MARIA ESTELA GUEDES
Participação na mesa redonda: «António Barros, 50 anos de obGestos de esGrita». Casa Comum (Reitoria da Universidade do Porto. Iniciativa do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 22.03.2025)
Amigos comuns

Neste encontro que presta homenagem a António Barros, podia falar de amigos comuns, alguns dos quais me iniciaram nas vanguardas, em primeiríssimo lugar José Ernesto de Sousa; podia falar da celebração, mais profanamente das festas em que tantos artistas se reuniam, no estúdio Olhò Passarinho, na Cooperativa Diferença e nas galerias, em tardes de abertura de exposição; podia falar do CAPC, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, casa privilegiada de António Barros, como diretor, criador, mestre e investigador, lugar onde ainda conheci a Túlia Saldanha; podia falar de poetas como Herberto Helder e António Aragão, organizadores dos cadernos de Poesia Experimental, pedra basilar da poesia visual consolidada no portal da PO.EX (1), que António Barros pratica como uma das modalidades mais patentes da sua expressão artística. Realmente, a sua arte nasce na poesia, mas é pela fusão das palavras com as artes plásticas que ele lhe dá vida.
Podia sobretudo falar da Cooperativa Diferença, instituição de intercâmbio com o CAPC, onde fui aluna de Ernesto de Sousa, de Alberto Carneiro, de Monteiro Gil, de Alberto Picco e companheira de outros artistas e amantes da arte, como Irene Buarque, Helena Almeida, Pedro Calapez, Pedro Proença, Isabel Alves, Maria Tomaz e tantos outros; podia falar das celebrações e das cooperativas como exemplo do que considero determinante, a partir do 25 de Abril: o associativismo, manifesto não só nas exposições como no ensino, sem esquecer a permuta de conhecimento e práticas em coletivas estreadas com a Alternativa Zero, que ainda hoje faz história. Tais acontecimentos foram uma janela aberta das artes para o mundo, quer por se tratar de experiências de diálogo internacional, quer por as artes conversarem umas com as outras, num hibridismo que traz à memória a participação de Jorge Lima Barreto, com as suas pautas de música, em celebrações e mesmo em ações de artes plásticas, como aconteceu na caixa Pipxou (2).
Podia dizer que o associativismo se manifestava como ativismo político, nesses tempos de jovem democracia, que acabava de tirar das grades Nuno Teotónio Pereira, um dos pilares da Cooperativa Diferença. Esta dimensão de cidadania é muito clara na arte de António Barros, e acredito que ultrapasse a sala de exposição e alcance a rua, tal como, seguindo os passos de Nuno Teotónio Pereira e Irene Buarque, um grupo de alunos e artistas da Diferença expôs na Rua Augusta, no chão, ao tempo da candidatura de Maria de Lurdes Pntasilgo à Presidência da República. Grupo que alargou a sua ação política às paredes de Lisboa, em especial aos muros do Instituto Superior Técnico, onde colou cartazes e julgo que chegou a grafitar.
Podia trazer ao presente memórias dos anos 80, mas tudo isso é na maior parte do vosso conhecimento. De outro lado, foi compendiado em livros e noutros suportes de comunicação, entre os quais saliento o documentário da RTP em comemoração dos 40 anos da Cooperativa Diferença, que passa de vez em quando na tv. Tudo isso é maior do que eu, daí que, nesta celebração, prefira pegar em algo pequeno como um prato, mas cheio de palavras como um poema, para prestar a minha homenagem a um dos artistas com quem mais tenho convivido, não em presença física, sim através do Triplov, em que participa frequentemente, e da Revista Triplov, na qual organizou e ocupou um tomo, em 2024, António Barros (3).

Um prato de palavras
O prato é um dos obgestos usados por António Barros como suporte físico do texto, e basta olhar para aquele que serve de cartaz desta sessão, com as colheres manchadas de tinta, para verificarmos que o gesto do objeto é de acolhimento, de bem receber o hóspede, dando-lhe alimento. Ideia antiga, a de que precisamos de alimentar o espírito e não apenas o corpo, foi retomada numa frase de Natália Correia, ao declarar que a poesia serve para comer. O prato de António Barros é circular. Sabemos, desde Konrad Lorenz, etobiólogo que estudou o modo como as linhas curvas e os grandes olhos das crias de mamíferos, que essas linhas estimulam o desejo de proteção dos adultos. Não estranhemos então que, no gesto de dar o redondo prato de palavras, exista um espírito protetor, maternal.
O prato de palavras de que me vou agora ocupar é um objeto de porcelana assinado por António Barros. Faz parte de uma série, datada de 2021. O poema lida quase só com a palavra «palavra», recompondo-a numa única frase: «a palavra é/ lava».
As palavras, escritas a branco, assentam em fundo negro, na frente; inversamente, nas costas. O primeiro sinal que nos dá conta de um princípio originário da comunicação patente no objeto é o facto de nos lembrar a lousa em que, na escola primária, escrevíamos a giz: preto no branco, eis uma tendência forte na obra de António Barros, que lhe confere uma dimensão sacerdotal e cerimonial, já que é branca a túnica do neófito e preto a cor do luto. Alegria e candura do candidato, e os dois termos, candura e candidato, pertencem à mesma família; dor na caminhada e no fim da viagem. A escrita, diz António Barros, neste estilo de alto contraste, é uma esGrita. Embora não evidenciado o facto, no segundo termo do título «Vulcânico PaLavrador» existe a palavra «dor».
A porcelana tem por matéria-prima a argila, que se origina pela desagregação de rochas feldspáticas. Do feldspato diz a geologia, ou diz o que selecionei da minha consulta na Internet, que é uma rocha ígnea, metamórfica ou magmática. Em suma, um prato cuja matéria-prima, na sua origem mais remota, sofreu alterações num vulcão, ou foi lavrada pelo fogo, como apontado no título da obra: «Vulcânico PaLavrador». O sujeito que profere palavras foi lavrado pelo fogo e é o fogo ainda que lavra nos versos do poema inscrito no prato. A palavra «lavrar» ultrapassa no entanto a semântica do fogo para seguir outros caminhos, seja o mais aproximado da terra, a agricultura, seja o da linguagem, quando, por exemplo, lavramos uma sentença. E com isto situamo-nos no âmago da poesia de António Barros, que se constitui na construção e desconstrução vocabular, a partir de um vocábulo motor do processo, no caso, «palavra». Apetece dizer que a hipersensibilidade linguística do poeta, a sua capacidade de descoberta no mundo lexical se projeta fora da língua, mas a verdade é que nada, no domínio da linguagem, existe fora dela; o que António Barros faz é criar fora dos parâmetros de algo que esperamos, mas nos desencaminha: a etimologia ou a família de palavras, o seu parentesco. Pelo menos, que saibamos, os vocábulos «lavrar» e «palavra» não têm a mesma origem etimológica. Então a arte do poeta é verbal, sim, mas exerce-se fora das habituais normas linguísticas, num desafio a enquadrar nas artes plásticas, quer pela arte gráfica da escrita, quer por ressignificar os signos. A principal ressignificação patente no poema de «Vulcânico PaLavrador» é a de atribuir à palavra a identidade de lava: «a palavra é/lava».
Com esta ressignificação, ou metamorfose do signo, mergulhamos nos laços afetivos fundamentais do poeta, a começar pelo apelo da terra, uma terra fértil, como é costume das que os vulcões formam. Nascido no Funchal, António Barros é oriundo da Macaronésia, região biogeográfica constituída por quatro arquipélagos idênticos na origem vulcânica: Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde. Não espanta assim que seja tocado pela temática do vulcanismo e suas manifestações físicas: correntes de magma, escórias inflamáveis, fogo, cinzas, nuvens de fumo, lava solidificada em negro basalto, basalto decomposto na areia negra de algumas praias.
Em alto contraste, na decomposição da palavra, ou só das duas últimas sílabas, temos a brancura novamente, quando esse «lava» da «palavra» se apresenta como forma do verbo «lavar». De um lado a candura do candidato, daquele que busca a luz, de outro o conhecimento do que já é mestre, por isso enaltece ou exclui, ocultando letras, o valor ético sugerido nas duas cores. A obra de António Barros, em que ressaltam funções de magistério, não é neutra. Como já referimos, ela assenta num princípio de gravidade e cidadania. No seu conteúdo lemos muita participação social e crítica à situação política no mundo.
Espero agora ter conseguido o que me propus: mostrar que o prato de palavras funciona como sinédoque, ao dar o totum pro parte. O prato é um microcosmos, parte que representa o todo, ou pequena obra que espelha a opus magnum.
Na sua enorme diversidade de obGestos, a obra de António Barros assenta em alicerces únicos e muito fortes. A despeito de em grande parte dos casos se restringirem ao preto e branco e à decomposição e recomposição de palavras, esses alicerces revelam enorme potencial de geração de diversidade, que é exatamente aquilo que o ADN produz, sobretudo quando se mistura com ADN de origem diferente. Este tem sido um apelo de intelectuais como Edgar Morin, nos últimos tempos. Já ouvimos políticos a anunciarem abertamente que vão eliminar a diversidade. Na prática, essa exclusão da diversidade já se verificou de forma alarmante e extrema nos genocídios do nosso tempo. A diversidade é o fundamento da vida, temos de a preservar se quisermos sobreviver.
Grata pela vossa atenção.
(2) https://triplov.com/ernesto/pipxou/index.html
(3) https://triplov.com/revistaTriplov/indice-das-vanguardas-em-portugal/