TRÍADES

ANTÍMIO DAMIÃO

Havia uma casa abandonada junto à velha escola. O edifício devoluto não tinha caixilhos nem portas ou tampouco um telhado. As suas paredes, rombas e bojudas, estavam à mercê impiedosa dos elementos. No seu interior crescia um revolto matagal de sarças e urtigas, em cujas medas vivalma se aventurava, salvo um ou outro miúdo mais corajoso. As ruínas da casa envergonhavam de tal modo os aldeões que, sempre que por lá passavam, viravam a cara com repulsa ou falavam baixinho como se a casa os ouvisse. Blocos de pedra pejados de musgo compunham a fachada. Erguida havia décadas no cimo de um ermo declive, a casa parecia perder-se nos meandros do tempo; aliás, não seriam raras as especulações em torno da sua origem, uma vez que os registos prediais mais antigos se haviam perdido há muito, por altura de um grande incêndio que consumiu metade da aldeia. A casa expunha a sua fantasmagoria ao lusco-fusco e no recato da noite. Para além de ter sido alvo de vis comentários, foi visto nela um desses romeiros que erram pelas aldeias à procura de guarida ou esmola, estranhamente parecido com o messias cristão. Tais testemunhos abundavam, pois cada porta escondia uma certeza e cada boca uma sentença. No fim, nada se acrescentava ao já dito: a aversão à casa mantinha-se e o silêncio reinava.
Apesar de tudo, eu era, porventura, o seu único apologista. Afinal de contas, a casa era um marco histórico, independentemente da sua fraca popularidade. Com o passar do tempo aprendi a admirá-la e, ao vê-la, sentia um aperto no coração e um misto de fascínio e temor que as palavras não exprimem. A ela atribuía uma beleza decadente e intemporal, ao contrário dos aldeões, para quem a casa se revestia de uma feiura evidente. Seja como for, tentei convencê-los de que a beleza existia nos olhos de quem a vê, contudo, fui troçado e depressa desisti dos meus intentos. Em compensação, debrucei-me sobre a arquitectura da comarca, estudo a que me dediquei em privado desde que me reformei. Os meus olhos, embora fracos, serviam-me bem neste sentido. De resto, passava noites no escritório, lendo livros e enciclopédias que enchiam a secretária. Este tempo de estudo devia-o à minha mulher, Júlia, ou melhor, ao seu irrepreensível zelo doméstico, pois, graças a ela, era poupado a afazeres desta natureza. Para mulher de meia-idade, Júlia era ainda bela e jovial. Dona de fartos caracóis e corpo tonificado, bamboleava-se de quando em vez pela aldeia, despertando o interesse masculino, ainda que a todos respondesse com desprezo, pois era-me grata e fiel. Todavia, passado um tempo, começou a repudiar a casa que eu tanto prezava. Achava-a, dizia ela, uma monstruosidade. Eu discordava dela em absoluto, porém, não a censurava. Entretanto, com o decurso do tempo, descobri algo que muito me incomodou: o humor de Júlia flutuava conforme as críticas dos aldeões à casa. Ao princípio, zombei desta teoria ao ponto de me rebolar a rir na carpete do escritório, contudo, percebi que a cada insulto dos aldeões correspondia o crescente desinteresse de Júlia para comigo. Em contrapartida, os livros, outrora fonte de prazer, começaram pouco a pouco a enfadar-me, o que me entristeceu sobremodo, já que neles depositara parte do meu esforço, bem como abundantes e valiosas glosas que um dia serviriam de guia a quem os consultasse.
Ora, em dada noite de Dezembro, aproveitei o sono de Júlia para interromper os estudos e esgueirar-me, à socapa, pela janela do escritório. Para isso, deixei a candeia acesa em cima da secretária, não fosse Júlia estranhar a minha súbita ausência. Com o intuito de partilhar e validar a minha incrível teoria, fui visitar um velho amigo do liceu; um tipo sóbrio e avesso a qualquer pseudo-ciência, que vivia numa quinta longe dali. De caminho, não entrevi vivalma senão um cão vadio. O bafo da minha respiração diluía-se no ar frio da noite e à luz das ruas semiescuras. Ao passar pela velha casa, estaquei diante dela. A textura rugosa das pedras era realçada pela lua cheia. Como era maravilhosa! Para além da beleza decadente, reunia em si todos os estilos arquitectónicos da aldeia e arredores. Finda a contemplação, estuguei o passo.
À chegada, bati ao portão da quinta. Segundos depois, o portão abriu-se e um facho de luz irrompeu do escuro.
“Quem vem lá?”, perguntou o portador da luz.
“Sou eu”, respondi, de mão no rosto.
O meu amigo, reconhecendo-me, baixou a lanterna e sorriu, afável, à meia-luz. Abraçámo-nos com saudade e, por conseguinte, seguimos por um carreiro de terra até ao casarão. Uma vez aí, pendurei o casaco no cabide do vestíbulo e entrámos.
No salão de visitas, brindou-me com um brandy de excepção em taça de cristal. Sentámo-nos frente a frente, num canto junto à lareira. Permaneci quieto, de copo na mão, a observá-lo como se não o conhecesse. De ressalvar que ele se comportava de forma demasiado simpática, o que, diga-se de passagem, muito estranhei, dada a aparente seriedade que lhe conheci no passado. Após algumas histórias embaraçosas da nossa juventude, aprestei-me a revelar o motivo que ali me trouxera. De repente, a sua mulher, senhora de suma e elegante beleza, entrou no salão, vestida num uniforme justo e negro de criada de quarto. Na mão sustinha uma bandeja com aperitivos e aproximava-se em bicos de pés como uma bailarina. Pousou a bandeja na mesa à nossa frente e sorriu cumplicemente ao marido. A seguir, cumprimentou-me com um beijo próximo da boca e ficou de pé, a olhar para mim, sem se mexer. Corei e reclinei-me atrás. O marido sorria e olhava-me, imóvel, os seus dentes e olhos refulgindo à luz fúnebre das velas. Por mais que dissesse, as palavras pareceram-me de súbito inúteis.
Levantei-me de rompante e, pálido como um cadáver, recordei-lhes que Júlia, àquela hora, devia estar preocupada comigo. Corri ao vestíbulo e peguei no casaco. Embora o casal me suplicasse para ficar, não lhes dei ouvidos e saí porta afora, tropeçando no tapete da entrada.
Uma vez na noite, errei por caminhos sem fim.
Perdido, avistei ao longe a luz ténue de um casebre. Desci um sinuoso declive até lá, mas a casa parecia afastar-se à medida que me aproximava. Após incontáveis curvas, vi-me na senda certa.
À porta de casa estava um velho corcunda, de barba amarelada, botas sujas e fatiota gasta, sentado num banco de cortiça, a descascar uma leguminosa, com uma faca com cabo de madeira. A sua pele parecia couro à luz da candeia no umbral da porta. Perguntei-lhe onde estava e se seguia no caminho certo para a aldeia. O velho levantou a cabeça e olhou-me de soslaio com o seu olho cortante e azul; o outro estava cego e baço. A seguir, cabisbaixo, continuou a descascar o vegetal. Calei-me e sentei-me no pedregulho diante dele. A porta do casebre compunha-se de duas cancelas – a de cima estava aberta. Do interior da casa sobreveio o som do crepitar do lume e o miar sumido de um gato.
Às tantas, o velho ter-se-á lembrado de algo cómico, pois, sem razão aparente, desatou a rir. Acto contínuo, pousou faca e vegetal no chão e, mancando da perna esquerda, entrou no casebre, de lá voltando com duas mantas debaixo do braço. Educadamente, pediu-me que lhe cobrisse as pernas com uma. Contrariado, fiz o que me pediu. Estava frio e a humidade era muita. O velho tirou um cachimbo do bolso e acendeu-o. Uma nuvem de fumo com travo a cereja espalhou-se no ar. Perguntei-lhe novamente se faltava muito para a aldeia, ao que ele engelhou a testa, semicerrou os olhos e nada disse.
De repente, um gato gordo de três cabeças irrompeu de dentro da casa e saltou para cima da cancela da porta. Aí ficou lambendo a pelagem e a fitar-me com seis atrevidos e cintilantes olhos. O vento agitava as árvores como se lhes sussurrasse os segredos do bosque. Arredei a manta do colo e saltei do pedregulho.
“Vou-me embora”, disse, impaciente.
O velho, oportuno, agarrou-me no braço. Como que a propósito, o gato saltou da porta e veio roçar-se ternamente às minhas pernas. Acabei por ficar. O velho, sorrindo, mandou uma longa baforada no cachimbo e indagou em redor como se procurasse algo.
“Bela noite”, proferiu desfasadamente.
Aproveitei a ocasião para saber a direcção da aldeia. Ele, por seu turno, voltou a rir-se, respondendo que tanto eu como a aldeia não íamos a lugar algum. Em causa pus a minha sanidade mental. O velho, de olho em mim, reentrou em casa e de lá regressou num ápice com uma garrafa de aguardente e dois copos. Bebemos. O álcool descontraiu-me e espreguicei-me no pedregulho. O gato saltou para o meu colo e pôs-se a ronronar. Já bebido, soltei um “Basta” que a todos sobressaltou. Como tal, o gato voou-me do colo, e o velho, engasgado, remexeu-se na cadeira.
“Tenho de voltar à aldeia”, finquei.
O velho cofiou a barba e fitou-me com demora. As suas olheiras avultaram-se no rosto escavado e rofo. Sacudiu os ombros, empertigou-se como se adquirisse uns centímetros a mais e, de igual modo, a sua sombra alongou-se nas faias lá mais atrás. Atirou a manta para o chão e, claudicante, aproximou-se de mim. Roçando a sua face na minha, numa voz sinistra, sussurrou:
“O senhor não vai a lado nenhum.”
“P-porquê?”, balbuciei.
“Porque foi essa a sua escolha”, respondeu ele, de volta à cadeira.
“M-minha?”
“Sim, sua”, confirmou, reacendendo o cachimbo e lambendo sequiosamente os lábios finos.
Assim era, de facto. Ela sabia-o desde que eu ali chegara. A velha casa, Júlia, os livros, a aldeia; tudo, na verdade, já pouco importava. As recordações iam-se-me, efémeras como o tempo. O gato tricéfalo regressou a meu colo e afaguei-o.
“Como se chama ele?”, perguntei.
“Cérbero”, replicou o velho, repescando do chão o vegetal que descascava.