Trauma

 

LEONORA ROSADO


Leonora Rosado, nasceu a 13/02/1971 em Algueirão, Mem Martins, Sintra. Cedo revela interesse pela leitura e pela escrita, poesia sobretudo. Tem publicados quinze obras de poesia e prosa poética, são então, as seguintes: Estreia-se em edições artesanais em 2012 com a parceria de Ricardo Rosado na que viria a ser até 2016 a sua editora, Nu Limbo Edições, com o livro, Dias Horizontais Noites Assim, a que se segue o livro, O Ocaso e as Horas em 2013. Em 2014 traz-nos Argila e em 2015 A Voz Subcutânea, em 2016 Ruptura. E é ainda nesse ano que publica na Temas Originais, o livro Impurezas. Em 2017, sob a chancela da Editora Licorne, apresenta-nos A Fenda No Sangue. Nesse mesmo ano surge novamente pela Editora Licorne, O Livro do Sopro. No ano seguinte, 2018 surge Trauma, pela chancela da Licorne. Em 2019 a autora apresenta o seu primeiro livro de prosa poética, pela Edições Sem Nome, Há Ténues Sinais De Cristal Nos Espelhos e já no final desse mesmo ano, publicaImage.jpeg pela Editora Licorne, Pranto de Coral. Em 2020, Contágio e Álamo, pela Editora Labirinto e Editora Licorne, respectivamente. Este ano 2021 trouxe-nos da sua lavra, pela Editora Labirinto, o livro de poesia, Volúpia.


O coração no tempo

 

A desfolhada de pássaros redundantes

Bocas de piteira dão figos-mãos

A minha atenção sobre a voz de um navio à deriva do som de flautas que decaem em vagas

E se o dia ficar incompleto como uma jangada perdida

Uma janela quebrada

Um entardecer sem poente

Seja o caminho pela lua

Uma muralha de sonho que os dedos desfazem


Matéria 

 

E os canais do sonho levam-nos ao esgoto da cidade

Ao desmembramento dos seios de uma prostituta nas imediações do rio

Sigo o silvo de uma lâmina

E ninguém assiste aos versos consumados

Há semáforos que nos dizem por onde olhar pelo retrovisor

E vendedoras de flores azedas que contrastam com o perfume das suas belíssimas azáleas

Tenho assistido às mansardas de onde derivam afluentes de cordas

E de noite escuto o seu diafragma ausente de coração perto da dor

As portas inclinadas dão acesso ao alçapão dos sinistros

O mesmo é dizer que dão acesso a um fumo onírico

A mão detém-se na amurada das águas que devolvem ao cais sentidos barcos de aéreo fogo

Tenho as mãos esbulhadas de vozes

Tenho o sextante da alma limitado aos sinais meteorológicos

Mãos demagogas

Mãos de rio de fada de inverosímil

Tocam as faces do choro

Matéria

O ar tem mercúrio e enxofre suficientes para alojar uma granada

Matéria extinta

Enfim, este subterfúgio de rosas


Tenho a noite inteira 

 

Para seguir o segmento das rosas

E

Afagar o odor dos lírios numa tempestade menor

Como se os meus dedos fossem dois acordes

Um maior

O outro esquerdo

Na densidade das dunas o meu corpo floresce

E a lua (só a lua me viu) no esqueleto da minha infância

Dobrando versos

Imaginando sílabas que fossem como um barco de arrasto de encontro ao teu peito


Tenho vindo a construir

 

Hélices de fuga

Mas

Os gerânios tocam os meus lábios

E dizem que a palavra não está ao meu alcance

Tenho vindo a ruir todos os versos que não escrevi

Aqueles que de um golpe eram cristal

Nuvens defuntas para uma pavana solitária

E as estrofes num madrigal impensável

Corroíam a pele

E o seu odor mortificado


A lua é o meu est(r)ado

 

vazio quando por instantes adormeço. Nela fecho o vácuo perturbado apenas pelos sonhos e estremeço a seu lado, pelo lado obscuro da sua face, de rosto voltado para o infinito universo pendente. Se o meu espírito for matéria rege-se por um lunário, cada fase da lua consegue arrastar consigo as marés e de igual modo influencia a minha disposição. O quarto está voltado a crescente, num banho de luz lívida e álgida. Os meus livros circundam-me estou entre a lua e a vida que tão pouca relevância tem. A vigília talvez, melhor seria se fosse uma insónia a dois. Mas a avidez com que escrevo e desfloro sílabas encontra-me só. Com feixe de sombra depositado na fronte, e um halo de lua, esse ser feminino e belo sobre a bainha dos cabelos.


Os teus olhos 

 

São duas estranhas rosas

Bebem do infinito a sua seiva

Sem dessedentar de luz a amplitude que os converge

O resto do tempo fixam-se ora nos meus ora no mar

Tens olhos de limos e peixes

Sangue de água

Cristal líquido

Murmúrio atento ao subir da maré

E as vagas que sobem são sebes de buganvílias e tílias orquestrais

Num voltejo de sombra e aroma

É nos teus olhos que leio a enseada do mar

E neles flutuo

Há neles um rio inteiro submerso

E as nuvens são as telhas desse olhar