Um Abril luminoso e livre

 

NICOLAU SAIÃO


  Sim, fará sentido celebrar-se o 25 de Abril. Mas a forma de celebração é que pode ser discutível.
   Por mim, que fui um dos beneficiados pelos factos desse dia, pois estava para ser preso, tal como Manuel Bagina Garcia e, em Lisboa, Álvaro Guerra, no dia 27, por eu ser o chefe-de-redacção do jornal portalegrense oposicionista “A Rabeca”, por ter sido um dos propostos como candidato a deputado para as últimas eleições durante o marcelismo (que não puderam contar com os homens da Oposição), de juntura com Nuno Teotónio Pereira, o marquês de Fronteira, Ventura Trindade e o já referido Bagina Garcia e, além disso, desenvolver forte acção subversiva (como os situacionistas diziam…) no Clube de Futebol do Alentejo e um pouco pelos sítios a que tinha acesso – fui pois salvo por esse acontecimento e, mais que não fosse, por isso tenho de me congratular.
   No entanto, o que depois sucedeu – grupos de dada extracção tentarem aleivosamente instaurar uma outra ditadura ainda mais opressora e violenta do que a que acabara de tombar, obrigam-nos a ser mais ponderados e argutos, aconselhando-nos a questionarmos o que de facto pretendem os que teimosamente buscam celebrar uma data em moldes que, pelo estado que o país atravessa, se mostram claramente desaconselháveis.
   A meu ver, tentam enroupar a comemoração da data em algo que aponta para a nostalgia de, nos anos da brasa do PREC de má memória, não terem conseguido atingir o estado de específico autoritarismo que substituiria o outro que os militares tinham derrubado com o sequente entusiasmo popular.
 
  Vou, sim senhor, celebrar o vinte cinco de Abril. No remanso da minha casa, sem manifestação pública – pois não necessito dela – com a minha tribo nuclear, pois outros que também a celebrariam já não fazem parte do mundo dos vivos. E vou celebrá-lo, aqui o digo, com a lembrança de figuras tutelares que respeito e considerei: Salgueiro Maia, (que acompanhei a enterrar em Castelo de Vide), Salgado Zenha, Francisco Sá Carneiro, Emídio Santana, Mário Cesariny (que nunca, verdadeiro democrata que era, se curvou ante os que tentavam adulterar a data e o facto) e, por último, Jaime Neves que soube manter a ética e a lucidez que hoje nos permitem ainda ter uma Democracia (posto que passível de justas críticas).
    E o Tempo, ao passar, aquilatará de todos os protagonistas – os que foram, estiveram e fizeram, pois que como me referiu há anos, numa informal conversa, um mestre de Coimbra, “À História eles não escapam!“.
   Saudando-vos  com a estima de sempre e com o proverbial cordial abraço, aqui vos deixo com um poema que foi a minha participação na Antologia “POEMABRIL”, organizada e editada por ANTÓNIO ARNAUT, Coimbra.
 
    
ABRIL  ANTECIPADO

 Em Lisboa, na rua

do Alecrim, recordo-me como

se fosse hoje: uma casa

sombria, onde foi bom ficar

minutos e minutos entre memórias

quotidianas de velhos alfarrábios, livros

para passeios vulgares de compra e venda. Ali

parei. Como um barco, uma nuvem, uma presença

obscura de gentes para sempre perdidas, nessa

humilíssima loja me detive: o pó, o ping-pong

da conversa. E veio a esperança saltando sobre nós

como se o oceano nos tocasse nos olhos, lembranças

de Índias sem pimenta e sangue. E logo, por acaso

um estrondo lá fora. Mistério. Cumplicidade. E assim

tive tempo de Abril antecipado na fala do colega

de amargura: “Ainda não é a bernarda, caro amigo. Podes continuar

a ver os livros que aí estão. Ainda (que chatice!)

está por anos!”. Nessa tarde, numa

vendedeira de rua, comprara pêssegos. Era

em Julho. Nas caras que passavam pareceu-me distinguir

por entre o resto todo, agonia e raiva. Homens, mulheres

crianças como em todos os tempos. Senti então, enquanto

no Tejo tombava um sol devastado, que um dia

um estrondo não seria apenas o dum pneu que estoira. O coração

tivera, pobre dele, Abril antecipado e, aberto

ficava de conserva mais uns tempos, criando

talvez outras janelas para todos os lados, esperando

para todas as horas a hora enfebrecida como um sulco de lume

nas espáduas dos amantes. A hora

ardente e dura como cimento secular. Foi isto em

setenta e dois. Depois

a vida continuou, vaga e solene, tenaz e sonolenta. Tive

amores e amigos mortos, alguns suicidados, outros

feridos de pasmo e solidão. E rochedos erguidos

nos caminhos do mundo. E quando Abril chegou

com seus favos, seus deuses, suas flores

suas praias, seus bosques, sua chuva benigna

a memória da esperança não morrera. O poeta fala

no tempo. É seu o tempo imenso

dos vivos e dos mortos, dos que nunca

contemplaram face a face o seu destino. Por ser um espelho

ardido, é a palavra. O signo do instante destruído. Foi

o Abril dos ombros curvados que me deu Abril.

 

Mesmo que Abril nada me desse, senão

senão esta tristeza de tão pouco

Abril ter sido para uma sede de primaveras, feitas

para o pão, para o riso, para o tempo intacto

do livre Verão dos homens sob as estrelas de Agosto.


        ns