ANTÓNIO BARROS
Pedem-me para apontar o dedo ao “Observatório” _de Hélder Folgado.
Mas de cada vez que apontamos o dedo a algo_alguém, apontando – acusando o seu ser, ou estar, existente – há três dedos que logo apontam para nós. De mão fechada. In_quieta.
Para resgatar a minha quietude, e nutrir o meu sentir perante a obra, apontei então de modo diferente. De mão aberta. Totalmente aberta. Apontando com todos os dedos da mão. E a abertura vaga da mão logo me sinalizou – pela inclinação de todos os dedos – lugares diversos: desde os do chão em terra molhada – dizendo da frescura de seu cheiro – até aos lugares do alto, bem alto, ganhos pela luz do sol, iludindo o finito firmamento.
Chamam-lhe céu.
Mas, entre eles, entre estes dois limites, há, apontado pelos dedos centrais onde reside o anelar, um anel maior de ramos de salgueiro despidos. Nesse anel gigante vejo o “Observatório” _de Hélder Folgado.
Esta nudez – dos ramos, agora vimes – refresca-me o olhar, e a memória.
E a memória, esta, pincela-me desenhos múltiplos. Líquidos. Avulsos, como aguarelas nuas. Mas são apenas desenhos da memória donde se soltam imagens fotográficas que guardei no convento dos meus afetos. Mesmo dos magoados.
Nesta gaveta de memórias, cheirando ainda a Salgueiro, tenho almas [a floresta, a viagem na floresta, o colmo] de um amigo já ausente, presente – Alberto Carneiro.
E então, perante a escultura, “Observatório” _de Hélder Folgado, como fazer, para me libertar dos constrangimentos da memória a que a cada tempo tanto me obriga?
Há um modo. Há um modo que também aprendi com este amigo: fechar os olhos, e fazer todo o corpo entrar no lugar da paisagem. Ser corpo do lugar, dando lugar ao corpo. E soltar todo o sentir que o corpo ainda nos contempla no agora. No agora ágora. Ágora agora. Mesmo que sós. Habitando a paisagem. Vestindo a escultura.
Depois de o corpo todo aí se fazer (re)nascer. Completo. Adulto. O mesmo corpo morre todos os dias um pouco. E é entrando, sempre entrando, na paisagem natura, que ele sente esse pouco que se afoga a cada tempo.
Obriga sentir nesse tempo único. Nesse dia. No agora. O agora que não mais voltará. E é nesse agora, nesse interior, que há uma visitação convulsa. A todo o tempo. Desse tempo, de todo o tempo vivido. Vivenciado.
Desse tempo tanto, ficarei agora apenas por narrar sete dias. Apenas sete dias pautizantes de um convite à vivenciação. E terminados esses sete dias, ouso continuar outros sete dias seguintes, até que outros sete, de novo, seguidamente surjam em nós. E depois de novo.
Assim, convido cada um a agarrar o seu ser e a deslocar-se para junto do “Observatório” _de Hélder Folgado. Aí, fazer experienciar na soltura da sua humilde grandeza os comportamentos de seguida pautizados para cada dia. Neste arco em círculo: da alvorada à hora do lobo.
No 1. dia: Na alvorada do sol nascente, há a humidade do orvalho.
[Querer os pés a sentir a terra molhada andando em volta, repetidamente].
No 2. dia: Na manhã, revendo os dizeres do homem da enxertia fertilizando o campo.
[Em cada volta recordar uma de sete histórias da infância em memória feliz].
No 3. dia: Na hora do repasto, começando por mastigar a cebola doada por Abramovich.
[Dar uma volta, ou tantas, até deglutir o mágico alimento].
No 4. dia: Num passo lento, até à paragem no leito da terra, num repouso – la siesta.
[Dar uma volta, apenas, até encontrar um vazado encastrando o corpo sem moldura].
No 5. dia: No crepúsculo, onde a luz se serena anulando-se no horizonte.
[À sétima volta, sentar-se contemplando o lugar através da malha de vimes].
No 6. dia: Na noite negra, bem negra, acolhendo o silêncio dos roedores das plantas.
[Dar voltas sem contar, sem cansar, per_doando a natureza – “essa que nunca perdoa”].
No 7. dia: No fundo da noite; e é a hora do lobo.
[Dar as voltas bastantes para desenhar a lucidez do agora vivenciável – da Ágora vivenciável].
Assim, Hélder Folgado – o “Observatório” _de Hélder Folgado – contempla-nos com um elogio da natureza. Com uma elegia a Alberto Carneiro. Dá-nos um templo Sagrado.
Aberto. Folgado. Bem folgado. De alma. Com alma. Dentro da alma.
Apontemos o dedo ao “Observatório” _de Hélder Folgado, mas com todos os dedos da mão. De mão aberta. Com ambas as mãos. Abertas. Levantando-se em abraço. Como uma árvore.
Como um Salgueiro nascente.
Cortesia de _”Em Viagem”
Quinta Magnólia, Funchal, PATRIRAM, 31 julho 2019 – 31 janeiro 2020
Fotografia: Augusta Villalobos.