Sim, fará sentido celebrar-se o 25 de Abril. Mas a forma de celebração é que pode ser discutível.
Por mim, que fui um dos beneficiados pelos factos desse dia, pois estava para ser preso, tal como Manuel Bagina Garcia e, em Lisboa, Álvaro Guerra, no dia 27, por eu ser o chefe-de-redacção do jornal portalegrense oposicionista “A Rabeca”, por ter sido um dos propostos como candidato a deputado para as últimas eleições durante o marcelismo (que não puderam contar com os homens da Oposição), de juntura com Nuno Teotónio Pereira, o marquês de Fronteira, Ventura Trindade e o já referido Bagina Garcia e, além disso, desenvolver forte acção subversiva (como os situacionistas diziam…) no Clube de Futebol do Alentejo e um pouco pelos sítios a que tinha acesso – fui pois salvo por esse acontecimento e, mais que não fosse, por isso tenho de me congratular.
No entanto, o que depois sucedeu – grupos de dada extracção tentarem aleivosamente instaurar uma outra ditadura ainda mais opressora e violenta do que a que acabara de tombar, obrigam-nos a ser mais ponderados e argutos, aconselhando-nos a questionarmos o que de facto pretendem os que teimosamente buscam celebrar uma data em moldes que, pelo estado que o país atravessa, se mostram claramente desaconselháveis.
A meu ver, tentam enroupar a comemoração da data em algo que aponta para a nostalgia de, nos anos da brasa do PREC de má memória, não terem conseguido atingir o estado de específico autoritarismo que substituiria o outro que os militares tinham derrubado com o sequente entusiasmo popular.
Vou, sim senhor, celebrar o vinte cinco de Abril. No remanso da minha casa, sem manifestação pública – pois não necessito dela – com a minha tribo nuclear, pois outros que também a celebrariam já não fazem parte do mundo dos vivos. E vou celebrá-lo, aqui o digo, com a lembrança de figuras tutelares que respeito e considerei: Salgueiro Maia, (que acompanhei a enterrar em Castelo de Vide), Salgado Zenha, Francisco Sá Carneiro, Emídio Santana, Mário Cesariny (que nunca, verdadeiro democrata que era, se curvou ante os que tentavam adulterar a data e o facto) e, por último, Jaime Neves que soube manter a ética e a lucidez que hoje nos permitem ainda ter uma Democracia (posto que passível de justas críticas).
E o Tempo, ao passar, aquilatará de todos os protagonistas – os que foram, estiveram e fizeram, pois que como me referiu há anos, numa informal conversa, um mestre de Coimbra, “À História eles não escapam!“.
Saudando-vos com a estima de sempre e com o proverbial cordial abraço, aqui vos deixo com um poema que foi a minha participação na Antologia “POEMABRIL”, organizada e editada por ANTÓNIO ARNAUT, Coimbra.
Em Lisboa, na rua
do Alecrim, recordo-me como
se fosse hoje: uma casa
sombria, onde foi bom ficar
minutos e minutos entre memórias
quotidianas de velhos alfarrábios, livros
para passeios vulgares de compra e venda. Ali
parei. Como um barco, uma nuvem, uma presença
obscura de gentes para sempre perdidas, nessa
humilíssima loja me detive: o pó, o ping-pong
da conversa. E veio a esperança saltando sobre nós
como se o oceano nos tocasse nos olhos, lembranças
de Índias sem pimenta e sangue. E logo, por acaso
um estrondo lá fora. Mistério. Cumplicidade. E assim
tive tempo de Abril antecipado na fala do colega
de amargura: “Ainda não é a bernarda, caro amigo. Podes continuar
a ver os livros que aí estão. Ainda (que chatice!)
está por anos!”. Nessa tarde, numa
vendedeira de rua, comprara pêssegos. Era
em Julho. Nas caras que passavam pareceu-me distinguir
por entre o resto todo, agonia e raiva. Homens, mulheres
crianças como em todos os tempos. Senti então, enquanto
no Tejo tombava um sol devastado, que um dia
um estrondo não seria apenas o dum pneu que estoira. O coração
tivera, pobre dele, Abril antecipado e, aberto
ficava de conserva mais uns tempos, criando
talvez outras janelas para todos os lados, esperando
para todas as horas a hora enfebrecida como um sulco de lume
nas espáduas dos amantes. A hora
ardente e dura como cimento secular. Foi isto em
setenta e dois. Depois
a vida continuou, vaga e solene, tenaz e sonolenta. Tive
amores e amigos mortos, alguns suicidados, outros
feridos de pasmo e solidão. E rochedos erguidos
nos caminhos do mundo. E quando Abril chegou
com seus favos, seus deuses, suas flores
suas praias, seus bosques, sua chuva benigna
a memória da esperança não morrera. O poeta fala
no tempo. É seu o tempo imenso
dos vivos e dos mortos, dos que nunca
contemplaram face a face o seu destino. Por ser um espelho
ardido, é a palavra. O signo do instante destruído. Foi
o Abril dos ombros curvados que me deu Abril.
Mesmo que Abril nada me desse, senão
senão esta tristeza de tão pouco
Abril ter sido para uma sede de primaveras, feitas
para o pão, para o riso, para o tempo intacto
do livre Verão dos homens sob as estrelas de Agosto.
ns