Três poemas – três armadilhas

 

 

 

 

 

 

 

 

MARIA AZENHA


VOLTEI À CIDADE

 

Voltei à cidade

com sapatos de sombras (n.º 36).

A infância (a minha)

ficou esquecida atrás de uma porta.

Fechada.

 

As ruas têm espelhos (em saldos!)

e gritam os nomes

todos

ao contrário.

 

Uma minhoca (de óculos, talvez)

vai para dentro da terra.

Devagarinho.

 

Procura o mapa secreto

da guerra.

 

A CAMPAINHA TOCOU

 

A campainha tocou.

Não era ninguém.

Era o vento a brincar às visitas.

 

Pus a chaleira ao lume.

Mas esqueci a água.

(Outra vez.)

 

O gato, esse,

estava a ler um poema

debaixo da mesa.

Deitado.

Como um crítico literário.

 

A infância mandou um postal.

Disse:

«Ainda estou à espera.

Mas agora uso franja.»

CARTA DO MEU AVÔ

 

O espelho estalou.

Era o reflexo que não me queria ver.

Fugi para o fundo da casa,

onde a poeira ainda guarda o meu nome.

 

A janela, que não se fecha,

é uma boca aberta a dizer segredos.

 

A chuva, que cai na direção errada,

diz que o tempo já não existe.

_Eu ouço o tempo a rasgar o chão._

 

O meu avô, morto,

mandou-me uma carta a pedir desculpa.

Não sabia que ele ainda tinha mãos.

 


Maria Azenha, 2025, Abril,11