgatada por conter potencialidades de sentidos e formas a serem desocultados como um tesouro. E a nós cabe fruir esse outro “tesouro” oferecido pela narrativa de Álvaro Cardoso Gomes, por meio de uma leitura que esteja aberta a recolher os achados criativos contidos nessa preciosidade.
Um grande achado começa pela escolha do ponto de vista narrativo, colocado na voz de Lloyd, para contar as aventuras de seu tio Luly (Robert Louis Stevenson), o que cria proximidade entre o leitor e os fatos narrados, graças à familiaridade e afetuosidade que o personagem-narrador faz transparecer em seu relato. Desse modo, sentimentos, sensações e impressões provocadas no menino, ao ouvir o tio contar os episódios vividos, possibilitam ao leitor também vivenciá-los.
Na verdade, envolvimento/proximidade e consciência crítica/distanciamento constituem a dupla performance de Lloyd na narrativa − o menino a ouvir e participar de aventuras com o tio e o adulto a reconstituir o passado pela escrita se complementam. As notações de teor metaficcional constituem registros dessa dualidade: “Foi nessa época então que me passou pela cabeça contar a história da sua vida. Registrar em cadernos as atribulações desse homem inquieto, de espírito livre e aberto a todas as questões de seu tempo me pareceu coisa das mais cativantes.” (2024: 37). E a inquietação do tio que tanto encanta Lloyd manifesta-se nas atitudes contrárias à austeridade e opressão exercidas por sistemas autoritários, quer na religião, quer na política. A autenticidade e ousadia do famoso escritor são sinais de um espírito vanguardista, não conformado a enquadramentos. Assim como a percepção e compreensão de Lloyd em relação ao contexto histórico vivenciado pelo tio correspondem a uma visão amadurecida possibilitada pela escrita.
O relato da vida e da produção literária de Stevenson respeita uma cronologia, pois acompanha desde os avós do escritor, seu nascimento, sua educação, primeiras aventuras, casamento e divórcio, nova união conjugal, mudanças para diversos locais de residência, suas criações literárias, os problemas de saúde, até sua morte. É essa a trajetória que o personagem-narrador Lloyd projeta em sua escrita.
Acontece que estamos diante de uma “biografia romanceada”, como o próprio Autor, Álvaro Cardoso Gomes, a define muito bem, ou seja, a obediência ao factual ou à veracidade não exclui a presença do imaginário, componente essencial da ficcionalidade para a composição da narrativa.
Por um lado, é notável a profunda e extensa pesquisa realizada por Álvaro Cardoso Gomes, em busca dos dados históricos, individuais ou contextuais, que transparecem nas indicações colocadas à margem do texto, bem como referências bibliográficas. Por outro, a liberdade para lidar com esse material inscreve sua escrita em outro universo, em que outra “verdade” desponta: o verossímil, ou o simulacro enquanto produto artístico, no qual artifícios de linguagem vão ganhando densidade e refratando o real, tornando-o mais rico, em virtude do olhar singularizador que o foca. Nesse caso, nunca é demais nos lembrarmos da noção cunhada por Roland Barthes, o “biografema”, aqueles traços/aspectos que seduzem, não por sua evidência, mas por desestabilizarem o conjunto ou previsibilidade, por isso, seduzindo o observador.[4]
E o que seduz o observador, ou leitor em nosso caso? Não seriam justamente os procedimentos de construção ficcional que desestabilizam o previsível e tornam mais atraente a montagem da escrita ficcional? É o que vamos encontrar no livro de Álvaro Cardoso Gomes.
O capítulo III – “De tesouros & piratas” – coloca-nos diante da estratégia do mise en abyme[5], ou seja, dizendo de modo muito simples, uma escrita dentro de outra, o que justifica, de certo modo, a maior extensão desse capítulo. É nesse momento que Luly passa a contar à família os episódios que já escrevera em seu novo livro, resumindo e apresentando-lhes como seriam os personagens, fatos curiosos, o que poderiam ser novos episódios e o título provisório do livro, enfim, delineia o que virá a se transformar no célebre A ilha do tesouro. Posteriormente, o personagem Luly passa a ler o texto já escrito, o qual é transcrito com tipo gráfico diferente do restante do texto do livro. Estamos, portanto, diante de uma estrutura narrativa com dupla face, o que torna essa composição gráfico-visual atraente para o leitor, especialmente para os jovens, pois reproduz o que teria sido o manuscrito original.
O mesmo procedimento narrativo é posto em prática em “Uma nova história”, no capítulo IV (“As duas faces de um homem”), em que Luly recriará oralmente para a família episódios de seu outro livro, a princípio O estranho caso do Dr.Jekyll e Sr. Hyde, que depois se intitulou O médico e o monstro.
O suspense, característico do gênero policial, está presente na narrativa oral de Luly, o qual vai instigando a curiosidade dos ouvintes à sua volta. Assim, a ansiedade de Lloyd por querer saber o final do romance escrito pelo tio, por exemplo, pedindo que ele adiante para ele e a família o desfecho, também passa a ser nossa. Assim, o suspense toma conta de nós, mas a explicação do personagem Luly é uma ótima justificativa, não apenas para acalmar a ansiedade, como também para caracterizar uma estratégia da ficção: “– Não, não posso adiantar nada. Se lhes conto alguma coisa do final que ainda estou planejando, não terá mais sentido eu ler seguindo o curso natural das coisas. Portanto, calma, minha querida.” (2024, p. 175).
Nesse caso, são interessantes as interferências dos personagens familiares nas histórias contadas por Luly, o que revela a importância do ato participativo no jogo entre escrita-leitura-recepção. Sinal de que o encantamento diante das histórias se complementa com certo senso crítico dos que as ouvem. Um ótimo exemplo é a observação de Fanny, mãe de Lloyd, sobre uma das histórias, justamente aquela em que Luly prometia haver uma alegoria: “− O estranho caso do Dr. Jekyll e Sr. Hyde, tal qual a leu para nós, parece uma história de terror comum (…) E sabe por quê? Porque não desenvolveu a alegoria de que nos falou…” (2024, p. 210). Crítica que levou o escritor a queimar o manuscrito, para espanto de todos, e reescrever a história, acreditando ser melhor modificá-la.
E a leitura em voz alta provoca também o efeito de levar o escritor (Luly) a fazer correções, substituindo palavras e incluindo cenas inexistentes em outra versão, o que ressalta para os ouvintes da história (personagens e nós, leitores) a importância da maneira como se dá o processo de escrita.
Marcada primordialmente por um conteúdo em que se destacam fatos e aventuras da vida de Robert Louis Stevenson, a escrita de Álvaro Cardoso Gomes não descuida do trato lírico posto na linguagem. Destaco como exemplo a passagem, já ao final do livro, em que o personagem-narrador Lloyd descreve o local que escolheu para a sepultura de seu tio: “A vista era incomparável: a borda do mar, elevada à altura dos olhos, dava uma sensação de vastidão infinita. E tudo era tão solitário, tão selvagem, tão incrivelmente belo, que era impossível ficar indiferente àquilo.” (2024, p.270). Beleza e tristeza se conjugam como opostos que realçam a sensação complexa vivida pelo personagem.
Também pontilhada de lirismo é a focalização do ritual realizado pela família:
Reunimo-nos em torno do túmulo, e nenhuma catedral poderia parecer mais nobre ou sagrada do que a grandeza da natureza que nos cercava. O que podia rivalizar com uma paisagem tão sublime? O mar à frente, a floresta primitiva atrás, penhascos, precipícios e cataratas distantes brilhando em um deserto inexplorado. (2924, p. 271).
O final de O contador de histórias acaba por sugerir um curioso contraste entre vida e morte, pois, se “a morte se impunha naquele momento”, para “cobrir a face daquele grande homem”, a escrita de Álvaro Cardoso Gomes deu-lhe vida graças à criação ficcional.
[1] O Contador de Histórias. São Paulo: FTD, 2024.
[2] Por Que Ler os Clássicos?. trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.11.
[3] Autor de diversos romances, sendo o mais conhecido e que o notabilizou, A Ilha do Tesouro (1883), cuja leitura encantou diversas gerações de leitores.
[4] Lemos em seu livro Câmara clara, ao tratar da fotografia: “Do mesmo modo, gosto de alguns traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tal como certas fotografias; chamei a esses traços de ‘biografemas’; a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema tem com a biografia.” (1988, p. 51)
[5] Segundo Tzvetan Todorov, trata-se de um procedimento de encaixe, por meio do qual uma narrativa secundária é intercalada à principal, o que provoca um jogo de reflexos entre as histórias, uma como prolongamento da outra. Em sua obra As estruturas narrativas (1969, p, 132).