Três poemas de André Breton

NICOLAU SAIÃO


Em meados de 83 do século transacto, Mário Cesariny sugeriu-me traduzisse alguns poemas do Autor de “Clair de Terre” para darmos a lume numa folha-volante do então criado “Bureau Surrealista Alentejo-Lisboa”. 

Na minha resposta positiva o resultado foi este que agora aqui se deixa, cordialmente, aos leitores.

POEMA

1

Tenho na minha frente a fada de sal

cuja túnica recamada de cordeiros

desce até ao mar

cujo véu pregueado

de queda em queda ilumina toda a montanha.

 

Ela brilha ao sol como um lustro de água iridiscente

e os pequenos oleiros da noite serviram-se das suas

unhas onde a lua não se reflecte

para moldar o barro do serviço de café da beladona.

 

O tempo enrodilha-se miraculosamente detrás dos seus

sapatos de estrelas de neve

ao longo dum rasto perdido nas carícias

de dois arminhos.

 

Os perigos anteriores foram ricamente repartidos

e mal extintos os carvões no abrunheiro bravo das sebes

pela serpente coral que sem custo passa

por um delgado

filete de sangue seco

na lareira profunda

sempre e sempre esplendidamente negra

Esta lareira onde aprendi a ver

e sobre a qual dança sem cessar

o crepe das costas das primaveras

Aquele que é necessário lançar muito alto para dourar

a mulher em cujos cabelos encontro

o sabor que perdera

O crepe mágico o sinete voador

 

do amor que é nosso.


2

O marquês de Sade retornou ao interior do vulcão

em erupção

de onde tinha vindo

com as suas belas mãos de novo franjadas

os seus olhos de rapariga

e à superfície esta satisfação dum salve-se quem puder

que não foi senão dele

mas do salão fosforescente das luzes viscerais

não cessou de lançar as ordens misteriosas

abrindo uma brecha na noite moral

 

É por esta brecha que eu vejo

as grandes sombras estralejantes a velha crosta escavada

desfazerem-se

para me deixarem amar-te

como o primeiro homem amou a primeira mulher

em liberdade inteira

essa liberdade

pela qual o fogo se fez homem

pela qual o divino marquês desafiou os séculos as suas

grandes árvores distraídas

os acrobatas sinistros

presos ao fio da Virgem do desejo.


SOMBRA DE PALHA

Dêem-me todas as jóias das afogadas

dois presépios

um cavalinho e uma agulha de chapeleira

em seguida desculpem-me

já que não tenho tempo de respirar

sou um acaso

a construção solar deteve-me aqui mesmo

e agora nada faço senão deixá-la morrer

procurem na tabela das contas atrasadas

a trote na mão fechada debaixo da minha cabeça tilintante

um copo no qual se abre um olho amarelo

abre também o sentimento

e no ar puro esvoaçam as princesas

tenho nisso muito orgulho

e ao mesmo tempo uma gotas de água insulsa

para refrescar o vaso das flores bolorentas

ao fundo da escada

o pensamento divino no azulejo estrelado do céu

a expressão das banhistas é a morte do lobo

tende-me por amiga

a amiga dos ardores e das raivas

que duas vezes vos olha

alisai a vossa plumagem diz ela

os meus remos de pau-santo fazem cantar vossos cabelos

um som claro abandonava a praia

negra da cólera dos seixos

vermelha do lado do horizonte como uma chapa incandescente.

 

                                                   in “Luz da Terra” – André Breton . 
Trad. NS

(Folha volante do Bureau Surrealista Alentejo-Lisboa, 1983)