Um homem atravessado

 

 

 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


Memórias da guerra colonial – 2


O senhor Francisco era quem explorava a ponta de Júlio Henriques. Um homem atravessado, nas palavras avaliadoras da minha mãe, embora nada tivesse de travesso. Era, isso sim, um homem mau.

Antes, tinha sido o sr. Bernardino, boa pessoa, aqui de Recarei. A Mimi, filha, já morreu. Os filhos ficaram por lá,  também ocupados com a agricultura, em Antula. Um deles era muito amigo do Presidente da República que acabou esquartejado depois de morto pela soldadesca de um dos muitos golpes de Estado que acontecem na Guiné-Bissau. Como é que ele se chamava? Tenho um poema sobre ele no “Chão de Papel” e até com o nome papel dele, o nome indígena. Depois verifico se era papel, balanta ou manjaco. Uma das três etnias. Pensar que no Triplov há de haver material de um dos assassinos, um que mostrava a todos o anel do ditador, e por acaso, pelo menos na fotografia, era bem bonito homem… Isso são histórias recentes, do meu apoio à candidatura do Didinho a Presidente da República… Nino Vieira, eis o nome dele!

Tirando uns tomates, uns ananases e tal para gasto de casa, estes agricultores só cultivavam a cana do açúcar, mas não era para fabricar açúcar, sim aguardente de cana.

No tempo do senhor Bernardino fomos felizes, a mulher enchia-nos a casa de fruta e de cachos de chabéu, o fruto da Elaeis guineensis, a palmeira do dendém. O chabéu, sempre mistura de frutos de cachos diferentes, é a base do prato tradicional da Guiné. Frango ou peixe de chabéu, a saber bem a limão, uma maravilha!

Uma vez um trabalhador atirou-se da palmeira porque estava lá uma cobra venenosa. Foi uma tragédia!

No tempo do sr. Francisco acabou o Paraíso. Ele cortava as orelhas dos cachorros, era um tipo mau que explorava os trabalhadores fiando-lhes a aguardente. Ao sábado, quando iam receber a semanada, não havia nada para receberem, porque tinha sido descontado o dinheiro da cana.

Este estratagema consubstanciava a semi-escravatura dos desgraçados.

Por isso acredito que, já perto de se revoltarem a sério, com guerra aberta, se vingavam do sr. Francisco e de outros como ele, pegando fogo aos canaviais. Uma vez o prejuízo foi de quatrocentos contos. Nos anos 50-60, quatrocentos contos era muito dinheiro.

Eu acho que eram os trabalhadores os incendiários, e nem se incomodavam a remover as provas de fogo posto. Por entre as carreiras das canas, apareciam bidões de gasolina queimados.

Isto acontecia antes do massacre do Pindjguiti, em que foram fuzilados pela Polícia os trabalhadores em greve. Umas dezenas. Depois disso criaram a Defesa Civil, em que estive envolvida. E só depois começaram a chegar os soldados da metrópole. Com eles, mudou tudo, nunca mais pude ir para o mato sozinha, era muito perigoso.