ANTÍMIO DAMIÃO
ATLAS CONJUGAL
Como é dever da boa aparência, os mal casados vivem de sorrisos falsos e paciência de santo. Mesmo em casa estão em terra-de-ninguém, desprovidos de sexo e risos veros. Aliás, a havê-los, não será aí que os encontrarão decerto.
Ora, a coisa agravou-se após ele se ter separado da primeira mulher. Todavia, com a segunda, passou a viver pior. Muito pior. Olhava-se ao espelho, o pobre, à procura do que lhe faltava. Passava horas naquilo, preso à imagem do seu rosto a desfazer-se. Se calhar, outro vivia ali em vez dele e o homem no espelho era um duplo. Se pudesse, voltaria sem pestanejar à juventude. Envelhecer era decadente. Pior ainda: quanto mais se olhava ao espelho tanto mais se odiava. Em tempos idos, quando as discussões do casal eram frequentes e intercaladas por sessões de abusos intermináveis, em que mal-estar e mal-entendidos andavam de mão dada e as conversas resultavam em litígios e desaforos e a beatitude inicial se perdia a olhos vistos, havia que preservar a sanidade fosse lá como fosse, a qual, pouco a pouco, se esvaía sem remissão. Certas noites, apiedado de si mesmo, saía à rua à procura de um corpo novo, guiado pela crença ingénua de este lhe aparecer à porta de casa e de, assim, evitar o fosso da realidade lá fora. O cansaço era demasiado, não o largava.
O casal vivia comodamente, numa casa acanhada dos subúrbios: dois pisos, grandes janelas, parco mobiliário, exemplo de modéstia. Embora já não sorrissem um ao outro e o casamento estivesse por um fio, ele carregava a mulher às costas, todos os dias, até à cidade. No centro comercial, o céu assomava lá em cima, para lá da cúpula de vidro do átrio central. Mais abaixo, o homem esperava durante horas pela mulher — um enfado assassino. Para além de ser o burro de carga dela, a frustração agravava-se e não sabia como erradicá-la. Para mais, há anos que ouvia as lamúrias da mulher e se esforçava para a entender; aconselhava-a, até, mas ela, apesar de tudo, continuava a queixar-se como se ele para nada servisse. Ao pequeno-almoço, as colheres de ambos tiniam na loiça e no silêncio. Ele erguia os olhos para a mulher e, como de costume, perguntava: “Estás pronta?” “Já lá devíamos estar”, respondia ela secamente. O homem comia as torradas, emborcava o café e, limpando os lábios ao guardanapo, ia à sala de estar e de lá voltava com a cadeira de transporte, cujos ganchos do espaldar se adaptavam na perfeição aos seus ombros largos e às suas costas ligeiramente curvas. “Anda. Sobe”, ordenava ele. Mesmo cansado e mal dormido, saía de casa com a mulher às costas. Àquela hora, havia pouca gente nas ruas. De caminho, sentia o arfar da mulher como o peso do mundo. — “Olhem para ele! Pobre Atlas casado! E às costas leva a reencarnada Cleópatra ou a nova Balkis!” — O balanço da marcha soía adormecer a mulher. Ele, em compensação, imaginava-se nos braços de uma amante. Porém, quando dava por si, estava outra vez à porta do centro comercial, a braços com a rotina. Uma vez em casa, à noite, vinham os serões mudos à frente da televisão. Depois, fazia o jantar, lavava a loiça e deitava a mulher na cama. Desilusão e estafa. Como de costume. Nesse dia, bateram à porta. Era a vizinha. Ele imaginou-se na cama com esta, em adultério convicto, mas, já cansado e impaciente, enxotou-a com delicadeza. Era fiel e honesto. A mulher, no andar de cima, roncava tão estrepitosamente que a casa estremecia. Nestas circunstâncias, o gato, assustado, fugia de quando em vez para a marquise. O homem recordou a primeira mulher. Se o visse naquele estado terminal, insultá-lo-ia ainda mais. Recompôs-se. A fim de arejar a mente, foi até ao jardim da praça. Ao voltar, a mulher roncava ainda como uma ursa. Nada de mais indigno que um homem subserviente à tirania da esposa. Prometera amiúde mudar as coisas, mas, por mais que tentasse, acabava sempre por sentir-se incapaz e miserável. A vida fora-lhe tirada e nada, nem ninguém, lha restituiria. Devia ter dado ouvidos à mãe, às irmãs, às primas, à advogada. Pensou um dia em fugir de casa, da cidade, do país, mas percebeu que não iria longe. Era tão útil à mulher quanto o bacio com mijo debaixo da cama. E pensar que, quando morresse, seria enterrado junto dela (da mulher, não da cama). Sufocado por esta ideia, correu a abrir a janela. Um carro passou. E outro. E mais outro. E depois outro. O Sol pintava de luz o telhado da casa em frente. No ar, o sopor do calor da tarde. Um bando de crianças brincava à macaca no passeio, controladas de perto pelos pais — exemplo do medo e da autoridade cíclicos que regem a farsa humana. A chuva da manhã lavara o bairro. Cheirava a fresco. À chegada do crepúsculo, as casas doirar-se-iam de tédio, e o egoísmo, quer solitário quer familiar, como as inquietações, mesmo que toleradas, nunca desapareceriam. Os homens morrem sozinhos e nada há a temer. Tudo é como é. A vida, uma vez ida, jamais se refaz, e um corpo velho é sempre um estorvo lá em casa. Volta e meia, sentou-se no sofá da sala, de papo para o ar, a fitar o tecto. Imaginou anjos à sua volta e uma luz intensa brilhou diante dele. Quando deu por si, era já tarde de mais. Foi-se. E ainda agora ali estava.
Entretanto, a mulher acordou a meio da noite, sedenta. A sua lerda e anafada figura desceu as escadas, apoiada a custo no corrimão. Na sala encontrou o marido espojado no chão, sobre a carpete persa, ao pé da mesa. A seu lado, um frasco de cicuta vazio. Merda. E agora?, perguntou ela a si mesma, pálida como cal. Quem a levaria à cidade? Lá teria de refazer a sua vida e de conhecer alguém que lhe oferecesse cama, mesa e roupa lavada.
(Pois é, minha senhora. Vossemecê devia saber que nada dura para sempre, sobretudo um marido frustrado como o seu. Mas olhe, temos pena. No fundo, é o preço a pagar pelos sonhos impossíveis de um homem; por isso anime-se, faça a sua melhor imitação de Vivien Leigh no final de “E Tudo o Vento Levou” e olhe esperançosamente o horizonte, pois, como deve compreender, amanhã é sempre um novo dia, mesmo que em verdade nunca nada venha a mudar.)
FILOSOFIA DE CERA
Dois Sócrates de cera foram entregues ao museu Madame Tussauds, de Nova Iorque. As estátuas, executadas com uma técnica irrepreensível, representavam o filósofo grego no momento da sua morte e copiavam dois famosos quadros sobre este tema. A primeira — um Sócrates decidido e temerário ao jeito do de A Morte de Sócrates, de Jacques-Louis David — tinha o dedo indicador em riste e uma túnica branca sobre o corpo musculado, recebendo, com determinação, a taça da cicuta que lhe foi destinada. A outra era o Sócrates calvo, melancólico, roliço e de túnica amarela e braço afastando os que o rodeiam, de A Morte de Sócrates, de Jacques Joseph de Saint Quentin. As duas figuras de cera eram, portanto, reproduções tangíveis de outras interpretações e reproduções pictóricas de um mesmo objecto de representação executado como forma de expressão por artistas diferentes mas curiosa e coincidentemente franceses.
Na sua primeira exibição, ambas provocaram celeuma, pois, segundo críticos e espectadores, o Sócrates de cera ao jeito de Jacques-Louis David ganhava em beleza ao Sócrates de cera à laia de Saint Quentin. Ao mesmo tempo, achou-se o contrário, mas sem o consenso da maioria. De resto, não havia maneira de dizer qual deles era melhor. Acontece então que, recentemente, os apreciadores da cópia de cera do Sócrates de Jacques-Louis David passaram a preferir a do de Saint Quentin. E, de facto, a pose combalida e humana desta é, diz a crítica moderna, mais real e fidedigna quando tida no âmbito histórico do Sócrates de carne e osso. Parece ter-se encontrado, pelo menos por ora, o vencedor desta polémica disputa. Todavia, apesar das conformidades e críticas, das interpretações e opiniões, das verdades e insinuações, das análises precisas ou erradas, dos ditos e não-ditos, da opinião de espectadores e críticos, a identidade dos artistas ou do artista responsável pelas figuras de cera permanece um mistério. O que são elas, afinal? Simulacros? Falsificações? Ou algo válido e único? Sejam lá o que forem, por mais olhos e juízos que reúnam em seu redor, a verdade é que, à chegada da noite, mergulham no silêncio do museu e tornam-se objectos como outros quaisquer.
11º MANDAMENTO
Em viagem de comboio ao Vaticano, Pedro, apóstolo e primeiro Papa, espairecia à janela da última carruagem quando, surpreendido por um desconhecido que o tentou empurrar borda fora, escapou por um triz ao toque súbito da morte, agarrando-se in extremis ao puxador da porta. Um terceiro homem apareceu e empurrou o agressor, caindo ambos na via-férrea. Apesar do susto, estava um lindo dia de sol, o que confirma, para desagrado de papistas e beatos, que até os mais belos dias do Senhor têm mácula. Passado o susto, Pedro, já restabelecido, foi matar a sede à carruagem-bar. Pediu uma taça com cicuta, mas o barman, ciente do pedido suicida, não lha deu. Satisfeito com o gesto altruísta, Pedro ajoelhou-se e orou pela sua saúde e segurança.
Uma vez no Vaticano, fiéis e clérigos reverenciaram-se à sua passagem, em respeitosas vénias. Para além da basílica com o seu nome, ali se impunham as estátuas dos seus antigos colegas e a majestosa cúpula da Santa Sé. Pedro orgulhava-se da opulência do Vaticano e da sua carga simbólica, pois era preciso competência e paciência para acolher o elevado número de crentes e peregrinos que, diariamente, aos milhões e em crescente e pio frenesi, afluíam àquele pináculo arquitectónico, centro sacro da humanidade, onde se orava devotamente e se cumpriam promessas. Ali, Cristo vendia-se bem e recomendava-se, sobretudo as t-shirts e estatuetas do Salvador e os penicos e isqueiros da Virgem Santa. O catolicismo era, sem sombra de dúvida, a maior e mais lucrativa religião do mundo. Contudo, embora reclamasse a si a salvação e a santidade de Deus, não provava nem garantia de todo aos vivos a factualidade destas benesses no Além.
Escoltado pela Guarda Suíça até ao Palácio Apostólico, Pedro apresentou-se diante de Sua Santidade, o Papa, e beijou-lhe o anel papal. Sua Eminência saudou-o com uma palmada nas costas. Após bênçãos de parte a parte, encaminharam-se para o escritório papal. Dada a agenda preenchidíssima do Sumo Pontífice, Pedro tentou ser breve. Entre vários assuntos de menor ou maior importância, descreveu o incidente no comboio. O Papa ouviu-o com atenção, adoptando um ar sério e preocupado. No fim da reunião, despachou-lhe uma carta por motu próprio, lacrada com a bula papal. A epístola, para que conste, isentava Pedro de toda e qualquer responsabilidade pela fundação da Igreja Católica Apostólica Romana. Despediram-se com um firme aperto de mão, um abraço, e um beijo meigo na face.
À saída, na praça, Pedro indagou em redor como se procurasse alguém. O homem que o salvara do agressor no comboio surgiu do meio da turba. “E então?”, perguntou. “Já nada nos liga à Santa Madre Igreja”, disse Pedro, de carta na mão. “Óptimo, óptimo… Por fim, tudo está consumado”, disse o outro, de alparcas de couro, cabelo longo e barba. “Sim, Senhor”, advogou Pedro. E celebraram o feito com uma mãozada rija, um abraço, e um beijo terno nos lábios.