Um bom presente de Natal

 

 

 

 

 

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


  1. Sou velho e tive, desde muito cedo, um forte incómodo com muitas passagens da Bíblia. Chamar Palavra de Deus a determinadas afirmações e acções excedia, para mim, todos os mistérios. Um Deus que mata, e manda matar os inimigos do seu povo, não tem nada de divino. Por outro lado, rezar certos salmos não era rezar. Era blasfemar. O conjunto do povo católico não tinha esse problema porque a Missa era em latim. Os mais devotos aproveitavam para rezar o terço.

Ao estudar o Antigo Testamento (AT) com vários professores, em vários países e instituições eclesiásticas, fiz descobertas muito belas, mas era o Novo Testamento a minha renovada fonte de alegria, mesmo se era noite (S. João da Cruz).

Foi um meu antigo aluno, que se tornou o meu mestre acerca do AT, que me ajudou nas maiores dificuldades. Esse mestre era o dominicano Francolino Gonçalves (1943-2017), professor da Escola Bíblica de Jerusalém e membro da Comissão Bíblica da Santa Sé. Entre os seus escritos, distingo os muitos e substanciosos estudos publicados nos Cadernos ISTA, entre os quais destaco, Iavé, Deus de Justiça e de Bênção, Deus de Amor e de Salvação[1]. Neste estudo, apresenta dois Iaveísmos, o das relações entre Iavé e Israel, um Deus nacionalista, e o Iaveísmo cósmico, Deus da Criação, Deus de bondade e graça para toda a humanidade[2]. Uma descoberta libertadora.

Sabemos que a Bíblia é das obras mais traduzidas no mundo inteiro. Durante muito tempo, era comum verificar e lamentar que Portugal não fizesse parte desse mundo. Esse tempo parece ter passado a tal ponto que, hoje, temos vários professores e investigadores biblistas, mulheres e homens. Entre eles, o próprio Presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, e o Cardeal D. Tolentino Mendonça, Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, na Cúria Romana.

Também já não contamos com uma só tradução da Bíblia em português (Portugal e Brasil): Bíblia de Jerusalém, Bíblia Sagrada-Difusora Bíblica e o acontecimento maior, a tradução de Frederico Lourenço, já quase completa e iniciada em 2016, pela Quetzal Editores. Ad Experimentum, a Conferência Episcopal Portuguesa iniciou a publicação da tradução da Sagrada Escritura para uso oficial da Igreja Católica em Portugal e, futuramente, nos outros Países Lusófonos. Portugal já não é um deserto bíblico.

Para testemunhar e não esquecer as dificuldades dos estudos bíblicos na Igreja Católica, a Biblioteca Dominicana publicou, do fundador da Escola Bíblica de Jerusalém, Marie-Joseph Lagrange, O.P., Recordações Pessoais[3]. Foram tempos terríveis para a investigação bíblica e sua publicação.

Depois de algumas medidas liberalizantes, a Comissão Pontifícia Bíblica publicou, em 1993, A Interpretação da Bíblia na Igreja, um documento libertador na linha do Vaticano II, abrindo caminho aos diferentes métodos e abordagens da sua interpretação. Trabalho nunca acabado.

  1. De preocupação diferente com o AT, é o livro de Francisco Martins, A Bíblia tinha mesmo razão? As histórias de Israel e do Israel da História[4]. Estando eu a ler esta obra, alguém passou e disse em tom de gozo: perguntem a Galileu e à Inquisição! Quem assim me interpelava também podia ler com proveito este livro.

Esta obra notável responde ao que pergunta, da forma mais simples e rigorosa possíveis. Para a situar, o melhor é dar a palavra ao autor. Há quase 70 anos, em 1955, o jornalista e ensaísta alemão, Werner Keller, escreveu o que viria a tornar-se um dos maiores best-sellers da literatura da divulgação científica. Intitulado E a Bíblia tinha mesmo razão, o livro propunha-se mostrar, como se diz na introdução, que as descobertas arqueológicas, então disponíveis, confirmavam a veracidade dos relatos bíblicos. O que muitos consideravam mito ou lenda ou simplesmente folclore tinha realmente sucedido e, de acordo com o autor, era possível prová-lo cientificamente. Animado por tão ambicioso objectivo, Keller não se limitava a querer dar conta de eventos cuja historicidade seria, porventura, mais fácil de provar, como a conquista da terra de Cannã (a “terra prometida”), relatada no livro de Josué, ou a fundação do poderoso reino de David e Salomão, de que se ocupam os livros de Samuel e dos Reis.

Agora, o título do livro que o leitor tem entre as mãos transforma a afirmação de Werner Keller numa pergunta, substituindo a certeza pela dúvida. É uma grande e justificada viragem.

  1. Depois do rigoroso percurso desta obra, pela História do Israel Antigo, Francisco Martins conclui que a resposta à pergunta é tudo menos evidente. É inevitável reconhecer que responder simplesmente “sim” ou “não” empobrece a nossa compreensão não só do perfil e do horizonte da literatura bíblica, mas também da tarefa da reconstrução histórica.

A Bíblia tem “razão”, isto é, tem uma lógica na forma de se relacionar com a História. Antes de mais, é preciso ter consciência de que a rememoração do passado obedece não à simples curiosidade pelo que terá sucedido, mas a imperativos de ordem teológica.

A qualidade literária do testemunho bíblico influencia também, de forma decisiva, a perspectiva adoptada. Os géneros e as convenções literárias aos quais os textos aderem dão forma à arte bíblica de relatar o passado e devem (deviam!) também regular as nossas expectativas enquanto leitores.

O autor, um jovem jesuíta, é um investigador e já com um currículo notável que é, também, uma grande promessa. Nasceu em Lisboa, em 1983, e é jesuíta desde 2005. Foi ordenado sacerdote em 2015. Estudou Filosofia em Braga, Teologia em Madrid, Filologia Semita e História Antiga em Paris. É doutorado em Bíblia (Bíblia Hebraica/Antigo Testamento) pela Universidade Hebraica de Jerusalém (Israel). Atualmente, é investigador convidado na Universidade de Notre Dame (Indiana, EUA). É professor de Literatura Bíblica na Universidade Gregoriana, em Roma, e membro da Associação Bíblica Portuguesa e da Society of Biblical Literature (EUA).

A Bíblia não é um manual de História, mas também não é um labirinto de enganos. Que seja a biblioteca de um povo, de muitas épocas e de vários géneros literários, é bastante consensual entre os estudiosos. Ler a Bíblia como literatura é fundamental para não lhe pedir o que não pode dar e acolher o que ela nos oferece de maravilhoso.

Este livro é, paradoxalmente, um grande presente de Natal!

 

[1] Cadernos ISTA, nº 22 – 2009, Ano XIV, pp. 107-152

[2] Cf. In Memoriam Francolino Gonçalves, O.P. (1943-2017), Études Bibliques, 2022; Recebeu o Prémio 2021 da Academia Pedro Hispano, Casino Figueira. Nessa altura, apresentou o texto, Os Estudos Bíblicos hoje. Pluralidade dos métodos, das abordagens e dos resultados.

[3] Tenacitas, 2017 – original de 1967

[4] Temas e Debates, 2023


Público, 17 Dezembro 2023

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