120 noites de Eros, de Floriano Martins, traz por subtítulo “Mulheres surrealistas”. Com sua autorização, publicamos as introduções, dele e de Jacob Klintowitz, que esclarecem a importância e as circunstâncias culturais desta coletânea, bem como os textos referentes às mulheres portuguesas selecionadas: Isabel Meyrelles, Luiza Neto Jorge e Maria Estela Guedes.
JACOB KLINTOWITZ
Tudo o que somos
Nós habitamos o reino das premonições… Floriano Martins
Estamos acostumados a ver Floriano Martins realizar projetos difíceis, complexos, sensíveis, com poucos recursos materiais e em tempo muito exíguo. Só não são tarefas impossíveis porque ele objetivamente nos prova que são factíveis. Evidente, depois que ele as realiza, elas continuam a ser muito difíceis. Sempre, para Floriano Martins, propor para si mesmo trabalhos difíceis é uma maneira de se confrontar com o âmago das coisas do mundo e extrair desse diálogo o sentido de sua vida. Não apenas o sentido da vida humana ou do percurso da espécie, mas especialmente a razão de seu próprio ser. Poucas pessoas conheci que se interroga tanto sobre o seu caminho.
Certamente Floriano Martins tem uma ancestral percepção religiosa do percurso, pois ele outra coisa não fez na sua existência senão re-ligare as partes do mundo. O seu, nessa perspectiva, é um desenho complexo e belo. Quando conheci as fotografias que fazia e que tratava e apresentava com simplicidade, como se fossem meras ações cotidianas, eu organizei uma mostra em um importante centro cultural paulista para as tornar públicas. Eram pequenas montagens, cenários mágicos feitos de materiais diversos e se constituíam em universos de encantamento, lugares ficcionais para vivermos sonhos de prazer sutil.
Onde ele atua e não religa partes de linguagem, percepções, sonhos, vidências, premonições?
Floriano Martins está sempre perto do coração selvagem da vida. Ele pulsa com ele. Penso que o objetivo de seu percurso, o que melhor define a saga de sua existência é a sua incessante procura dos modelos essenciais, a busca total do seu ser por encontrar os símbolos e a vivência do símbolo. Essa é a essência da nossa civilização, o ponto mais alto a que chegamos, o reconhecimento do símbolo e o entendimento do símbolo como a emanação enérgica principal da vida individual e coletiva. E a vitalidade poética de Floriano consiste exatamente nessa consciência e é dela que retira a anima e o animus que lhe permite tudo. Em Floriano sempre encontramos o Hermes que nos traz a mensagem dos deuses e o Exú que nos ajuda a viabilizá-la.
Este livro, 120 noites de Eros é o resumo dessa atividade multiforme e incessante do autor. É de uma ousadia extraordinária, pois se confronta, não há como não pensar isto, com os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, e oferece, a sua contradição fundamental. À tese de que tudo é possível devido à ausência de Deus, em Sade, encontra o seu oposto em Floriano, pois nele encontramos a tese de que a ética, e nela a criação humana, é uma construção social e psíquica dos milênios da espécie humana. Nada, portanto, é permitido fora da ética e da construção simbólica do psiquismo.
Floriano Martins é um dos mais profundos estudiosos do surrealismo da nossa época. A sua contribuição é imensa, abrangente e poética. O que este autor faz, o faz em uma linguagem incandescente. E tem essa coisa única que a dificuldade oferece, a pobreza de recursos para a cultura, constante em países imaturos, a liberdade. Nada precisa ser submetido a institutos, fundações, associações. Nada é dado a artistas como Floriano Martins, e nada, em compensação, lhe é cobrado e exigido e conformado. Ele é o seu próprio mecenas e o inventor de sua liberdade.
Este livro tem, na primeira parte, um ensaio instigante sobre a cultura e o surrealismo. O autor condensa o seu extremo saber sobre o assunto e o faz com riqueza de argumentos e detalhes. É um ensaio original, forte, mas pleno de referências e alusões. O autor é soberano no assunto e tem a peculiaridade do domínio da escrita, pois a sua prosa é derivada diretamente das formas poéticas. Talvez nunca ele tenha sido tão pleno. Neste ensaio encontramos o homem maduro, o escritor, o poeta, o ensaísta, o editor, o inventor de revistas, editoras, performances.
A segunda parte está incluída nos prodígios aos quais Floriano nos habituou. Ele faz 120 retratos literários de mulheres surrealistas. Utiliza vários critérios de seleção, mas o que ressalta em todos os retratos, é a adesão ao espírito do surrealismo. Para se ter noção da dificuldade desse trabalho de criação e de formação de uma antologia, galeria de mulheres notáveis, basta saber que nunca foi feito antes.
É lírica a ideia de retratos. É uma permanente elaboração literária. A distância da biografia é muito boa, pois se afasta da vulgarização contemporânea em torno das biografias, com a valorização de fatos e factoides, e a anêmica percepção da qualidade artística e da autêntica originalidade. A criação dos retratos é fundada em dois elementos essenciais. A percepção poética da obra e do discurso dessas mulheres e a recuperação de sua importância social e local, pois se constitui, quanto à origem, num amplo arco geográfico.
Estamos diante de um livro que imediatamente se tornará referência obrigatória no estudo do surrealismo. E, mais amplo ainda, se tornará em peça importante para o conhecimento do processo cultural de nossa época e na apresentação de figuras humanas que, às vezes com imensa dificuldade, se constituíram e se constituem em parâmetros de excelência e de virtude; a virtude entendida como a lealdade a si mesmo, ainda que ao custo das eventuais incompreensões de uma época de grandes transformações, como é a nossa.
FLORIANO MARTINS
120 NOITES DE EROS . MULHERES SURREALISTAS
Fortaleza & São Paulo
Editora Cintra & ARC Edições
2020