Um crime anti pascal

 

 

 

 

 

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


  1. As duas grandes festas cristãs são o Natal e a Páscoa. Além das celebrações litúrgicas, as suas expressões populares eram e são muito diferentes de país para país, assim como no interior de cada região cultural.

Em Portugal, o Natal era essencialmente uma festa no interior da família, ao passo que a Páscoa envolvia toda a aldeia ou vila e com algumas manifestações citadinas.

Estou a escrever como se fossem realidades do passado acessíveis apenas aos movimentos de recuperação da memória, reino dos historiadores e curiosidade de alguns meios de comunicação, em determinadas épocas do ano. Como ainda conheci muitas dessas expressões populares, não escondo alguma nostalgia por certas dimensões desse mundo essencialmente rural ferido pela sua rápida desertificação.

As identidades religiosas, em Portugal, são agora cada vez mais diversificadas, fruto de vários fenómenos, relativamente recentes, sobretudo os relacionados com a imigração. Esta diversidade em expansão tem sido objecto de cuidadas investigações coordenadas pelo Professor Alfredo Teixeira[1].

Por outro lado, não se pode esquecer a contagiante crise religiosa na Europa, assim como o fenómeno de novas conversões ao catolicismo que escolhem a Quaresma, como preparação próxima, para celebrar o Baptismo na Vigília Pascal.

  1. Em Janeiro de 2023, a Editorial A.O. (Apostolado da Oração) teve a feliz ideia de publicar um livro breve e original, que aborda a Páscoa de Jesus como parte do nosso quotidiano e tem o títuloRessurreição. Manual de Instruções. É de Fabrice Hadjadj.

O autor nasceu em Nanterre em 1971. De família judia da esquerda radical, ele era ateu, niilista e só queria atacar a Igreja. Hoje, este filósofo é um convertido ao catolicismo. Tornou-se conhecido como um grande pensador católico muito premiado. Recebeu, entre outros, o Grande Prémio da Literatura Católica (2006).

Na história da sua conversão, conta-se que um amigo publicou um livro de aforismos, em que cada um vinha precedido por uma citação bíblica. Fabrice Hadjadj viu aí mais uma oportunidade de ridicularizar Deus e a religião. Leu a Bíblia para se rir.

Começou pela leitura de Isaías e de Jó. Ficou espantado. Mais tarde, releu os Evangelhos. Tanta simplicidade unida a tanta profundidade fazia com que a palavra de Jesus não fosse uma palavra como outra qualquer. Era a palavra em carne e osso e em espírito. Tinha querido desviar-se das Escrituras e foram elas que lhe mostraram o caminho.

Alguns meses mais tarde, o seu pai ficou doente. Fabrice confessa: eu não sabia o que fazer para o ajudar. Corri à Igreja SaintSeverin, perto da minha casa em Paris. Ainda há poucos dias, eu tinha gozado os fiéis que a frequentavam! Rezei e foi uma revelação. Não era uma grande luz, era uma voz descendo do céu. Fiquei em paz e a paz mostrou-me que a oração é a essência da palavra, o próprio lugar do ser humano.

Este foi o caminho da sua conversão ao catolicismo. Recebeu o Baptismo, em 1998, na Abadia de Solesmes. No mesmo ano, casou-se com a actriz francesa Siffreine Michel. Desse casamento nasceram nove filhos.

Voltando ao citado livro Ressurreição. Manual de Instruções, o autor observa que, após a ressurreição, é o próprio Jesus que aparece às mulheres e depois aos discípulos das formas mais surpreendentes. Nota-se, nas narrativas e afirmações do Novo Testamento, o embaraço para encontrar acontecimentos e linguagem que mostrem que é o mesmo que teve uma história pré-pascal verificável – Jesus de Nazaré – e a situação radicalmente nova pós-pascal: quando O veem não O reconhecem; quando Ele se dá a conhecer, deixam de O ver. É o mesmo, ainda mais presente, mas não existe da mesma maneira. A própria Madalena, a grande figura da história de Jesus e da Sua Ressurreição, até o confundiu com um simples jardineiro. Teve de ser o Ressuscitado a dar a conhecer a sua realidade histórica e transcendente.

  1. A Ressurreição de Cristo não é um acontecimento histórico, empiricamente verificável, mas quem fez a experiência de Cristo ressuscitado são pessoas da nossa história humana que encontraram, nessa experiência, o sentido da vida que vence a morte. Não é uma conclusão filosófica. Existe no Novo Testamento uma expressão da fé muito repetida:Deus O ressuscitou[2].

A arte especial deste Manual das Instruções, sobre a Ressurreição, manifesta-se na originalidade do seu estilo: aborda as manifestações do passado como se fizessem parte do nosso presente e a sua dimensão transcendente como realidade do nosso quotidiano.

Fabrice teve a graça de verificar a originalidade feminina das primeiras experiências da Ressurreição que, ao longo da história, muitos esqueceram. Começa por chamar a atenção para o Evangelho de Marcos, onde até as mulheres, por medo, não cumpriram o mandato do Ressuscitado.

Por razões de espaço, vou cingir-me apenas a reproduzir uma das narrativas de S. João. Segundo este Evangelho, quem venceu todos os medos foi Maria Madalena. É longa a narrativa, mas indispensável.

No primeiro dia da semana, Maria Madalena vai ao túmulo, de madrugada, quando ainda estava escuro e vê que a pedra fora retirada do túmulo. (…) Estava junto ao túmulo a chorar. Enquanto chorava, inclinou-se e viu dois anjos vestidos de branco sentados no lugar onde o corpo de Jesus fora colocado que lhe disseram: Mulher porque choras? – Levaram o meu Senhor e não sei onde o colocaram. Dizendo isto, voltou-se e viu Jesus de pé, mas não sabia que era Jesus. Ele pergunta: Mulher, porque choras, quem procuras? Pensando que era o jardineiro, diz-lhe: Senhor se foste tu que o levaste, diz-me onde o puseste e eu o irei buscar.

Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, aproximando-se, exclamou em hebraico: Rabbuni! – que quer dizer, Mestre! Jesus disse-lhe: Não me detenhas, pois ainda não subi para o Pai; mas vai ter com os meus irmãos e diz-lhes: Subo para o meu Pai, que é vosso Pai, para o meu Deus, que é vosso Deus. Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos: Vi o Senhor! E contou o que Ele lhe tinha dito[3].

Como foi sobretudo ela, entre outras mulheres, que reevangelizou os apóstolos e os fez regressar à missão para que tinham sido escolhidos, ficou conhecida como a Apóstola dos Apóstolos.

Para afastar as mulheres de responsabilidades pastorais na Igreja, continua-se a repetir, que Jesus de Nazaré não escolheu nenhuma mulher para o grupo dos Doze. Mas como é possível esquecer que foram elas as escolhidas pelo Ressuscitado para evangelizar os próprios Doze que tinham fugido perante o desastre da cruz?

Enquanto não se reconhecer este acontecimento fundador, continuar-se-á a arranjar falsas razões para lhes negar, na Igreja, o seu papel insubstituível. Isto é um crime anti pascal.


[1] Alfredo Teixeira (org.), Identidades Religiosas em Portugal. Ensaio interdisciplinar, Paulinas, 2012; pelo mesmo coordenador, a Imprensa Nacional publicou, 2022, Religião, Território e Identidade. Contextos Metropolitanos

[2] Act 2, 22-24

[3] Jo 20, 1. 11-18


Público, 09 Abril 2023