ADELTO GONÇALVES
Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
I
Se os grandes romancistas ou contistas projetam nova luz sobre os predecessores que lhes apontaram os caminhos e foram nada mais que ávidos leitores, então, a fronteira entre o vivido e o lido, praticamente, não existe e, portanto, procurá-la seria vã tarefa, como afirma o hispanista norte-americano Stephen Gilman (1917-1986) em Galdós and the Art of the European Novel: 1867-1887 (Princeton, 1981). Mais: que leitor, por mais desmemoriado que seja, não constatou nas páginas de uma novela gestos e palavras de outras?
Afinal, como observou a filósofa e crítica literária búlgara-francesa Julia Kristeva (1941) no ensaio “Le mot, le dialogue et le roman”, escrito em 1966, “todo texto é construído como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto. E no lugar da noção de intersubjetividade o que se instala é a intertextualidade, e a linguagem poética é lida, ao menos, como dupla”. Nesse caso, o texto passa a ser um “diálogo de várias escrituras”, como define Julia Kristeva.
Estas observações foram extraídas de Entre lo Uno y lo Diverso (introducción a la Literatura Comparada – ayer y hoy (Barcelona, Tusquets Editores, 2005), do acadêmico e escritor espanhol Claudio Guillén (1924-2007), e vêm aqui a propósito de Feliz aniversário, Clarice: contos inspirados em Laços de família (Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2020), organizado pelo jornalista e escritor Hugo Almeida e que reúne 27 contos escritos por autores tanto novatos como experientes a partir da leitura de um dos contos que integram o livro Laços de família, de Clarice Lispector (1920-1977), publicado em 1960.
O livro saiu em 2020, com pouca repercussão na mídia – aliás, esta seria a primeira resenha da obra, segundo o seu organizador –, e marca não só a data do centenário de nascimento da autora como os 60 anos da publicação do volume. Traz duas versões inspiradas em cada um dos contos que constituem Laços de família e seguem a ordem dos textos do livro, como observa no prefácio Hugo Almeida, que foi quem teve a ideia de criar a obra e tratou de convidar escritores de vários Estados brasileiros, do Rio Grande do Sul ao Pará, nascidos na década de 1920 até a de 1990, sem se concentrar no triângulo São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Há ainda três autores que moram no exterior – Estados Unidos, Inglaterra e Portugal.
Além disso, o organizador preocupou-se em colher dos autores breves depoimentos sobre o processo de recriação dos contos de Clarice. Ao expor a “gênese dos contos”, os autores lembram como chegaram a conhecer (alguns, pessoalmente) a escritora, que, aliás, este resenhista também conheceu, em 1971, à época em que a via caminhar pelas ruas do Leme e Copacabana e a quem também dirigiu uma carta manuscrita que hoje, se não estiver perdida, talvez faça parte do acervo que ela deixou. Ao final, o livro traz ainda uma breve biografia de cada autor.
II
Como observou numa das “orelhas” do livro a professora Nádia Battella Gotlib, livre-docente em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e uma das maiores especialistas na obra clariciana, a partir da escolha de um dos contos de Laços de família como motivo inspirador, cada autor seguiu o seu caminho, às vezes transcrevendo um trecho do texto escolhido, outras vezes se detendo “num traço de caracterização de personagem ou mesmo num detalhe episódico, ou num traço cênico”.
E o resultado foi um livro de contos que pouco fica a dever à grande autora que os inspirou, aquela que, ao escrever Laços de família, teria produzido “a mais importante coletânea de contos publicada neste país desde Machado de Assis”, como afirmou o romancista Érico Veríssimo (1905-1975) em carta à própria autora datada de 3/9/1961, cujo trecho é reproduzido pelo organizador como epígrafe da apresentação. São contos que procuram reproduzir, com outras palavras e temas, a prosa intimista e cheia de metáforas de Clarice, igualmente carregados de lirismo, em meio a questionamentos sobre a vida e seus mistérios.
De fato, o conto escrito pelo organizador do volume, “O canto de Clarice”, inspirado no conto “Feliz aniversário”, trata do encontro entre integrantes de uma vasta família a propósito da comemoração dos 90 anos de Zilda, a matriarca. O autor cria e recria diálogos entre filhos, filhas, netos, netas e bisnetos. Na recriação de Hugo Almeida há até um monólogo interior que seria o da matriarca (ou da própria Clarice, transformada em personagem?) à beira da viagem para o eterno: Cumpri a minha jornada, acabou minha curta eternidade. Ela, ainda que tardia, vem pelo ar. Entre, o corpo é seu. Resina, bálsamo, ládano? Não. Não paro aqui. Um ser póstero, eu. Fico ainda comigo. No fim, o fim; só restam o nome e a lembrança. Se restarem. O caminho nunca acaba. A noite me assusta. Esse infinito me estremece. Mas vou. Estou pronta para a última tarefa. Mãe, pode me buscar.
Já em “Sonhos de Ana”, Marta Barbosa Stephens (1975), jornalista e crítica literária pernambucana que vive desde 2014 na Inglaterra, autora do romance Desamores da portuguesa (Rio de Janeiro, Ímã Editorial, 2018) e do livro de contos Voo luminoso de alma sonhadora (São Paulo, Intermeios, 2013), reconstitui o viver de uma mulher, Ana que, à noite, tem sonhos que a levam para longe daquele destino opaco de dona de casa. Eis um excerto: Pensou em por quanto tempo continuaria a viver assim, mais dentro do sonho do que da vida. Outra manhã, e ela não sabia como se comportar. (…) O que a movia à mesa de café da manhã era a lembrança dos sonhos. Saía da cama, mas seguia amarrada a uma memória. Não eram imagens nítidas, mas eram sensações reais que a acompanhavam à cozinha, e logo ao mercado, ao salão de beleza, à biblioteca, à sessão de terapia. Até se dispersarem na rotina, para de novo a tomarem pela noite.
Por aqui se constata que Marta Barbosa Stephens não só levou ao pé da letra a sugestão do organizador do livro como foi além: produziu um texto que parece saído diretamente das mãos de Clarice Lispector.
III
Outro conto que se destaca é “Delírios e divagações da miúda”, do mineiro Ronaldo Cagiano (1961), autor dos livros de contos Eles não moram mais aqui (São Paulo, Editora Patuá, 2015), Dezembro indigesto (Governo do Distrito Federal, Secretaria de Estado de Cultura, 2002) e Dicionário de pequenas solidões (Rio de Janeiro, Editora Língua Geral, 2006), entre outros. Nesse texto, o autor faz um diálogo com a obra clariciana, a partir do conto “Devaneio e embriaguez duma rapariga”, buscando uma escrita que seja “um flerte e não um pastiche; uma simbiose, não um plágio; um olhar pessoal, jamais uma releitura”, como explicou em seu depoimento.
Vivendo desde 2016 em Estoril, freguesia de Cascais, Cagiano optou por localizar seu conto em Lisboa e por uma linguagem em que não são poucas as palavras de uso corrente em Portugal para reconstituir o dia a dia de uma jovem, Gilda Helena, que, arrancada às pressas do Brasil, fora viver às margens do Tejo, quando os pais tiveram de optar pelo exílio para fugir dos horrores da ditadura militar brasileira (1964-1985). E ela, então, já adolescente, vive o drama de ser cortejada pelo neto de um antigo agente da Pide, a polícia política do regime salazarista. E, assim, Cagiano reconstitui “a paixão segundo G.H.”, que o leitor pode ler como uma intertextualização, pois esse é o título de um dos mais conhecidos romances de Clarice Lispector, publicado em 1964.
Já para a premiada romancista e contista paraibana Marília Arnaud (1964), recriar um dos contos de Clarice Lispector equivale a “estar no centro do coração selvagem”, o que remete para o romance de estreia da autora, publicado em 1944. Em “A mulher do casaco marrom”, ela trata de recriar o conto “O búfalo”, de Clarice Lispector, em que a protagonista é mais uma mulher oprimida no exercício de suas funções como esposa e dona de casa. E que, para fugir daquele destino de viver com um homem que já não a ama (ou talvez que nunca a tenha amado), procura livrar-se da opressão caminhando sozinha pelas ruas da cidade. E reflete: A vida, um barco em correnteza. Sem remos. Maldito homem! Se ao menos houvesse morrido, não teria de aprender a odiá-lo. Conhecia a morte, que visitara a sua casa quando ela era ainda uma garota. Com a partida repentina da mãe, entupira-se de silêncio e aninhara-se nos livros (…).
Por aqui se vê que razões não faltam a Hugo Almeida, o organizador, quando diz, no texto de apresentação, que “o leitor verá que inquietação, dor, mistério, amor, inveja etc. atravessam as narrativas deste livro”. E que, portanto, ler esta coletânea é o melhor caminho para se descobrir ou se reencontrar com uma das maiores escritoras brasileiras do século XX, senão a maior.
IV
Mineiro radicado em São Paulo desde 1984, Hugo Almeida (1952), doutor em Letras na área de Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Mil corações solitários (São Paulo, Editora Scipione, 1988), que conquistou o Prêmio Nestlé de 1988 e o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 1987, com o título de Carta de navegação. Em 2021, publicou Certos casais (Editora Laranja Original), seu quarto livro de contos, que reúne nove textos inéditos, alguns escritos há duas ou três décadas, mas que receberam ajustes para a publicação.
Publicou ainda os livros juvenis Porto Seguro, outra história, novela (São Paulo, Nankin Editorial, 2005) e Que dia será o dia?, novela (Nankin Editorial, 2007), e os infantis Mais rápido do que a luz (São Paulo, Editora FTD, 1993), Todo mundo é diferente (São Paulo, Lê Editora, 1996) e Pare, olhe, siga: boa viagem (São Paulo, Editora Ícone, 2000), além da novela Meu nome é Fogo (Belo Horizonte, Editora Dimensão, 2009), do livro infantojuvenil Cinquenta metros para esquecer (São Paulo, Didática Paulista, 1996) e do romance Minha estreia no crime – Estação 111 (São Paulo, Lê Editora, 1997), inspirado do massacre do Carandiru, ocorrido a 2 de outubro de 1992, em São Paulo. Tem à espera de publicação um romance que dialoga com a obra de Osman Lins.
Autor de tese de doutoramento na USP sobre o romance A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins (1924-1978), organizou (e prefaciou) Osman Lins: o sopro na argila, ensaios, 2004) e, com Rosângela Felício dos Santos, Quero falar de sonhos (2014), artigos deste escritor. Organizou ainda as coletâneas de contos Nove, novena: variações (São Paulo, Olho d´Agua, 2016), que reúne narrativas inspiradas na obra de Osman Lins. Profissionalmente, sempre trabalhou como jornalista, com longa carreira na redação do jornal O Estado de S.Paulo.
Feliz aniversário, Clarice: contos inspirados em Laços de família,
de Hugo Almeida (organizador).
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 272 págs., livro impresso: R$ 54,90; e-book: R$ 38,90, 2020.
Site da editora: www.grupoautentica.com.br