MARIA AZENHA
VOLTEI À CIDADE
Voltei à cidade
com sapatos de sombras (n.º 36).
A infância (a minha)
ficou esquecida atrás de uma porta.
Fechada.
As ruas têm espelhos (em saldos!)
e gritam os nomes
todos
ao contrário.
Uma minhoca (de óculos, talvez)
vai para dentro da terra.
Devagarinho.
Procura o mapa secreto
da guerra.
∴
A CAMPAINHA TOCOU
A campainha tocou.
Não era ninguém.
Era o vento a brincar às visitas.
Pus a chaleira ao lume.
Mas esqueci a água.
(Outra vez.)
O gato, esse,
estava a ler um poema
debaixo da mesa.
Deitado.
Como um crítico literário.
A infância mandou um postal.
Disse:
«Ainda estou à espera.
Mas agora uso franja.»
∴
CARTA DO MEU AVÔ
O espelho estalou.
Era o reflexo que não me queria ver.
Fugi para o fundo da casa,
onde a poeira ainda guarda o meu nome.
A janela, que não se fecha,
é uma boca aberta a dizer segredos.
A chuva, que cai na direção errada,
diz que o tempo já não existe.
_Eu ouço o tempo a rasgar o chão._
O meu avô, morto,
mandou-me uma carta a pedir desculpa.
Não sabia que ele ainda tinha mãos.
Maria Azenha, 2025, Abril,11