Um Sergio Leone muito justamente clássico

 

CARLOS A. CARVALHO ACABADO


Um Sérgio Leone muito justamente clássico. Uma autêntica ópera (ou mesmo—porque não dizê-lo?—ballet…) disfarçados de western—ou mais precisamente de reflexão sobre o género western. Como qualquer ópera, o filme (poderíamos talvez dizer:) manuseia assumidamente (arqué) tipos mais do que propriamente indivíduos enquanto tal ao mesmo tempo que oferece um retrato verdadeiramente desencantado da sociedade moral por trás do filme. É neste sentido um objecto fílmico profundamente inquietante do mundo pós-moral que rodeia os personagens e, ao mesmo tempo, nos rodeia a nós todos, realizador e audiência a um tempo.
Um filme onde a tempos emergem ecos de toda uma cinematografia que remonta aqui e ali a autores como Dreyer (o Dreyer de “La Passion de Jeanne d’Arc”) na cuidada sintaxe onde alternam os planos de conjunto e os grandes planos dos rostos operando como comentário-subjectivização da acção propriamente dita; e a todo o neo-realismo italiano (com o sempre excessivo e tendencialmente surreal Fellini assim como o impiedoso Scola—o Scola de “Bruti, Sporchi e Cattivi”) para já não falar de Risi, o sarcástico e implacável Risi de “I Mostri” à cabeça. Diríamos, aliás, que os, repita-se, essencialmente operáticos ou mesmo… balléticos encanto e fascínio do filme assentam. Em larguíssima medida precisamente aí, nessa notabilíssima capacidade para continuar a operar para além das fronteiras estritas (e estreitas) do genre a ponto de reflectindo sobre o motivário do mesmo, acabar, afinal por devolvê-lo à condição original de mito na acepção mais genuinamente antropológica do termo. A soberba sequência final do filme brilhantemente encenada de modo a sugerir uma arena, um palco de circo, povoados por um público de cadáveres vale como uma das trouvailles mais criativas do Cinema algo que coloca “The Good, the Bad and the Ugly” entre as obras mais justamente sérias da chamada Sétima Arte, com acento no termo Arte.

Como Hitchcock, que soube como poucos trabalhar, nos seus melhores momentos, em dois planos, um mais popular aquele que lhe valeu o injustamente redutor apodo de mero “mestre do suspense” ao lado de outro mais sério onde é difícil deixar ver como nele avultam as nobilíssimas silhuetas de Freud e Kafka; como Hitchcock, dizíamos, Leone é capaz de fazer ao mesmo tempo e na mesmíssima sala, as delícias de um público mais Olympia pré-La Féria e de um outro francamente mais exigente e culto capaz de um paradigma de fruição cultu(r)al incomparavelmente mais sofisticado e rigoroso.