TRIPLOV entrevista FLORIUM BLAVESKO

 

 

 

 

 

ZUCA SARDAN & FLORIANO MARTINS


ARAUTO

Manhosamente incrustada no majestoso palacete luso-tropical em estilo dinâmico, a sede provisória do Triplov sonda a possibilidade de receber para uma boa conversa um dos mais prestigiados ilusionistas de nossa época, Florium Blavesko. Ele acaba de criar um palácio de papelão, arquitetura que alcança um perfeito equilíbrio entre o invisível e o transparente. Como bem sabem nossos leitores, O papelão é um dom dos papeleiros do Nilo, para enganar o Destino. O mortal se escapa daqui; o Destino o escorava dali… Vamos ver no que isto pode dar. Mas eis, vejo aproximar-se uma dama e… ora!, vou bater o bastão presto PAF-PAF-PAFFF!!! E agora com vocês…

 

ZUCA SARDAN

Dama, Arauto de bosta, é o cu da pata preta!… Ponha um pincenez na bicanca, Seu Admeto de Bosta… Haja saco de cossaco!… Pois é, Florio, que tal se acaso encetássemos uma entrevista, contando com a participação inopinada de Anita Borgia, sobrinha-neta do genial Papa Borgia, um santo, que por sua sábia bula, mudando um pouco mais a Oeste o Meridiano das Tordesilhas, garantiu a existência do Brasil… e de nossa atual entrevista. Ou os prutucas ficariam acampados na ilha Fernão de Noronha. Sua sobrinha-neta, ora já talvez, com sua manha florentina, escondida atrás de uma das colunas gregas magistralmente imitadas em papelão-mastigado do pataphysico palco do Auditório, uma joia architectônica psychodélica do architecto Orgaz Maya.

 

FLORIUM BLAVESKO

O papelão é a casa dos desvalidos. Os precavidos colecionam papelões desde os seringais da infância. Ao invés de ode, celulose…

 

ZUCA SARDAN

O papelão é como a música… já vem da infância, tal como o Mozart menino de violino…

 

FLORIUM BLAVESKO

Amanhã coruja vai fazer ninho em casinha de papelão,

deitei pedacinhos do santo de gesso, São José que se

partiu, hospitalizado em bom papelão, amanhã o refaço.

Papelão, papelão, que escola boa de recomeçar…

De remendo em remendo, a cada dia um novo repente.

 

ZUCA SARDAN

Magnífico, Florium!

 

FLORIUM BLAVESKO

Este poema, escrito ontem mesmo, talvez faça parte de uma série que ando escrevendo pelas mãos de uma diaba que ainda não quer se revelar, heterônimo com o qual publicarei um livro.

 

ZUCA SARDAN

Meus augúrios do maior sucesso.

Prepara-te… porque se o sucesso for grande… terás de te travestiçar pras photos!…

 

FLORIUM BLAVESKO

Sim, já me anteciparei e cuidarei de uma breve série fotográfica; pedirei a Woman Reina que cuide dos cliques mágicos, por certo, por certo.

 

ARAUTO

[Olha súbito, nervoso, o relógio] Ai!, cáspite!!! Eu estava meio cochilando e o espetáculo já começou!… Mas enfim, vamos fingir que só agora a peça vai começar, após eu bater o bastão, e saudar o… DISTINTO PÚBLICO!!! PAFF-PAFF!!! PAFFF!!!

 

[silêncio indefinido, capeado pelo acrílico da incredulidade. Arauto olha para Zuca Sardan em sinal de inquietação. O que estará havendo? Onde está a dama entrevistadora, cujos passos já se ouvia aproximando-se do centro da redação?]

 

CORTINISTA GODOFREDO

[sottovoce, por trás do pano] E agora, Arauto, se a plateia se impacienta?…

 

ARAUTO

Pois é, Godô, agora sentamos na coxia à espera de Anita, a prometida dos deuses…

 

CORTINISTA GODOFREDO

Tudo bem, mas se ela seguir não chegando, o povão vai começar a s’amotinar… e aí então?…

 

VESPINA

Meu senhor, isto é um absurdo. O senhor quer ser entrevistado ou prefere se entrevistar sozinho? Por que?

 

ARAUTO

Ah finalmente alguém chegou. Talvez fosse outra a dama esperada, mas agora pelo menos temos como acalmar o povão…

 

VESPINA

Ah, era por isso? Estava esperando pela Anita? Pela Papisa também? [Vespina ri até chorar e finalmente gargalha. Depois seca as lágrimas e fica muito séria de novo.] Anita está viajando, só volta daqui a três anos e a Papisa está em retiro espiritual com um pajé amazônico. E nenhuma das duas é jornalista, meu senhor, como iam entrevistá-lo, o que o senhor tem na cabeça?

 

CORTINISTA GODOFREDO

A cabeça custa a crer o que tenha, de quem herdou, pra quem vai dar.

 

VESPINA

Tudo bem, vamos começar de novo. [Estendendo a mão, cada vez mais séria.] Boa tarde, meu senhor. Como vai o senhor? E a sua esposa? Soube que o senhor agora é transformista. Verdade? Fake news?

 

FLORIUM BLAVESKO

Jamais fui tão destratado por qualquer canal de notícias! Como vou querer ser entrevistado, se estou metido nessa ousadia arquitetônica de criar gigantescas urbes de papelão! Ora, que destino mais incerto o da roda da fortuna! A mocinha achou de se pegar com o espectro escandaloso da trama, me azucrinando com essa de transformismo. De qualquer jeito, estou disposto a começar de novo o que sequer havia começado. Aqui estou. Façam de mim a sua próxima notícia!

 

DYRCEO

[Entra, de microfone na mão.] Bom-diiiiiiiiiiaaaaaaaaaaaaaaaaaa, para todas no palco e na plateeeeiiiaaaaaa!!!

 

PLATEEEIA

DYRCEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEU!!!! DYRCEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEU!!!!

 

ARAUTO

[Entra, indignado, e interpela Dyrceo.] E quem é o senhor, para entrar assim no palco??? Fora!!!!!

 

PLATEEEIA

Fora você, Arauto Buuurrroooooo!!! Fora, Panacaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!

 

DYRCEO

Sentiste, rapaz, a minha importância?… Eu sou Dyrceu, o Locutor favorito das Ouvintes da Rádio Tupy!…

 

FANZOCAS

[Em delírio] DYYYRRRRRRCEEEEEUUUUUUUUU!!!!

DYYYYYRRRRCEEEEEEEEEEEUUUUUUUUUUUUUUUUUUU!!!

 

DYRCEO

Não se preocupe com Dona Vespina, Doutor Blavesko! Faça a entrevista comigo. A Rádio Tupy tem alcance em todo o Globo Terrestre!!!

 

FLORIUM BLAVESKO

Como fazer a entrevista contigo! Eu sou a notícia! O esplendor do fato inspirado e insubstituível! O primeiro heterônimo feminino criado por um homem e o autor de uma expansiva obra arquitetônica feita no mais legítimo papelão egípcio!

 

DYRCEU

[De microfone.] A Senhora não quer que eu a entreviste, Dona Vespina? Seria magnífico, imagine só, na Rádio Tupy: A Entrevistadora Entrevista

 

VESPINA

Ótima ideia, Dyrceu! Eu entrevisto o transformista e você entrevista a entrevistadora. Será a primeira entrevista simultânea da História.

 

DYRCEU

Mas claro, Dom Florium, que o Senhor é a própria Notícia!!! Por isso estou aqui… para… captar a Notícia!!! E lançá-la pela Rádio Tupy em todo o Globo Terráqueo… e pelos satélites interplanetários russos, americanos e chineses para o Cooosssssssmmmoooooooooooooooooo!!! Temos acordo com a TV Medéia, para distribuição televisiva apoiando a nossa irradiação no Brasil e toda a América Latina!!! Tudo isso sob o alto patrocínio do Café Cometa!!!

 

FLORIUM BLAVESKO

[Estala uma gargalhada excepcional.] É bem possível que agora nos entendamos. Alguém me sirva uma batida de saquê com tangerina, enquanto aguardo as perguntas. Três pedras de gelo…

 

ARAUTO

Que está esperando, Godô?… Traga uma bandeja de drinks e aperitivos pro ilustre elenco!… e… a batida de saquê com tangerina, pro Doutor Blavesko!…

 

CORTINISTA GODOFREDO

Pra já, Admeto, parto feito flecha e logo-logo chegarei.

 

DYRCEO

Pois então, Doutor Blavesko, como se sente, agora que se precipita nesta metamorfose de autoduplicação?

 

FLORIUM BLAVESKO

Agora que as pitangas já reconhecem as pradarias de onde vieram, sim, eu diria que me sinto em casa, casa dupla, bem pensado, pois se souberem o que perguntar certamente teremos a melhor explanação sobre heterônimos e aproveitamento papelônico em conjuntos residenciais. Por onde começamos, então?

 

DYRCEO

Precisamos de um pequeno aproche histórico, pra que nossas queridas ouvintas e estudiosos ouvintos… pois, Doutor Blavesko, já podeis perceber minhas preocupações com o sexo das palavras… o vocábulo Ouvinte é visivelmente um transexual, algumas vezes é O ouvinte, outras vezes A ouvinte… meu professor de gramática, o impoluto letradíssimo Frei Feijão, ensinou-me que a luta contra o transexualismo deve começar com o combate à subversão idiomática… o vocábulo Ouvinte é um transexual descarado que precisa ser enquadrado. Todo o cuidado é pouco, Doutor Blavesko, contra a orgia de transgressão sexual que estamos vivendo neste século 21, perverso, subversivo, safado… Que acha o senhor, Doutor Blavesko?…

 

FLORIUM BLAVESKO

Nossa primeira atenção deve ser em relação à retórica. Ela é a verdadeira caixa de marimbondos que imprime perigo à espécie humana. E é justamente uma invenção humana. Distorção semântica em nome de um preconceito desvalido. Já vivemos este ciclo pastelônico com uma presidenta da coisa pública. O substantivo de dois gêneros, que hoje é de mil gêneros, é um modo bastante útil de aceitação da diversidade, e não o contrário. Para mim soa patética a fórmula de inclusão encontrada pela bipolaridade senhores e senhoras, brasileiros e brasileiras, prezados e prezadas… O acento no politicamente correto não reflete senão uma pobreza de espírito. E geralmente quem o pratica, nos bastidores é um verme. Já em relação à transgressão sexual, até onde ela existe, há que separar a busca de escolhas do modismo e sua consequente orgia de classificações. Sempre penso naquele alfinete no dorso das borboletas em uma coleção.

 

DYRCEO

Magnificamente lembrado, Doutor Blavesko, o dramático caso da nossa Presidenta!… Tratou-se do primeiro exemplo de luta gramatical contra o manhoso ardil dos substantivos transexuais de saírem impunemente passeando pelos textos, sem que as autoridades percebessem e pusessem um freio ao perigoso precedente. Nossa indômita Presidenta, possivelmente inspirada pelos sermões do alerta Frei Feijão, foi a primeira personalidade a se levantar contra este conformismo gramatical que seria a preparação da Queda da Bastilha Familiar face a onda colossal de Suname que afundou os alicerces morais da Família Iluminista. Se estiverem vendo, pela lucarna com telescópio do Paraíso, a que se refere Dante, a esbodeação globalizada deste Século 21 Pós-Moderno, imagino o espanto e revolta de nossos mais ilustres pensadores, o Águia de Haia, e nosso Imperador, o segundo, por suposto. Felizmente ainda há moscas virtuosas… Aliás, achei os versos de Aurora Leonardos inspirados por uma sadia espiritualidade, voltada ao lar, e aos bons ensinamentos de Frei Feijão.

 

FLORIUM BLAVESKO

Suponho que estás aplicando o Taco Disparato em tudo o que digo. O Taco Disparado era um mecanismo de embrulho na lógica utilizado pelo ministério da defesa russo ao transmitir notícias radiofônicas sobre a invasão extraterrestre nos porões do Hermitage. Consta que ali haviam trancafiados os corpos de três alienígenas que foram brutalmente assassinados no interior de Minas e depois surrupiados pelo governo dos Estados Unidos. Com a indefinição nas eleições presidenciais, que já duram três anos de suspense, um acordo secreto entre os dois governos garantiu a transferência dos restos mortais para o museu russo. Contudo, o assunto não se manteve muito tempo em sigilo e logo a mídia começou a divulgar suas suspeitas. Foi quando se passou a aplicar o Taco Disparato, assim a população ouvia uma coisa, mas entendia outra. Como o Brasil é mestre em se apossar de coisas que não sabe usar, vejo agora que estás desconjuntando minha fala. Insisto que as travessuras sempre anacrônicas de nossos governos sucatearam de tal modo a linguagem que o que chamas de conformismo gramatical não passa de um vício barato acobertado pela moda e o estado falimentar de nossa moral.

 

DYRCEO
Maravilhosa tirada, Doutor Blavesko!!!! Bravôôôô!!! No Brasil, onde ainda estamos em trenzinhos caipiras em vez de satélites intrujões e foguetões interplanetários, suas transcendentais revelações não podem ser captadas pelos nossos honestos, mas despreparados nordestinos sertanejos. Não obstante, nota-se surpreendente capacidade assimiladora da cultura terrestre e subterrânea, pelos nossos humildes mas bons e patrióticos lavradores e índios da Amazônia que têm de enfrentar de um lado os madeireiros clandestinos… ou clonestinos… enfim, arboristas bolivianos , que vêm serrar nossas belas árvores e roubar nossos tatus-bolas e taturanas, para experiências aterradoras, destinadas à pérfida criação de um novo vírus, o Boroca, que deverá defender nossa América Latina contra o traiçoeiro micropata Coroca…

 

ARAUTO

[Sottovoce para Florium] Oh Ilibado Mestre, esperança dos aflitos pescadores dos rios da Amazônia, e das viúvas chorosas de Piracicaba: Não seria melhor baixarmos a cortina? Ou este politicamente correto locutor vai seguir a vos agoniar com sua cascata de disparates…

 

FLORIUM BLAVESKO

Esta não é uma decisão minha, pois ainda aguardo as perguntas de Sra. Vespina. De qualquer modo, e isto se passa sempre que a mídia visita uma notícia, dá-me a impressão de que viemos para uma coisa e fizemos outra.

 

ZUCA SARDAN

Aguardemos, pois, a chegada de Vespina, com seu anel renascentista de ouro finamente cinzelado por Brunelesco, com micro cofre porta-veneno embutido.

 

VESPINA

Meninos, esta é a última versão? Tem já cinco páginas e falta a entrevista.

 

FLORIUM BLAVESKO

Meu caro Zuca, tens que parar de tanto lero e começar logo a entrevista. Pelo andor do pasto essa Vespina vai furar o bolo e melar o fubá.

 

ARAUTO & CORTINISTA GODOFREDO

[coro no gargalo]

Ao timão, o timoneiro.

O esfregão ao escrivão.

Gira, gira, girafa anã,

Ao pecador, a devoção.

 

ZUCA SARDAN

Pois então, Dyrceo, ouviste o que disse nosso entrevistado, ele quer que acabes com tanto lero-lero de que tu és o grande culpado, com este teu papo furado de novelas da Rádio Capivara. Faça perguntas objetivas!!!

 

DYRCEO

Doutor Florium, chega de enrolações, não tente se desviar do assunto, vou a perguntas perguntantes: Dona Aurora é boreal?… É virago romântico bossa Saphô?… ou machona só de pose… tal George Sand que fumava seu charutinho e se vestia de homem? Quem o senhor acha que comia quem? George Sand comia Chopin? Ou Chopin comia George Sand? Quem ensaboava quem, com o Sabonete Molek? Que tal o Senhor acha Lina Ivanova, poeta de Recife e editora da revista anarquista-feminista Mais Pornô, que vive entre Koln e Berlin? Quais as revistas porno-feministas brasileiras que o Senhor mais aprecia? Qual a situação da poesia porno-feminista no Brasil? Em que linha se situa Aurora Barcelos? Quais poetas viragos são as mais importantes do Brasil?

 

FLORIUM BLAVESKO

O senso de objetividade desse radialista tem a leveza de uma pata de elefante ferido. E sua verborragia é trôpega como um cancro desenfreado. Tens o fôlego retrô de um jornalista marrom. Uma obsessão frasista pelo escândalo de primeira página. E uma intencional confusão entre o grelo e o clero, ainda que por vezes haja tanto de um no outro. Pensar em Goerge Sand como pornógrafa é uma dessas farsas machistas, e ainda essa perversão em torno da menina Ivanova, levantando a suspeita de que ela é um menino. Ora, ora, Dyrceo, o que há de teu nessa máscara que grudaste no rosto? Se queres mergulhar nos bastidores do transformismo, sugiro que visites o Museu Lamarck, há uma página web disponível. Quanto à Aurora – seja Boreal ou Barcelos –, que, a rigor, é Leonardos, trata-se de um caso único de heterônimo feminino, de modos que se queres conversar a seu respeito, aqui me tens.

 

DYRCEO

Muito bem, Doutor Florium, vejo que sacaste bem meu estilo iconoclasta e subversivo. Mas… temos uma surpresa!!! A Rádio Cambuquira vai agora mesmo fazer um espetacular Anúncio do livro de Aurora!!!… Deixe-me ligar este velho aparelho Felix, de oito válvulas e… plek -plek-plek…

 

RÁDIO CAMBUQUIRA

Preza… dá-dôs ouvintos e vivintas da vossa insuperável Rádio Cambuquira!…Apresentamos agora vosso programa predileto!!! As sensacionais Novas Profecias de Nostradamus!!! Hoje trataremos de um manuscrito posterior às Centúrias, e se referindo ao Século XXI e ao Armagedom…. com o Arcanjo Wenceslau tocando a Trombeta de uma nuvem rente ao campanário da Cathedral Notre-Dame de Paris. Nas suas considerações preliminares, atendendo ao interesse da Rainha Catarina de Médicis por assuntos mais picantes, Nostradamus escreveu sobre o grande surto da praga do vírus micropata Coroca, e do aumento vertiginoso do transexualismo, sobretudo com o tumulto provocado por um livro que se chamaria… Aurora sim, é que era Travesti de verdade… ou algo similar… com pressões sobre o Vaticano e Moscou, para se definirem, sim ou não, com referência à procedência dos matrimônios transexuais. Na noite de lançamento do livro o Palacete de Papelão Mascado do Triplov será invadido por batalhões em encarniçada luta entre travestis, machistas, bissexuais, polysexuais, grupos religiosos rivais, kardecistas e bolcheviques.

 

FLORIUM BLAVESKO

Quanto mais se espalha a bomba de luxúria do radialista Dyrceo mais as fábulas da delegação de autoridade das classes obstruídas se dissolvem nos latões cítricos da propaganda. Tudo isto porque as artes creditaram a si uma moral de chiclete. As pastilhas bíblicas hoje não curam mal algum, e o rugido dos escândalos enlatados sequer alimentam os seguidores de Donald Warrol. A esta altura de nada adianta bradar que Aurora é lésbica e não traveco, pois o mal da mídia já lhe garantiu um lugar na comarca das disforias de gênero. Quem mais se interessaria pela tragédia de uma jovem vida acidentada que se foi e deixou um livro com uma das poéticas mais audazes dos últimos tempos…!

 

ARAUTO

Pois então, baixamos a cortina ou não, Godofredo, que achas?…

 

CORTINISTA GODOFREDO

Tenho uma ideia… vou baixando o pano bem devagarzinho… e se o Doc Florium, ou o Dyrceo, um dos dois,  reclamar… comezzo a tornar ir subindo devagarzinho…

 

ARAUTO

Godô, és espertíssimo!… Vai baixando então, a flanela, bem, bem devagarzinho… pra ninguém perceber…

 

CORTINA

[Vai começando, imperceptivelmente, a cair.] Ronnng… roonng… rong …ron… nnng… ng… g…

 

FLORIUM BLAVESKO

E a genialidade arquitetônica de meu Palácio de Papelão também foi pelo ralo.

 

ARAUTO

E agora, Godô?

 

CORTINISTA GODOFREDO

Nem dou pelo resmungo. Segue, cortina…

 

CORTINA

Ronnng… roonng… rong …ron… nnng… ng… g…