Frei BENTO DOMINGUES, O.P.
- No dia 11 de Julho, dia de S. Bento, a bela igreja deste convento de S. Domingos ficou completamente cheia para agradecer e celebrar a vida do Prof. José Mattoso. Recolho, aqui, fragmentos de um dos seus belos textos, distribuído pela Lucy, que me parece o mais adequado para retermos o sentido da sua vida. Eis o texto:
«Não há nada neste mundo que possa preencher todos os nossos desejos, todas as oportunidades que a vida nos oferece. A vida oferece tantas… Só podemos responder a uma parte muito pequena dessas [oportunidades]. Isto é o que me ensina uma reflexão sobre o Ser, uma reflexão sobre Deus, sobre a espantosa realidade das coisas … quando, subitamente, nos comove ou encanta o olhar de uma criança, a beleza de um rosto, o brilho das estrelas numa noite de verão, os raios de sol no meio das árvores, a imensidade do mar, a descoberta da prodigiosa capacidade de adaptação e de invenção da vida animal, a perceção da nossa insignificante pequenez no meio do Universo.
«A vida, na sua festiva generosidade, oferece-nos momentos de iluminação… O sábio cristão sabe esperar. Não tem pressa. Para ele não há absolutos. Tudo é relativo: um sorriso pode ser mais importante do que a fundação de uma dinastia. Acredita no valor e na eficácia dos símbolos. Não pronuncia sentenças nem faz discursos. O seu espaço é o silêncio. Considera que a sua função não é julgar e condenar ou absolver, mas salvar, isto é, dar vida à imagem de Deus que está no fundo de cada homem.
«É bom acreditar que merece a pena levantar o Céu[1], e lembrarmo-nos de que não estamos sozinhos. Felizmente há muitas mulheres e homens neste mundo a tentar unir esforços para manter o contacto entre o Céu e a Terra. É esse o caminho que a sabedoria ensina a percorrer para encontrar a saída do labirinto em que a vida nos coloca. … há uma coisa com a qual me sinto bem; é aquele “gracias a la vida, que me ha dado tanto” É isto que sinto».
Durante a celebração, ao agradecer a sua amizade muito generosa que tantas vezes e de muitos modos me manifestou, não resisti a evocar o que me escreveu, no ano passado, no dia dos meus anos, lembrando-me que a nossa amizade vinha de muito longe. A alergia ao narcisismo impede-me de transcrever essa carta.
- Nestas crónicas que antecedem as férias, tinha o costume de responder aos desejos de alguns leitores acerca de possíveis livros para os tempos de lazer. Antes de mais, aviso que o livro do Pastor brasileiro Henrique Vieira, Jesus da Gente, para o qual me tinham pedido o Prefácio e que transformei em crónica (04.06.2023), já está editado em Portugal pela Pergaminho.
Fui, agora, surpreendido por um livro de Hervé Legrand e Michel Camdessus[2]. Quando vi o título – Uma Igreja transformada pelo povo – só o conhecimento que tenho dos seus autores me impediu de dizer: eis mais uma banalidade em torno do Sínodo 2023-2024. De facto, é uma obra marcante e espero que tenha muitos leitores e muitos praticantes das suas propostas.
De que se trata afinal? De entrelaçar as exigências do Evangelho com todas as dimensões da vida humana.
Andrea Grillo, resume muito bem os propósitos desta obra singular: «Uma Igreja transformada pelo povo é o fruto de uma luminosa colaboração entre vários homens e mulheres franceses que, ao longo do seu percurso, encontraram, não apenas no magistério de Francisco, mas em particular nas palavras de Fratelli Tutti, um guia, uma candeia e uma bússola para realizar um exame sobre a relação entre a Igreja e o mundo. Da leitura da lista de “contributos”, verifica-se que se trata de um conjunto de indivíduos que pertencem ao mundo da política e dos negócios, da administração da justiça e da psicologia, da assistência social e da ornitologia, do direito internacional e da terapia familiar. Entre eles há apenas um teólogo (H. Legrand, op), que desempenhou um papel de coordenação e consultoria, para além de ter assumido a redacção de toda a segunda parte do volume».
«As páginas deste texto podem ajudar a redescobrir coisas antigas na Palavra de Deus e na tradição que são surpreendentemente sãs e vivas, enquanto algumas coisas recentes podem ser pouco pensadas e muito unilaterais. Algumas coisas que parecem muito antigas são invenções de anteontem. Algumas coisas que parecem ser novidades perigosas são formas tradicionais de sabedoria antiga. Só num renovado caminho comum, a ser feito plenamente e sem medo, voltará o exercício da autoridade a ser um lugar aberto ao mistério»[3].
Este livro é fruto de um laboratório de pessoas muito qualificadas e experimentadas em todos os domínios da actividade humana. Podem, por isso, mostrar os resultados de um grande laboratório e, ao mesmo tempo, constituírem propostas para mais laboratórios de jovens que, à luz da Fratelli Tutti, irão abrir novos caminhos.
O Papa tinha denunciado a economia que mata e que continua a matar. Desejava motivar economistas que fossem capazes de investigar novas propostas concretas para uma economia que construa a vida para todos, sobretudo para as vítimas da exploração. A economia de Francisco não é uma obra já feita, mas uma proposta para novos itinerários. É um contínuo fazer.
- Dizemos que tudo isso são bons desejos, belas promessas, mas, dada a situação em que nos encontramos, somos levados a pensar e a dizer que a história das sociedades e da igreja não são entusiasmantes. Incitam mais ao cepticismo do que à esperança. Já tanta coisa foi tentada, crescemos e morremos sem ver a transformação da Igreja ao serviço da transformação das sociedades. Para muitos, as discussões em relação à idade e à saúde do Papa Francisco fazem temer que tudo pode voltar para trás. No entanto, algumas parábolas do Evangelho deste Domingo teimam em ser textos para ajudar a resistência cristã contra o espírito derrotista.
Vale a pena meditar: Disse-lhes Jesus: O Reino do Céu é semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. É a mais pequena de todas as sementes; mas, depois de crescer, torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa árvore, a ponto de virem as aves do céu abrigar-se nos seus ramos. O Reino do Céu é semelhante ao fermento que uma mulher toma e mistura em três medidas de farinha, até que tudo fique fermentado[4].
Além do livro fundamental que apontei, recebi também da Paulinas Editora, um outro – O Pastor – fruto de dez anos de entrevistas, nas quais, o próprio Papa Francisco não evita nenhum aspecto da sua vida e de um pontificado que está a mudar a Igreja. Nele se encontra a sua história, as suas preferências, a sua personalidade, a sua defesa do meio ambiente e da paz mundial, os desafios do seu papado – incluindo a luta contra o flagelo dos abusos e a favor da transparência das finanças vaticanas[5].
É o Papa desafiado a explicar os seus 10 anos de pontificado.
[1] É o título de um livro de José Mattoso, Levantar o céu: os labirintos da sabedoria, Temas & Debates – Círculo de Leitores, 2012
[2] Uma Igreja transformada pelo povo, Paulinas Editora, 2023
[3] Ib., pp. 9-10. 19
[4] Cf. Mt 13, 24-43
[5] Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin, O Pastor, Paulinas Editora, 2023
Público, 23 Julho 2023