Transumância

 

Por NUNO GONÇALVES RODRIGUES


De quando em vez aparece-nos numa publicação esta “estranha” palavra e por esta razão decidi escrever este pequeno resumo do que a dicta não só significa como para ajudar a perpetuar uma atividade em vias de extinção.

A melhor definição que aprendi e que vos posso transmitir é a seguinte:

– A transumância é a deslocação sazonal dos rebanhos.

Mas para complementar este interessante assunto que nos remonta a um Portugal rural e cada vez mais do antigamente e menos do presente começo pela descrição atenta de Jaime Cortesão (1884-1960) : “(…) Apesar da sua riqueza em paisagem e fastos gloriosos, a Beira Alta, na sua mais antiga e genuína essência, é serra e fraga; é nevão originário, que se funde em manadeiros de torrentes; é anta e castro; e pastores transumantes que, desde o fundo das idades guardam e encaminham ovelhas (…)” in Portugal – A Terra e o Homem.

Temos assim que os habitantes da serra eram lavradores e grandes criadores de gado bovino, caprino e ovino e que todos os anos o pastor e os rebanhos submetiam-se, ao que podemos chamar, de uma “misteriosa lei cósmica” que os “atirava” para as estradas e caminhos dando assim origem ao incessante fluxo e refluxo da transumância.

O pastor para ser um verdadeiro “profissional” nessa vertente tinha que estar munido de valências que lhe fossem úteis para a vida pastorícia,entre elas, a calma, a atenção e o estar sempre disponível para viver ao ritmo do seu rebanho, visto que, a transumância ocorre tanto no Inverno como no Verão.

Segundo a descrição documental de “Descripção do terreno – em roda da cidade de Lamego duas léguas”, Montemuro é a principal serra que se avista e que “…A gente desta serra são lavradores…Há homens de 100, 120, e 150 rezes vacum de vacas e touros: as quais vacas têm esta maneira, que do mês de Maio até ao mês de Setembro pastam na dita serra do Montemuro, e do mês de Setembro até Maio pastam na Gândara junto do mar entre Aveiro e Coimbra, que são 16, 17 léguas da dita serra do Montemuro. Estes homens desta serra também criam muitas cabras e carneiros mas, poucos.”

Sobre a antiguidade da transumância vários autores a autenticam e simultaneamente referem a evolução do seu domínio territorial. Tendo isto em conta, Orlando Ribeiro (1911-1997) elucida-nos que se o Montemuro teve “…uma forte percentagem de vacas, que no séc. XVI invernaram à beira-mar, mas na Gândara ao Sul da Ria de Aveiro. Hoje, porém, a serra e as faldas criam muitas ovelhas e cabras, em vigias ou rebanhos guardados à vez pelos donos, proporcionalmente ao número de rezes, e os cimos, a altitude superior a 1000 metros, recebem durante os meses de Julho a Agosto, ovelhas transumantes vindas do planalto da Beira Alta, aqui conduzidas e guardadas por pastores de lá. Os prados do”monte” eram escolhidos e arrendados pelos “maiorais.”

Fernando Martins diz-nos que segundo o geógrafo mulçumano El-Edrisi: “há pelo menos 8 séculos havia rebanhos que, em determinadas épocas, desciam da Cordilheira Central para outras regiões, conduzidos por pastores-viajantes.” Complementa ainda que em 1940 podia dizer-se que eram verdadeiramente transumantes apenas os rebanhos de ovinos das faldas da Serra da Estrela e das regiões médias do planalto que se deslocam para a serra em busca de pastagens.

A transumância deveu também o seu sucesso aos caminhos largos e irregulares, sempre entre muros, que constituíam extensas e sinuosas vias de acesso às pastagens e originavam alterações na morfologia agrária e na paisagem, mas sem a importância dos caminhos espanhóis, chamados de as canadas.

Os vários estudos realizados denotam o pastoreio como um género de vida bem definido e que a transumância tem características diferentes no Montemuro e na Serra da Estrela, dado que, o Montemuro associa à criação de bovinos em regime semi-estabular e a transumância de ovelhas.

Alguns autores referem que na serra de Montemuro a prática da transumância é incompleta, visto não ter a chamada invernada e funcionar independentemente da economia da serra, sendo que, são os pastores dos locais de origem que acompanham os rebanhos na sua deslocação.

Com a exceção do vale Duriense e do Alentejo, a transumância estava confinada principalmente ao centro do nosso país.

Alberto Martinho retratou a amplitude das invernadas oriundas da Serra da Estrela destacando o Baixo Mondego, o norte Duriense, os campos de Idanha-a-Nova e o Alentejo.

Temos de ter presente que nas últimas três décadas alguns fatores como o arroteamento das terras incultas, a plantação de oliveiras, os progressos da agricultura e o desaparecimento de terrenos para criar novas vias rodoviárias de acessibilidades às localidades, principalmente do interior, contribuíram para a redução dos espaços abertos para a transumância.

Se entendermos que a transumância resulta do trinómio: Natureza/ Homem/ Gado, temos também que entender as dinâmicas, contrastes e as mutações do território através dos séculos. Sabemos que as Beiras constituem um território geográfico de grandes contrastes, quer no domínio morfo-climático e geológico quer nas suas paisagens.

A evolução demográfica regional entre 1890 e 1950 no nosso país também teve influência no exercício desta atividade, demonstrando-nos que começa a acentuar-se o desequilíbrio na distribuição da população, pois ao reduzido crescimento demográfico nos concelhos rurais serranos e do interior, opõe-se um surto demográfico nos restantes. São os concelhos do litoral e do sul os que registaram variações positivas mais elevadas e a partir da década de 1950’s o crescimento começou a ficar tradicionalmente mais desequilibrado entre o litoral e o interior.

O despovoamento no interior não teve muito a haver com as condições das vias de comunicação mas sim com a crescente insatisfação de quem vivia de e para a terra devido a constantes fatores de índole política e financeira levando a um êxodo em direção ao litoral ou para o estrangeiro, deixando a prática agrícola e pastorícia para pessoas cada vez mais envelhecidas e sem a capacidade de continuar a exercer em pleno.

Prova disso são os números que nos indicam que em 1900 a população da região Centro do país correspondia a 27,9 % do total, em 1991 é de 18,3 % e em 1996 desce para 17,2 %, acentuando o despovoamento do interior.

No período censitário de 1981-1991 as regiões do interior procuram definir estratégias de desenvolvimento para inverter a tendência de despovoamento visto a política regional adotada nas últimas décadas não surtiu efeitos práticos visíveis.

Os espaços rurais, quer da raia, quer da serra, desenvolvem-se em áreas fortemente vincadas pela adversidade natural e fraca acessibilidade. Portanto para o desenvolvimento das áreas rurais, precisa-se da implementação de situações de complementaridade e diversidade das bases económicas numa perspetiva de sustentabilidade, o que quer dizer que, as diferentes dinâmicas da região centro conduziram a um modelo territorial onde por um lado se evidencia um corredor urbano e por outro assistiu-se ao crescimento dos espaços rurais em ritmo de despovoamento.

O poder político nacional e local não saem isentos de culpa no que se passou nesta região devido a uma inércia, passividade e implementação de políticas erradas face ao acentuar das fragilidades do tecido rural e aos crescentes custos económicos da prestação de serviços sobretudo nas áreas rurais mais periféricas. Assume assim uma especial relevância a política agrícola para o desenvolvimento de áreas rurais.

Em 1989 e segundo Julien Falk da Universidade de Lyon: “ (…) não é fácil encontrar opiniões que atribuem à agricultura um papel secundário no desenvolvimento rural e que vêem na diversidade das economias rurais, e nomeadamente, no crescimento do emprego não agrícola, a condição fundamental para a revitalização do mundo rural.”

Para que o espaço rural se desenvolva terá que ter uma relação de maior dependência de outros setores, como sejam, o turismo, a silvicultura, a pastorícia e a indústria e ao mesmo tempo conseguir-se obter o melhor partido dos recursos das comunidades locais, suas qualificações e iniciativas das pessoas ligadas à agricultura.

Os espaços rurais abrangidos por áreas protegidas precisam de população para manterem as suas características e sabe-se que não é fácil fixar os jovens à sua terra, até porque o artesanato, a gastronomia, a pastorícia, a conservação da arquitetura rural, precisam de pessoas motivadas e com remuneração compatível à função.

É assim primordial que os autarcas, políticos e responsáveis pela área do ambiente se entendam e que o trinómio População/ Autarca/ Ambientalista deverá estar sempre equilibrado nas suas relações e inter-relações. Quanto aos restantes espaços rurais há que adotar medidas para a proteção e gestão dos solos, das águas, do ar e da recuperação das aldeias e paisagens, não esquecendo a preservação da fauna e flora e seus habitats.

O antropólogo e professor Alberto Trindade Martinho reforça a ideia da importância da transumância no passado ao contrário do presente. Assim sendo constatamos que a origem da transumância de Inverno dos rebanhos da Serra da Estrela é tão antiga que a memória popular já esqueceu a data.

Vários estudos foram feitos abordando esta temática com destaque para Orlando Ribeiro (1940-41: 276), que em Contribuíção para o estudo do pastoreio na Serra da Estrela, faz a transcrição de documentos desde 1599 a 1844, relativos aos gados de ovelhas e cabras transumantes da Serra da Estrela para o Alentejo e do Alentejo e de Castela para a Serra da Estrela.

No que diz respeito ao início do século XX podemos encontrar algumas guias de trânsito de gados da aldeia do Sabugueiro com destino à Idanha-a-Nova datadas de 1920 e 1922, assim como outras com destino a Coimbra em 1922.

Durante o período 1900-1949 havia quatro destinos principais:

-Os campos de Idanha

-Alentejo

-Coimbra e arredores

-Douro

O regresso à aldeia de origem efetuava-se em Abril do ano seguinte porque nessa altura do ano a neve já começa a derreter.

Podemos apontar como causa principal para a origem da transumância a necessidade dos pastores alimentarem o seu gado. O duro inverno a que estas populações, e os pastores e o gado em particular, estavam sujeitos com a queda frequente de neve que tomava conta de uma cada vez mais reduzida área de pastagem, levou a que estes se deslocassem a pé com os rebanhos por caminhos sinuosos e perigosos dos montes e vales.

Na década de 1950’s, assiste-se a um encurtamento das distâncias na transumância de Inverno para os gados das aldeias do maciço da Serra da Estrela. Isto leva a que os locais para onde os pastores começaram a passar o Inverno se situassem nos Concelhos de Oliveira do Hospital, Nelas, Fundão e nas zonas dos planaltos dos concelhos de Seia, Gouveia, Guarda e Covilhã. Atualmente mas numa escala bastante mais reduzida é para estas localidades que se encaminham os rebanhos serranos durante o inverno.

Quanto à transumância de Verão e complementando os dados temos que considerar que há duas modalidades neste tipo de transumância:

-a dos gados das aldeias serranas da Serra da Estrela

-a dos gados das aldeias do Planalto beirão

Segundo Girão e fazendo nossas as suas palavras é por altura do S.João (24 de Junho) que o gado sobe para a serra (1600-2000 metros) à procura do pasto ainda verdejante.

Reportando-nos ao Verão de 1998 encontramos nestas montanhas os gados das aldeias do Sabugueiro, S. Romão, Valezim, Loriga e Alvoco da Serra do concelho de Seia, os gados de Manteigas, assim como os gados das Cortes do Meio, da Covilhã. A tradição neste caso faz com que sejam os pastores das aldeias anteriormente referidas a juntar os respetivos rebanhos que são guardados de forma rotativa por cada um deles, numa proporção de um dia por cada vinte ovelhas que traga no rebanho. Se o rebanho transumante ultrapassar as duzentas cabeças, serão então dois pastores a cuidar deste.

Uma parte do gado das aldeias do planalto beirão dos concelhos de Oliveira do Hospital, Tábua, Arganil, Nelas, Seia, Gouveia, e Mangualde, iam e continuam a ir, para os baldios da zona serrana das aldeias do Sabugueiro e de S. Martinho, em Seia, e para Mangualde da Serra e Aldeias, em Gouveia.

Estes rebanhos constituídos entre 1000 a 2000 cabeças, sobem para a serra entre o S. João e o

S. Pedro e são organizadas por um maioral. Os pastores que colocaram as ovelhas “chotas” (da terra chã, do planalto) neste rebanho, pagaram em 1997, uma taxa de 600$00 (cerca de 3 €) por cabeça ao maioral, tendo este pago à Junta de Freguesia do Sabugueiro uma taxa pela apresentação de 20$00 (cerca de 0,10 €) por cabeça relativamente a um rebanho de 1200 cabeças. Temos que notar que estes valores hoje em dia acompanhariam a inflação e não seriam de tão baixo custo.

Segundo Martinho (1993:57), a vida de um pastor esteve sempre ligada ao sacrifício do trabalho diário com dureza, sem horários e sem sono, uma vez que o pastor tinha que acompanhar o rebanho, e na Primavera e no Verão, o pastor dormia na choça ou debaixo de lapa (bloco grande e de granito) ao lado do bardo.

Após 1950 a transumância de Inverno passou a ter outros destinos e apesar de se encontrarem mais próximos da aldeia de origem, a invernada passou a implicar a ida da mulher e filhos, visto ser a produção do queijo o objetivo principal desta jornada, substituindo a produção de borregos do período anterior.

A ação do Parque Natural da Serra da Estrela e das autarquias locais na promoção das feiras, realizando a partir de 1978, o Concurso do Queijo da Serra da Estrela, contribuiu decisivamente para a valorização deste produto.

O pastor viu os seus rendimentos aumentarem e a sua imagem sofrer um upgrade substancial perante a restante sociedade. A ação do Parque Natural da Serra da Estrela esteve na origem da mobilidade social vertical ascendente do pastor. Esta mobilidade vertical foi reforçada pelas ações de promoção das associações concelhias dos pastores que se foram constituindo a partir de 1986 e que iria culminar no ano seguinte na formação dos Produtores de Queijo “Serra da Estrela.”

Ainda regendo-nos pelo mesmo autor e com dados de 1998 compreendia-se a contínua mobilidade social vertical ascendente dos pastores em oposição à dos agricultores-proprietários.

Cursos de ovinicultores patrocinados pela Associação Nacional de Criadores de Ovinos Serra da Estrela contribuíram para a contínua melhoria de imagem do criador de ovelhas que passou a chamar-se de ovinicultor em vez de pastor. As medidas da Política Agrícola Comum (P.A.C.) estão na origem de algum rejuvenescimento neste grupo social, algo que não acontecia há décadas.

Concluo com algo simples de aprender e já referido anteriormente:

A transumância é a deslocação sazonal dos rebanhos.

BIBLIOGRAFIA

Martinho, Alberto; Montemuro – A Última Rota da Transumância – A Transumância : do Montemuro à Estrela: Os Caminhos: Os Rebanhos e os Pastores

Silva, Rosa Fernanda Moreira da; Montemuro – A Última Rota da Transumância – Transumância no Portugal Central: Diversidade e Organização do Território

 


Nuno Gonçalves Rodrigues (2014)