Frei BENTO DOMINGUES, O.P.
- Faz parte da diferença humana a capacidade de perguntar, de investigar, de receber e criar as mais diversas formas de expressão cultural alimentadas pelo sentido do humor. Da consciência da nossa infinita ignorância brota a sabedoria do sorriso perante as vazias promoções do carreirismo, seja em que domínio for. A realidade será sempre mais vasta do que todas as nossas ciências, filosofias e religiões.
É verdade que também faz parte da diferença humana a possibilidade de desenvolver cada vez mais ciências, técnicas e ideologias que destroem as suas melhores criações. Verificamos, a toda a hora, que a chamada globalização não é garantia da universal solidariedade entre os povos. Mas é possível.
O Papa Francisco, durante os seus dez anos de pontificado, não desistiu nem desiste de associar pessoas, movimentos cívicos, políticos e religiosos, para fazer deste mundo a casa de todos e para todos.
Continuamos a perguntar: com tantas capacidades para reduzir os males no mundo e aumentar as condições do gosto de viver, porque regressamos à guerra, uma das mais velhas formas de estupidez?
Em vez de investir em universalizar os meios de uma vida mais feliz para todos, aumentamos e sofisticamos os meios de fazer mal, de destruir, de provocar milhões de deslocados, de refugiados e a quem se nega um lugar neste mundo.
Por essa razão, Bergoglio acaba de ir à Hungria, um país de maioria católica e protestante para lembrar o essencial. A esta grande maioria falta-lhe praticar um humanismo inspirado no Evangelho e enraizado em duas pistas fundamentais: reconhecer-se como filhos amados do Pai e amar cada um como irmão.
Perante tantos desesperados que fogem dos conflitos, da pobreza e das alterações climáticas, é urgente que nós, enquanto Europa, trabalhemos em vias seguras e legais, em mecanismos partilhados face a um desafio que não pode ser travado pela rejeição, mas que deve ser abraçado para preparar um futuro que, se não for em conjunto, não será.
Neste tempo pascal, confrontamo-nos de forma mais viva com as contradições que podem acompanhar as próprias celebrações litúrgicas, com os seus textos, gestos e músicas admiráveis, nas diversas dimensões da vida cristã: vida pessoal, familiar, profissional, cívica, política e económica. Diante destas e outras incongruências, foi-se criando um ambiente, ora de indiferença ora de abandono efectivo da prática religiosa. Não são a única alternativa.
Para que seja realizado o enlace dessas diversas dimensões, a melhor alternativa é a nossa conversão nunca acabada. Só com esse enlace é possível saborear o movimento suscitado por Jesus de Nazaré, para que todos tinham vida e vida em abundância.
Não estou a inventar. A Primeira Carta de S. João começa desta maneira: O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram a Palavra da Vida, porque a Vida manifestou-se: nós vimos e damos testemunho e vos anunciamos esta Vida eterna que estava com o Pai e que se manifestou a nós.
O que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos, para que estejais também em comunhão connosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. Escrevemos isto para que a nossa alegria seja completa.
O evangelista João também não inventou nada. Foi da boca de Cristo que ouviu esta declaração solene: Digo-vos isto para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena e ninguém vo-la possa tirar[1].
- Isto foi dito há dois mil anos. Não é evidente na nossa sociedade e talvez nunca tenha sido evidente, mas é para nós, e para sempre, que foi dito. Essa alegria é preciso procurá-la no mundo da nossa experiência. O mundo na sua complexidade – não a fuga do mundo – será sempre o nosso verdadeiro lugar teológico. A mística da fuga do mundo desenvolve-se numa falsa teologia.
Como é sabido, na Bíblia, a palavra mundo tem vários significados. Uma das narrativas poéticas da criação termina com a exclamação: Deus viu que tudo era muito bom! No entanto, o ser humano pode usar a sua liberdade para fazer o pior, tornar este mundo inabitável, mas também o pode transformar num novo jardim. É esse o sentido incarnacionista da esperança cristã. Deus não fez só a dança da criação. Tornou-se nosso aliado, um de nós, para relançar a tarefa nunca acabada da nossa conversão.
Como diz Auden, poeta católico, «eu não sei nada que cada um de vós já não saiba. Se estivermos lá, onde a Graça de Deus dança, também nós dançaremos». Tolentino de Mendonça lembra a ronda maravilhosa dos eleitos que Frei Angélico pintou no meio de anjos músicos todos de mãos dadas. É uma imagem muito mais próxima da tradição bíblica do que se poderia imaginar, como canta o Salmo 33: Alegrai-vos no Senhor, louvai o Senhor com cítaras e poemas, com a harpa das dez cordas louvai o Senhor; cantai-lhe um cântico novo, tocai e dançai com arte por entre aclamações[2].
- O cristianismo não é propriamente conhecido por ser a religião da alegria e é uma pena. Como escreveu Nietzsche, o cristianismo seria muito mais credível se os cristãos vivessem em alegria.
É preciso não perder a leitura do texto do Evangelho deste Domingo. É uma narrativa de despedida. Jesus notou que os seus discípulos estavam perturbados com o pressentimento de uma triste separação. Jesus apressa-se a apaziguá-los com expressões altamente teológicas e enigmáticas.
Quem escreveu o texto captou bem o humor no diálogo de despedida entre o Mestre e os discípulos. Não se perturbe o vosso coração. Para onde eu vou, conheceis o caminho.
Reacção de Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais, como podemos conhecer o caminho? Jesus respondeu-lhe: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim. Se me conheceis, também conhecereis o meu Pai. Desde agora o conheceis e o vistes.
Esta resposta só aumentou a confusão dos discípulos que Filipe tenta resolver de forma prática: mostra-nos o Pai e isso nos basta!
Jesus suspira fundo: Há tanto tempo que estou convosco e tu não me conheceste, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como podes dizer, mostra-nos o Pai? Não crês que estou no Pai e o Pai está em mim? As palavras que vos digo, não as digo por mim mesmo, mas o Pai, que permanece em mim, realiza as suas obras. Acreditai, ao menos, por causa destas obras. Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim fará as obras que eu realizo e fará até maiores, porque vou para o Pai[3].
Este diálogo, situado no passado, não é só do passado que fala. É um texto sobre o futuro da Igreja, sobre o futuro das suas tarefas de evangelização, em cada época, segundo o ritmo dos problemas que vão surgindo. Houve épocas muito criativas e outras que sufocaram a criatividade. Interessava mais assegurar a permanência do passado do que o carisma da inovação.
Tudo no cristianismo é por causa da alegria. Sempre ameaçada. Não podemos, no entanto, desistir deste caminho de Deus, caminho de irmãos.
[1] Cf. Jo 15, 11; 16, 22
[2] Cf. Tolentino Mendonça, Testemunhar o Bom Humor de Deus, in Encontros do Lumiar
[3] Cf. Jo 14, 1-12
Público, 07 Maio 2023