MARIA JOSÉ CAMECELHA
Atriz, leitora de poesia, agente cultural
Água da noite
A noite vem de novo unir-se à ria
e a todos estes seres que não verei
morrer nem vi nascer
inútil a resposta da noite à minha dúvida
num tempo tão extenso que já creio
ser essa a minha própria dimensão
de primitivo corpo agora talvez dado
somente ao pensamento
por peixes e por aves trespassado
reconheço-os quando o escuro e os astros
debilmente convergem para restaurar
a grande mancha antiga conservada
na mente ou no espaço em que refaço
o mar de estrelas invisíveis
e visíveis que tento resgatar
ao ver-me exposto à realidade náufraga
desta água da noite onde se movem
entre peixes e aves os meus braços
Contra a Parede
Dos teus vários retratos veio pôr-se
um como se fosse por acaso
na mesa em frente a mim contra a parede
encostado
na sua actual moldura oferecida
por alguém que se não te conheceu
te conhece talvez melhor do que eu
porque conhece o sentido mais oculto
e contudo evidente desta casa
do tempo vivo e morto residência
ou, como lhe chamei já, existência
onde mortos e vivos são a mesma
torrente de cometas apagados
ao finito fulgor do mar lançados
A minha profissão
O dia desde o início me pedia
do corpo a alma física: a matéria
imortalmente morta enquanto viva
talvez fosse o que me fazia crer
no desconcerto incrível dos meus dias
e um deles viria
fundar a profissão desconhecida:
o que fiz foi apenas aprender
a língua rude que ninguém ensina
e quem escuta nem mesmo sempre entende
ou só entende como dia visto
ao sol negro dos seus próprios sentidos
Ancorado no título do poema de Gastão Cruz (in Campânula. Lisboa: Edições & etc., 1978)
Por vezes reaprendo
o som inesquecível da linguagem
Há muito desligadas
formam frases instáveis as
palavras
Aos excessos do céu cede o silêncio
as constelações caem vitimadas
pelo eco da fala.
O artigo de Fernando Cabral Martins (FCM) traça o percurso do autor, assinalando pontos fundamentais da sua viagem pela poesia e pela crítica. Como ponto de partida, a observação sobre o lançamento da Poesia 61 (Faro), notando a novidade e alteração subsequentes e o alargamento do campo poético. E FCM continua notando a “qualidade única de juntar a dicção poética ao discurso crítico como se fossem um único fio de palavras…”
Assinale-se o que Gastão Cruz, em “Função e justificação da metáfora na poesia de Eugénio de Andrade” (in A Poesia. Portuguesa Hoje, Lisboa: Plátano Editora, 1973 ) escreveu “O que existe de mais específico na linguagem da poesia é, efectivamente, essa capacidade de tornar únicas as palavras, os nomes, convertendo-os em imagens.”
A referência de FCM aos poemas inscritos em “Campânula” e, mais concretamente ao que é citado no texto “o mar do fim de maio é uma imagem/das janelas estanques mal o vejo/sob a humana voz as suas vagas/ confundem-se com as ávidas palavras que preenchem o quarto como um verso” liga estas duas ideias: imagen e voz – humana. A audição torna-se então um privilégio, uma forma de aceder ao coração profundo da poesia.
Penso ser de mencionar igualmente o trabalho de Gastão Cruz no Grupo de Teatro Hoje – Teatro da Graça – (que fundou em 1975 com Fiama Hasse Pais Brandão e Carlos Fernando ) como tradutor de Cocteau, Strindberg ou Camus, dramaturgo e encenador. Entre 1974 e 1977 produz uma série de textos sobre espectáculos nomeadamente da Companhia Rafael de Oliveira, Teatro Adoque e Teatro da Cornucópia. (informação encontrada na CETbase – Teatro em Portugal).
Remetendo para o tempo – crucial na poética de Gastão Cruz – patente nos três inéditos apresentados:
Água da noite
(…) inútil a resposta da noite à minha dúvida / num tempo tão extenso que já creio ser essa a minha própria dimensão
Contra a Parede
(…) te conhece talvez melhor do que eu / porque conhece o sentido mais oculto / e contudo evidente desta casa / o tempo vivo e morto / residência ou, como lhe chamei já, existência /onde mortos e vivos são a mesma
Do último poema dos inéditos publicados (A minha Profissão)
(…) o que fiz foi apenas aprender / a língua rude que ninguém ensina / e – quem escuta – nem mesmo sempre entende/ ou só entende como dia – visto ao sol negro dos seus próprios sentidos
Nesta incompletude que me propus apresentar, transcrevo o parágrafo final de Fernando Cabral Martins: “Apenas o som da linguagem, a pele que responde como um tímpano aos impulsos do universo, sem significação nenhuma para além da sua própria realidade, não é susceptível de dúvida ou mentira. “
Fonte: Jornal de Letras (JL) | 31 de Janeiro a 13 de Fevereiro de 2018