ANTÓNIO BARROS
[ Inconfidências. De uma carta a Diogo Marques ]
Amigo Diogo pergunta-me se vou em agosto ao arquipélago, e para dialogarmos sobre a sua “Residência Artística” em volta de Aragão. Provavelmente não terei agenda. Mas falamos. Por aqui trago uns avulsos dizeres. A “começar”:
U m B u r a c o n a A l m a
A bandeira portuguesa (d)enuncia: Um país a duas cores – vermelho de quase [esse de Mário de Sá Carneiro], e verde de: tudo por acaso [esse não o de Júlio Pomar]. Resta a heráldica armilar de guERRA [essa fica para as mágoas de António Aragão _H2O s].
Não há António Aragão (AA) sem mágoas. Essa que magoa e dispara um corpo para um leito até que a morte chegue. Observei o seu fim. E antes, tanto do seu princípio, princípios.
Não, eu não vou narrar episódios verdadeiros, até porque apr(e)endi também de, com, AA que não há nada mais inútil que a verdade [cito-me, situo-me].
Portanto ficamos pelo quase e pelo acaso a fazer bandeira de silêncios. No pino.
Fui para Coimbra em 1973, no “Estado Novo” com várias guerras ao fundo à espera que me formasse em Medicina para ir para o campo de combate socorrer os soldados que, hora sim, hora sim, pisavam as minas rebentando as pernas até aos testículos. Homens a acabar de ser homens. Um não serem mais homens. Esse fantasma.
Um dia de madrugada acordei para ir para as aulas de Anatomia Descritiva, as das 8 horas da manhã, mas a agitação em casa era enorme. “Não vás, hoje não há aulas, houve um golpe de estado”. Três rádios em simultâneo ligados faziam o relato. Era dia 25 de abril, estávamos em 1974. Daí até hoje já sabemos, ou pouco sabemos, aFinal. E lá estamos com um livro de cabeceira: “Um buraco na boca” de AA. Livro não de ler, mas de reler.
Há uma proposta de estudar este livro, com o poema “Poesia Urro” ao fundo. Luz para Diogo Marques acender.
Arquitectei um objecto-livro em processo convulsivo, tarefa aberta, ao qual dei para título uma voz que procura dialogar com “Um Buraco na Boca” de AA, e ao qual chamei: “Uma Luva na Língua”. E com uma luva na língua fui proibido de falar além de um Vulcânico PaLavrador. (Sabemos. Por isso estive preSente_ auSente no centenário de AA.)
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Estudava, então, medicina para poder depois seguir uma carreira na área da psiquiatria. Essa tendência que eu tinha para ouvir os outros, compreender, apr(e)ender, conduzir dentro dessas chamas que chAmam. Esse inferno. Os outros. “O inferno são os outros”, disse Sartre, e lá estamos.
Ao inferno já chegámos. E também tanto, ou o mesmo, sucede no contentor dos poetas. Trabalhei num outro contentor [Vostell Fluxus Zug] mas também neste [PoEx] aqui com AA, profundo, com P de Portugal ao fundo, no fundo, com um rosto de mulher, em lágrima, tipografia presa ao olho. P de preso. Dizendo o não dizível, indizível, P de proibido.
Como aspirante a psiquiatra era procurado pelos fugitivos de uma cultura judaico-cristã, mesmo quando se diziam judeus. Procuravam-me convulsivamente, como um confessionário, a confessarem-se. Da PoEx procuraram-me 5, todos os dedos da mão. Cada um, um dedo para amputar vestindo a luva. AA, esse, o dedo indicador.
Mas neste aparaDor, louceiro onde procurei arRumar os pratos vazios da vida, vivida, guardei em silêncio as mágoas. Essas águas tão transparentes e tão sujas até a lama [“aL(a)ma”]. Até à lava vulcânica, tão à mão [“Dá-me a mão, não as luvas”].
O que sei, não é saber, porque: é dizer de não dever fazer o dizer ser dito. Bem_dito ou mal_dito. Há um pundonor e um brio para fazer cumprir e continuar. Distintivo. Identitário.
Há o perigo de dizer a verdade, como peixes nadAntes, ca(n)ção inútil. Por isso chego no gesto, progesto, com obgestos, num estar auSente, preSente, s(e)Ente.
DiscEnte.
Palavra, que a palavra é lava. Lava.
ABraço
AB
Artitude para Paradise Museum of Joseph Beuys, Itália | 2023, António Barros