Tom, a arte em casa dos pobres

 


MARIA ESTELA GUEDES


Até meados de maio, na Casa do Design de Matosinhos, no edifício da Câmara Municipal, podemos ver a exposição «TOM – Todo o desenho possível». Tom, nome com que assinava Thomaz de Mello, nasceu no Brasil e morreu em Lisboa, onde viveu a maior parte da vida, integrado nas muitas novidades e inovações dos modernistas. Ele é contemporâneo, embora mais novo, de Fernando Pessoa, Almada Negreiros e tantos mais, na maior parte amigos de uma pessoa determinante na época, apesar de considerada o ideólogo do salazarismo, António Ferro. Não esqueçamos que António Ferro é escritor e que, com a esposa, Fernanda de Castro, igualmente escritora, se relacionaram com uma plêiade de escritores e artistas, quer no Brasil quer em Portugal. Recém-casados, foram convidados a participar nos ciclos de conferências e exposições da Semana de Arte Moderna de 1922, que durou muito mais do que uma semana e alastrou a várias cidades importantes do Brasil. Posta esta primeira geração de modernistas, o movimento desenvolveu-se no tempo e definiu novas formas e atitudes da arte, entre elas a que a levou para um meio que em princípio não a reconheceria: a casa dos pobres.

Tom pertence a este meio, no qual vai assentando arraiais, multiplicando-se em produtos e sofisticando-se passo a passo, a civilização. Recordemos a pressagiadora Civilização do conto de Eça, com os elevadores, o gramofone, o carro elétrico, o gás de cozinha, a luz elétrica em casa e nas avenidas, a água canalizada, enfim. Para dar um exemplo dos mais significativos (ver imagem abaixo), uma das imagens escolhidas por Tom para ilustrar uma edição de luxo de Os Lusíadas, foi a banda, talvez de rock, em que não faltaria microfone para o canto nem a guitarra elétrica; mais provavelmente, atendendo aos instrumentos de sopro, pode a imagem representar aquela jazz band que constituiu o tema de uma das conferências de António Ferro no Brasil, durante a Semana de Arte Moderna. O jazz é a grande novidade musical descoberta pelos intelectuais e artistas nas primeiras décadas do século XX, na Europa.

A arte entra pelas casas dentro, e, se saliento as casas pobres, é porque nas outras sempre lá esteve, quer como livro, instrumento musical, ou quer como pintura na parede. Tom é dos artistas que melhor documentam esta invasão, não só pelos trabalhos gráficos em revistas e jornais, como humorista e caricaturista, mas sobretudo pelos trabalhos publicitários. A publicidade é uma arte que surge em força no modernismo, ligada aos novos objetos da civilização, haja em vista o gás de cozinha, cuja marca era muito conhecida até há bem poucos anos, o gás Cidla. Outro objeto portador da sua arte que entrou em todas as casas, mesmo as mais humildes, foi a coleção de gravuras na caixas de fósforos.

Associada a esta entrada da arte em nossas casas, vale a pena lembrar a propaganda, outra forma de publicidade, agora institucional, fundamentadora de uma ideologia política que prezava as formas populares. O modernismo assenta uma das suas bases na cultura popular, e esta, no tempo de Salazar, em Portugal, foi correia de transmissão de programas políticos importantes. Um deles, famoso pelo apelo a que os turistas nos visitassem na Primavera – «Abril em Portugal» – , foi precisamente a promoção do turismo entre nós. Belos cartazes de Tom assinalam a sua participação no projeto, um deles dedicado a António Ferro (ver imagem).

Outro aspeto da cultura popular de que a modernidade se apropriou para a transfigurar por forma erudita, patenteou-o a companhia de bailado da Fundação Calouste Gulbenkian, Verde Gaio. Tom participou com a sua arte nas iniciativas da Verde Gaio, tal como em espetáculos diversos, sobretudo dirigidos por António Pedro, um dos grandes nomes do teatro português. Aliás, ele veio do Brasil para Portugal com um grupo de teatro.

A publicidade tem o mérito, ontem como hoje, de assegurar rendimentos ao artista, em geral carente de meios regulares de sobrevivência. Tom parece ter trabalhado muito nesse campo, como outros, entre os quais mencionaria Almada Negreiros, também pioneiro nessa área. Almada fez cartazes para cinema, e frisos ornamentais em gesso para o Cine San Carlos, em Madrid.

Quanto à propaganda, um dos seus pontos altos, que também deu salários e visibilidade a muitos artistas, foi a Exposição do Mundo Português, em 1940. Outro ponto alto, muito menos conhecido, contemporâneo deste, foi o grandioso Congresso Internacional de Ciências Naturais, organizado por Arthur Ricardo Jorge, que trouxe a lisboa centenas de cientistas, e deu lugar à volumosa publicação das respetivas atas.

Uma conclusão a retirar destes factos: o fascismo do século XX nenhuma relação apresenta com o dos nossos dias, se tal nome se pode aplicar ao culto e exercício da ignorância, ódio à arte e à ciência que nos está a invadir. Só na repressão, censura, recurso à tortura, alguma semelhança se pode estabelecer. No plano da cultura, não é curial menosprezar por razões políticas os autores do período da ditadura. Aliás nada garante que eles perfilhassem a ideologia. Tom, por exemplo, deixa de Mussolini uma caricatura que revela repulsa pelo fascismo.