Três poemas de Pere Gimferrer

 

 

 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO
(Tradução)


 

PRIMEIRO POEMA

 

Eu, que fundei todos os meus desejos

sob vários géneros de eternidade,

vejo a minha sombra crescendo ao sol de Julho

sobre o pavimento de cristal e de prata,

enquanto numa baforada ardente

a morte ocupa o seu lugar debaixo dos guarda-sóis.

O vime, as bebidas de cores vivas, as luzes oxigenadas que pingam devagar,

banhando num obscuro esplendor os torsos, acariciando

com fulgores de ferro luzente uns ombros nus, uns olhos eléctricos,

um doirado tombar de mão no ar silencioso

o resplendor de uma cabeleira caindo desalinhada

entre música suave e luzes indirectas,

todas as sombras da minha juventude

numa habitual figuração poética.

Às vezes, nas tardes de tormenta, uma aranha avermelhada pousa

nas vidraças

e pelos seus olhos são fixamente olhados os bosques enfeitiçados.

Salas interiores, mágicas para os silenciosos guardiões de ébano, felinos

e nocturnos como senegaleses,

cujos passos quase não soam no meu coração!

De noite não se acordam os melros do seu prateado sonho.

Assim são estas horas de juventude, pálidas como ondinas

ou heroínas de ópera,

tão frágeis que morrem não de viver mas de sonhar.

 

No seu envoltório de veludo obscuro dorme o príncipe.

Abandonados caracóis na sua mão se entrelaçam. Fundamente caídas

as pestanas velaram os seus olhos como uma gota de verniz e de amianto.

A escondida tepidez das coxas faz deslizar o seu suspiro de gavião agonizante.

O peito arfa como uma harpa desfolhada no Inverno e sob o casaco de malha

o coração deixa suavemente de bater.

Amados olhos, doces horas de ferro e de fogo

rosas de carne incandescente e delicada, fulgores de magnésio

que me surpreendeis a sombra nos bares nocturnos ou ao sair do cinema, salvai

meu coração em agonia sob a luz pesada e densa dos holofotes!

 

A noite cai como uma fina lâmina de aço.

É a hora em que o ar põe as cadeiras em desordem, revolteia sob os toldos

faz tilintar os copos, parte um ou outro, roça regressa suspira e de  repente

esmaga um homem contra uma parede com um surdo estalo repercutido.

 

Beija-me entre a névoa, minha amada. Ficou a noite tão fria

neste par de horas. Está o luar tão borrascoso e tão húmido

como numa antiga fita de amor e espionagem.

Deixa-me guardar entre as mãos uma estrela do mar.

Que pele tão delicada tu rasgarás com os dentes. Morte

que lábios, que respiração, que peito doce e mórbido

 

tu afogas.


MIL NOVECENTOS E SESSENTA

 

De repente, nas escuras balaustradas, um rosto,

um lírio cortado frente ao pôr do sol de cristal,

um martim-pescador abatido no vão da escada,

mãos que tremem como a noite gelada.

Na ponta dos pés voltando no meio da noite,

na ponta dos pés, o amor de

quinze anos.

Carros pretos passam com um sussurro de sedas

na quente noite dos mambos, arroxeado

sacrifício

para a escuridão azul das pistas de baile!

Com um gravado no peito, com um gravado nos lábios,

com uma rosa nas mãos,

Paul Anka canta como a chuva no escuro de setembro.

A estação de névoa e as destruições

abate galerias envidraçadas, presentes da água e da noite, sereias

como cálices de espuma.

Como um farfalhar de saias, oh minha doce senhorita.

Ainda assim, o meu avô vai ler Vermelho e Preto no final do corredor,

vendo o jardim sombrio pingar atrás dos vidros

enevoados.

Esta voz é a sua. Que humidade, que silêncio.

Alguém me dá a mão e é a sacada, o grito dos andorinhões,

os carros electricos dourados no crepúsculo cerrado,

o fantasma de Robert Taylor como a morte nos cinemas,

as maçãs do rosto das meninas do Instituto com as suas pastas

debaixo do braço e os seus sorrisos, e dir-se-ia que todas têm

 

os olhos azuis.


A CORNETA DE CAÇA

 

Para quem o vento desta tarde pede misericórdia

Nos arcos de outono o que o tordo sussurra

Com sirenes de navios à distância, a ausência

Oh capelas nevadas da noite e do mal

falcoaria de ouro e de névoa imperial

belas presa falcoeiros um amante desnudo

presa de luz de vento de espaço de baías

todo o seu corpo em chamas uma adaga um escudo

galgo nos pântanos como a luz de caçadas

Para mim só amor para mim só vivias

Não é para falar-vos de basófias de navalhas e de sedas

nem projetar histórias nos quartos escuros

Quando tudo se foi, apenas o teu amor fica comigo

Eu não quero falar então de tanques ou de bosques

só o amor nos torna mais solenes mais puros

Na noite de outono feitiços não me valem

E na escuridão gelada das ruas, a lua

usa luvas de prata morta e fosforescente

Espreitando na esquina nenhuma voz, nenhuma

me chamará meu amor, doce corpo presente

Como se a infância tivesse voltado de repente

oh imagens de difuso vidro fosco

densa penumbra denso silêncio nos corredores

na ponta dos pés caminhamos e o vento nas cortinas

as janelas a água e aquele quarto fechado

No escuro devagarinho não sei quem me beijou

O que me deram que tudo brilha e desaparece

e dilui os rostos na sua luz misteriosa

Os armários abrem-se e cai do livro uma rosa

Rola na praia um anel no jardim de espuma

Se lembro a minha vida que o amor a consuma

Estes holofotes cegos que na noite não cessam

de passar por palácios e galerias

da terra do amor voltam eles em chamas

quando uns lábios beijam outros lábios trêmulos

quando tu amor a meu lado empalidecias

E a morte de branco largava as suas matilhas.

 

Pere Gimferrer (Barcelona, ​​1945) é poeta, prosador, crítico literário e tradutor espanhol.   A sua obra literária é composta por textos em espanhol e catalão. Foi eleito membro da Royal Spanish Academy em 1985. A sua obra poética inclui: “Morte em Beverly Hills”, “Aparências e outros poemas” e “O diamante na água” entre diversos outros. Recebeu o Prêmio Nacional das Letras Espanholas em1998.


(Tradução de nicolau saião)