MILTON REZENDE
Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, morou em Campinas (SP), Ervália (MG) e retornou a Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quinze livros publicados. Fortuna crítica: “Tempo de Poesia: Intertextualidade, heteronímia e inventário poético em Milton Rezende”, de Maria José Rezende Campos (Penalux, 2015).
www.miltoncarlosrezende.com.br . www.estantedopoetaedoescritor.blogspot.com.br
ALZHEIMER PREVENTIVO
debaixo da escada
eu escondi as minhas
lembranças ruins
e fechei as portas
de aço inoxidável.
para o quarto dos feios
eu carreguei meus monstros
desarticulados do passado
e deixei de venerá-los como
definitivos e sentenciosos.
num canto do pensamento
eu tranquei toda a maldade
dos homens disfarçada em
afetos e a genética de gestos:
o sexo responsabiliza o resto.
no porão da existência
eu parei de existir como
se fosse um feto afetado
pelas culpas que me jogavam
e muitas não eram devidas.
[na vida essa era a minha medida:
o julgamento precipitado e errôneo
que muitas vezes faziam de mim
e eu arrastava, carregava o fardo como
se fosse uma sentença definitiva e inapelável]
desci à mansão dos mortos
e suicidei-me no terceiro dia,
estou sentado à esquerda da mesa
de onde posso vislumbrar os vivos
comendo a última ceia cheios de si.
mesmo estando adoentado
eu aprendi a escapulir de mim
e levado a consultórios médicos
fui diagnosticado como um tipo
raro de alzheimer preventivo.
que consiste em subtrair a dor
antes que ela aconteça,
a extirpar um órgão qualquer
se necessário à sobrevivência,
a morrer antes que a morte sobrevenha.
o pior inimigo do homem
é o que ele anseia nos bastidores
de si e nos banheiros fechados,
nas camas onde a insônia deixa
claro o zumbi que habita e sorri.
Um Andarilho Dentro de Casa
ALGUNS HOMENS
Aqueles que esperam
que todos durmam
para então se revelarem
no escuro do mundo
agora despovoado
de leis e de homens
que foram fatigados
pela batalha diária
de se ganhar dinheiro
e etcetera e coisa.
Aqueles que se recolhem
quando todos já acordados
recomeçam o ciclo da vida
subitamente interrompido
para o ensaio da morte
e que assim em movimento
não percebem os sonhos
espalhados na noite
por gente incógnita
que digere o mundo
para o sustento possível
de uma impossível unidade
comum a todos os homens.
Aqueles para quem só é viável
o diálogo com os mortos
cuja imobilidade revela a calma
do que antes fora ânsia
ou simples impulso de debate
contra uma série de coisas
que só se percebe neutras
depois que se morre.
Aqueles seres anônimos
que constroem uma realidade
paralela à admissível pelo dia
e que não obstante
substitui o espaço de tempo
necessário ao aprimoramento dos homens
até que se consiga
a hipotética convergência da raça
afinal reconciliados em espécie e sub.
Aqueles que com seus hábitos
são uma curiosidade para todos do circo
e um enigma para si mesmos, palhaços
sem plateia e sem palco nesta vida.
O Acaso das Manhãs
ALCUNHAS
o poeta dos acasos
o poeta das manhãs
o poeta das areias
o poeta da fragmentação
o poeta das pedras
o poeta dos inventários
o poeta das sombras
o poeta sentinela
o poeta em fuga
o poeta das ausências
o poeta das escadas
que deságuam
dentro de si mesmo
o poeta dos silêncios
o poeta dos jardins
o poeta das simultaneidades
ele, às vezes, planta árvores.
O Jardim Simultâneo
AGUACEIRO
A chuva cessou de chover
e já agora eu posso
tirar as mãos dos bolsos
e atravessar a rua.
Mas já não tenho mãos
e nem tampouco posso
atravessar esta rua, pois
a água levou-me as pernas.
E a rua, embora chovida, está seca.
Eu fui a chuva que choveu e ninguém viu.
O Acaso das Manhãs
ADIAMENTO
Trago comigo meus poemas
que ainda não foram escritos,
simplesmente porque não se fizeram
e nem se recolheram à sua impossibilidade.
E vou deixando-os, portanto, para o dia
seguinte, para a manhã seguinte, para
a vida seguinte que não haverá.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
ACROBATA
um pessegueiro roxo
braços em formas de garras
dedos intumescidos
pernas retesadas.
quando estamos dormindo
tudo parece fácil:
pé fora da cama
e acrobacia de quedas.
Da Essencialidade da Água
A VOZ DO SILÊNCIO
Estou acordado
e não sonho,
mas a realidade
antecipada
me envolve.
A barba se me
desprende do rosto
fio a fio num frio
maior onde estou
me enregelando.
Tudo se dissolve
na aparência de ossos
de que fui formado,
e que é minha forma
mais resistente no mundo.
Mas a terra
(com seus vermes)
decompõe ao seu contato
todo o meu aprendizado
doloroso da vida.
E uma cova me absorvendo
transforma tudo o que fui
num triste resumo de pó
que um dia se chamou homem.
E que lhe deram um nome
(que tive), mas que a terra
aterra no tempo o traço
nominal dessa efemeridade.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
A VISITA
De súbito a chuva cessou.
Ponho-me a escrever sobre ti,
criatura sem carne
que me visita.
Não sei de onde vens,
mas sempre chegas
nas horas mais extenuantes
de minha fuga.
Fecho portas e janelas
para não te permitir
livre acesso sobre mim,
que de cansado me basto.
Mas tu me vens sem ser chamada
e mesmo sem chegar em forma clara,
sei que és minha consciência,
e te incorporo.
O Acaso das Manhãs
A VERDADE SOBRE A MENTIRA
Tenho dito mentiras
sem tomar consciência
de sua contextura falsa.
Não tenho desmentido o que digo
pois tenho a concepção de que minto
sobretudo para mim mesmo.
Sendo assim as minhas mentiras
não podem acarretar
na perda de qualquer afeição.
E já que é precisamente sobre a falsidade
que se alicerça o convívio entre os homens,
as palavras de mentira ou verdade que eu disser
nada significam de permanente num relacionamento.
Mas não posso deixar de convir
que assim fazendo, a cada dia
eu amanheço mais distante de mim.
O Acaso das Manhãs
A SOLIDÃO DO POEMA
O poema
necessita de um outro
poema
assim como o poeta
necessita
de uma con/vivência poética.
Os versos
não nascem do nada
assim, exclusivamente,
inspiração.
A noite
precede o sopro lírico
e ambos se integram
ao poema acabado.
O poeta,
este ser solitário,
desce das montanhas
de seus sonhos
para recolher os fragmentos
da realidade dos homens,
e com eles constrói no poema
uma unidade hipotética.
O Acaso das Manhãs
A SOLIDÃO DO POEMA
O poema
necessita de um outro
poema
assim como o poeta
necessita
de uma con/vivência poética.
Os versos
não nascem do nada
assim, exclusivamente,
inspiração.
A noite
precede o sopro lírico
e ambos se integram
ao poema acabado.
O poeta,
este ser solitário,
desce das montanhas
de seus sonhos
para recolher os fragmentos
da realidade dos homens,
e com eles constrói no poema
uma unidade hipotética.
O Acaso das Manhãs