BRUNO MIGUEL RESENDE
Bruno Miguel Resende é um ator, performer de fogo, faquir, encenador, cineasta, xamã. Com 8 filmes tem 37 vitórias e 52 nomeações. Tem 10 livros publicados. Tem mais de uma centena de eventos feitos com o grupo que fundou Os Arlotes, tendo participado em peças da Décadas de Sonhos, Teatro Bolo do Caco e outros. Fez o Samhain pela primeira vez em Portugal e criou a Vivência Histórica. Teve outros projetos como Interferência, Teatro Psicomórfico e Spabilados.
“O Tempo é uma continuação da memória também da repetição dessa memória e imitação por mão Humana da sugestiva figura natural das origens.” diz-nos Maurilio Adriani em “História das Religiões”. Facto o qual determina a razão primordial de atravessarmos muitas vezes o deserto do real contemporâneo sem raízes com o passado e assim o presente entregando-se ao saudosismo de eventos proibidos de ritualizar no seu âmago e arquétipos para dar origem à indústria da Morte a qual não prevê a eternidade.
Não é obra do acaso que “Diálogo dos Mortos” transcendeu a literatura à qual estava confinado e emanou uma História localizada em Tongobriga, presente, religiosa, inserida algures entre as possibilidades dramaturgicas de uma vida quotidiana nesse lugar mítico que herdamos de Roma o Hades.
“A religião constitui mais do que uma doutrina ou uma disciplina o fundo gerador do pensar e do imaginar do recordar e tornar presentes os acontecimentos. De projetar no horizonte votos e desejos. Do integrar-se no grande mar do ser percebido por instinto como um espaço e um tempo em movimento contínuo e continuamente reversível.” diz-nos Maurilio Adriani.
Em Tongobriga não existe um espírito do lugar mas sim os deuses nos quais a nossa comunidade acredita vestindo a pele dos antepassados que mais comummente se chamam figurinos. Um livro contém a memória coletiva de centenas de pessoas se não milhares seja pelo texto ou pela fotografia. Um outro livro dito coletânea diz que os seus eventos de dez mil para a comunidade passam a quatro pessoas forçadas ao anonimato e a verem escrito aquilo que um quinto elemento decidir. Inquisição.
Quem leu um auto que se pronuncie sobre a veracidade da tenaz expressão assustadora e docemente embalada nos livros feitos para não serem lidos hoje mas daqui a uns tantos anos. O mesmo se faz em nome da verdade pois se nem minúscula mentira se deve deixar passar deste genocídio todos são cúmplices. Quinhentos anos de Inferno de Gil Vicente se dissiparam a dois mil e dezassete altura em que era revelado o Auto da Barca do Paraíso de Luciano Miguel Resende ou Bruno de Samósata. “Voltamos ao problema da assinatura na distinção de onde inicia a História ou acaba a literatura” diria Le Goff acaso tal fosse possível.
Já De Certeau acerta em cheio quanto à arte da encenação que traz o prazer de compreender e de reatar relações com os antepassados” ou mais ainda disse eu “recriar a História é dar vida às comunidades. É dar vida aos antepassados.” Ao ver aprovado primeiro livro de vários pensei ter a História a nosso belo prazer para em comunidade se construir em Tongobriga o tão almejado monumento eterno. Escrever e ser mecânico de automóveis ou ser carpinteiro é díspar pois não se trata de mecanismo mas de Humanidade a qual detém o seu próprio prazer no escrever e no ler. Disso se faz saber da crueza trágica que a palco vai na Antígona ou da bola de esterco que disse eu um dia ter sido o sopro inicial do Teatro levada a quatro que de qualquer chão fazem cena logo se instalou acérrima conversa sobre tocadores de cão invertido. Um outro apogeu da civilização onde a realidade e o mundo onírico da verve criativa de cada um se fundem num esboço de um tempo e lugar universalizáveis.
O Livro dos Mortos de Tongobriga é o primeiro livro que se conhece nascido por entre a aridez outrora humanamente fértil de cinquenta hectares de pedras preciosas e cacos que constituem as relíquias de um corpo morto quase dois mil anos antes. Onde este e aquele caco de um copo que um legionário possa ter deixado cair ou uma estilhaçada ânfora que se tenha fartado de ir à fonte se traduz num esplendor de riqueza Humana dizem uns quantos saqueadores de relicários sejam caco ou osso interessa é ter mão Humana como se o milho nascesse sozinho e as ovelhas como as aranhas tecessem as próprias camisolas.
Restos e fragmentos que por todo o mundo se encontram datados do mesmo século que aquele que a comunidade de Tongobriga decidiu viver quando dentro do espaço que escavado bem poderia corresponder ao Fórum onde dois mil anos antes se marcava com os mesmos sons. O tilintar de moedas um riso aqui e um permanente diálogo de todos com todos próprios do feliz chavão com que se abre esta porta da História vinculada a expressão com vários séculos de mundivisão a “paz de feira”. Só de Luciano se tem oitenta e seis colossos da literatura mundial.
E se de França e Rússia se faz credibilizar o génio do pensamento e das literaturas ou de Itália e Espanha a nacionalidade no que toca à credibilidade no caso da Síria se fala para os livros preencherem os devidos pensares da nossa mente emprenhada de medos e castrações que se desfazem tal qual areia entre os dedos com o nome de Luciano nessa época não tão pouco remota.
De dois mil e onze a dois mil e dezassete havia tanta História para escrever pois de vídeo e fotografia se encheu a internet para agora se mostrar desértica e solitária sujeita à bondade de guias espirituais que tudo vendem o que de inútil se manifesta. Foram precisas várias mãos para se desaguar livro solitário a dois mil e vinte escondido do público tanto que até a notícia se queimou nesta pilha de livros a arder que corresponde aos livros que não tiveram a possibilidade de serem publicados ou escritos ou até mesmo salvos em mera impressões que circularam no seu tempo em folhas de papel para decoração do texto a subir a palco pouco atentos ao valor do que se fazia. Sem saberem o seu devido valor. Os tempos outros são. Mesma censura.
Onde termina a literatura e inicia a História se uma cidade se entrega a século contemporâneo do texto seja na roupa ou na própria mentalidade religiosa perguntamos aturdidos de termos ciência exata a ser experimentada para resultado perfeito à primeira tentativa. Se numa igreja não se invoca Mercúrio em Tongobriga não se invoca um espírito uno para se nomear uma mescla de efeitos especiais topo de gama com pessoas a vestirem uma só peça sem bijuterias ou marcas do eu que se vissem temendo tanto o teatro que até a tradução passa a tradição.
A falência intelectual dos donos da História é em grande medida proporcional à arrogância de quem tem impressões para evangelizar o mundo quando o fulcral da questão a dita verdade se fez imprimir de modo mais caseiro e logo menos credível para quem vê credenciais mais imponentes num colorido que num timbre de cinzento se faz colorir em papel.
Nessa tradição transcrita do teatro existem navalhadas e semelhanças a máscara por estar a vedar os rostos ou seja um papel a imitar o contrário da expressividade Humana. É tudo o que de um investimento capaz de encher bibliotecas se diz saber de um sítio onde a plena luz do dia se colonizou com desterro dos habitantes.
Viver a História é o apogeu civilizacional de uma sociedade onde a verdade é tão real que se diz todos os dias sendo a memória e o presente da memória a existência concreta fora do mundo trivial dos aspetos automatizados que em nada se afiguram de inúteis se íntimos e familiares. Latem sem falar latim que intimidade e questões familiares dos quatro pobres seres que aceitaram serem tratados como emigrantes em solo de terra natal com ou sem romanizações o que interessa é a nossa comunidade ter liberdade de expressão e de ensino assim como lecionar e criar. Incluindo ter margem de manobra para editar e encenar assim como escrever e ensaiar e vender o suor da pele dos antepassados.
Assim se consegue o santo graal da memória coletiva a qual partilha um mesmo outro num mesmo barco numa mesma margem num mesmo destino com os mesmos deuses sabe a comunidade de Tongobriga onde todos são iguais sejam analfabetos ou presidentes pois que metamorfoseiam emoções pulsantes individuais e identitárias nesse outro cosmos da História. Esse qual se fará mudar a Teatro sem contudo mudar o título de “Como escrever a História”.
E claro está a ficção científica que dimana o tempo para a frente e para trás. Se houvesse arqueologia em Tongobriga logo a dois mil e dezasseis se saberia desta cosmogonia usada para escrever a História de Tongobriga pois nunca houve um facto consumado de dar todo o espaço e tempo de casa para que uns e outros façam da História instrumento de colonização de cinquenta hectares em pleno coração de uma aldeia que o vê arrancado num sacrifício Humano que em tempos não muito distantes aliás contemporâneos se dita inquisição.
Luciano de Samósata em pleno apogeu de Tongobriga também ele fazia um apogeu mas muito mais vincado na História da Humanidade ao fazer sobressair o que se esconde ou que se sustenta de cronologias e nomes faustos em rendilhados ditos científicos.
Pois o que não parece o é e vice-versa. Também a Teatro se mudou o manual da escrita da História repetida como sempre desta feita pela primeira vez.
Diálogo dos Mortos é um livro histórico e legal escrito habilmente em formato teatral o que não lhe muda em nada o teor fulcral do assunto que é dizer a verdade.
Teatro define-se como o lugar onde se vê e onde se diz em espaços arquitetónicos colossais em magnitude e beleza nesses tempos latinos pois a forma de se definir a História era outra.
Pueril e simples para os que lhe deram forma pois este que aqui que se escreve escreveu os outros e não uns quaisquer. A morte nunca foi impeditivo de se continuar a viver quando seres Humanos como Luciano de Samósata nos deixam tão vasto espólio como legado para usufruir e não para plagiar sem deixar o seu nome cunhado nos tempos tão ocos de vozes sapientes e visceralmente originais.
E do presente que o é sempre que o livro está aberto questiona-se.
Assim o é o monumento literário eterno que se ergue com as mudanças a Teatro dos seus textos.
Existem memórias coletivas como factores inerentes à eternidade de assim chamadas mitologias que na realidade perfazem uma cosmogonia comum à Humanidade como o roubo do fogo.
Nesta religião Prometeu. Tongobriga é uma comunidade que sempre conviveu com o enigma dos tempos bem visíveis nas talhas das rochas que desde descomunalidades chegam a pequenos mosaicos.
Os enigmas que nunca deverão sair das rochas não estão sujeitos à ética da talha Humana e mesmo assim sabe-se se participaram nos grandes mistérios retrocedendo milhares de anos atrás.
Dizem os donos da História haver moral no uso de calhaus.
São mais importantes os calhaus que quem os habita latem como se soubessem latim em pleno prefácio de antologia de celebração de quarenta anos.
Nunca ninguém explicou como se decidiram as fronteiras sobre o que é admnistrado por Lisboa sobre o que é admnistrado pela Junta de Freguesia do Marco de Canaveses. Não se percebe a distinção entre a importância das pedras se todas fizeram parte de Tongobriga e assim de igual idade de talha humana. Mais valor teriam as com duas talhas por servirem o Homem em dois tempos diferentes. É omisso como foram conquistados cinquenta hectares de terra dentro de um povoado milenar administrado por uma Junta de Freguesia que agora só administra metade do seu território. Isto claramente traça fronteiras nacionais diferentes às definidas por lei. Nunca um povoado pode ser fraturado em dois com barreira como se o mesmo sítio fossem dois sítios inteiramente diferentes. Sabe-se da ganância do Turismo e da venda de bilhetes para entrar numa das áreas para além da venda de quinquilharias.
Nunca a data de fundação do Mercado Romano foi lembrada ou os trinta anos de Associação Amigos de Tongobriga.
A linguagem é a mesma das dos padres em missões evangelizadoras nas quais a sobrevivência dos testemunhos escritos se alia à destruição dos livros selvagens ou profanos em casa alheia.
O Ser Humano nunca conheceu a extinção em Tongobriga pois sempre sobreviveu a guerras e maleitas várias ou a pestes e ocupações estrangeiras como agora sucede.
O mosaico do tempo Eterno e do Monumento Humano que compõe Tongobriga requer peritos de múltiplas ciências para lhe definir todas as Histórias capazes de decifrar o animal Humano que nos habita e habitou milhares de anos atrás.
Nem Júpiter escapa ao Destino nem nós escapamos às sementes da Discórdia com que nos fazem perder o rumo civilizacional que se nos afigura.
Existe um Monumento habitado.
Só quem partiu pedra e semeou sobre chuva e temperaturas negativas sabe o trabalho colossal que implica erguer uma pequena casa para proteção mínima das intempéries.
Se as pedras saíram das montanhas outras não voltam a crescer como a madeira. De edifícios inúteis se fez utilidade.
Quem aguentaria ir buscar pedras de outros locais em lonjura impossível. Não existem pedras preciosas. Não existem cacos preciosos.
Existem estas falas que entre o quotidiano e a literatura se foram germinando na boca de cada qual.
Onde um arqueólogo tem mais poder sobre a História quem a definiu e escreveu nas suas palavras ditas em público e copiadas até distarem entre mentalidades mil e oitocentos anos de língua de género literário e até de propósito questiona-se.
Quarenta anos a deserdar os herdeiros. Dizem não termos memória ou identidade como o diziam os padres na evangelização dos selvagens do Brasil.
A guerra é mãe de todas as coisas e dela nascem enxurradas de historiadores diz Luciano de Samósata. Vendemos historiadores como quem vende filósofos.
Consta toda a filosofia antes de Sócrates na bibliografia final como não consta a Ilíada e a guerra de Tróia a ponderar a maçã dourada a qual está na sua origem e vive em tempos de paz.
Outrora reinava a olaria e metalurgia assim como outros artesanatos para agora reinar a quinquilharia.
A Vivência Histórica é uma realidade inegável que faz sobreviver os monumentos erguidos pela literatura milenar que contemporaneamente se ajusta às faunas e floras locais e aos semblantes e identidades de cada qual que compõe a eternidade do Diálogo dos Mortos.
Outros irão herdar estas nossas vozes quando o legado chegar a essa outra margem da História.
por Bruno Miguel Resende