ADELTO GONÇALVES
I
Em Dicionário de Termos Literários, o professor Massaud Moisés (1928-2018) incorpora à literatura brasileira o termo alemão bildungsroman, definindo-o como uma narrativa que lida com a experiência das personagens vivida durante a educação ou os anos de aprendizado. Em outras palavras: é o romance de formação, que, a rigor, nasceu com o livro Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister (1796), de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), em que o autor procura retratar e discutir a sociedade de seu tempo de maneira global, colocando no centro do romance a questão da formação do indivíduo. O objetivo foi o de apresentar o caminho traçado por uma personagem principal de sua infância à maturidade, em busca de crescimento psicológico, político e social.
O termo, porém, teria sido empregado pela primeira vez em 1803, pelo professor alemão Joan Karl Simon Morgenstern (1770-1852), de Filologia Clássica, durante a realização de uma conferência, mas só em 1820 o estudioso haveria de associá-lo ao romance de Goethe, que, a partir de então, passaria a ser considerado o marco inaugural de um gênero à parte no romance.
No Brasil, O Ateneu, Raul Pompéia (1863-1895), lançado inicialmente em formato de folhetim pelo jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 1888, é até hoje considerado o maior romance de formação da literatura brasileira. Ao contrário de outras obras do Realismo, O Ateneu não possui um enredo preenchido por acontecimentos inusitados, intrigas, ações, como nos romances comuns, mas reúne análises do autor acerca de seus companheiros num col&eacu te;gio interno e impressões a respeito de assuntos científicos, psicológicos e do cotidiano.
Agora surge o romance Tibete: de quando você não quiser mais ser gente, de Silas Corrêa Leite, lançado ao final de 2017 pela Editora Jaguatirica, do Rio de Janeiro, que segue nessa trilha e apresenta-se como o mais novo exemplo de um bildungsroman na literatura brasileira. Constitui, na verdade, um diário que, nas palavras do seu autor, “informa, transforma, disforma, forma, metamorfoseia, “vidamorfoseia”, expõe grilhetas, desforras e delata, mostra as garras, a faca entre os dentes ( …)”.
Na capa do romance, o autor já faz aviso: “Destruam este diário, ou destruam suas vidas”. De fato, o que o leitor vai encontrar é uma espécie de diário de resistência e luta, em que o principal protagonista relata as tormentas de um ex-escritor marcado, com altos e baixos na vida, mas, afinal, evoluído socialmente falando, e que num determinado momento, descobre que não é feliz, avaliando que o que conquistou não o satisfaz para concluir que “vencer na vida” não é tudo, não significa nada, não faz sentido. “Já fiz coisas horríveis por muito dinheiro. Como trabalhar feito um condenado. Vender a alma para promoção, chefiar, mandar. Pois é, para quê? Depois, o dinheiro não era tudo e o vazio era enorme, imenso”, escreve.
II
Este é ainda o relato de um escritor, com muitos livros publicados, mas que agora se mostra disposto a abandonar a carreira (?), resolvendo deixar para trás a cidade-grande e os seus infinitos círculos de amizade (interesseira ou não) e retornar para a sua aldeia natal, a pequena cidade de Itararé, localizada na divisa entre os Estados de São Paulo e Paraná, que ficou para a história como o local de um episódio pitoresco da chamada Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas (1882-1954) partiu de trem de Porto Alegre rumo ao Rio de Janeiro, então a capital federal.
Esperava-se que ocorresse uma grande batalha em Itararé, que, afinal, não houve, pois a cidade acolheu Getúlio Vargas na estação ferroviária, permitindo sua entrada no Estado de São Paulo. Em seguida, os militares depuseram o presidente Washington Luiz (1869-1957) a 24 de outubro daquele ano. Aliás, aquele movimento de revolução pouco teve, pois foi apenas um confronto em que a nascente elite industrial apoiou o golpe do ex-ministro Getúlio Vargas para derrotar a elite cafeicultora representada pelo presidente Washington Luiz e alguns velhos oligarcas de São Paulo e Minas Gerais.
É nesta cidadezinha mítica, que serviu de inspiração para o jornalista, escritor e humorista Aparício Torelly (1895-1971) adotar o falso título de nobreza barão de Itararé, que o agora ermitão imaginado por Silas Corrêa Leite (espécie de alter ego?) sonha entrar num mosteiro ateu ou um monastério laico para passar o resto da vida, exercitando um anarquismo de caráter pessoal. E descobrir o seu próprio Tibete, que seria similar ao verdadeiro Tibete, que está localizado numa região de planalto da Ásia, ao norte da cordilheira do Himalaia, e que já foi território chinês, at&ea cute; que em 1913 houve a “expulsão dos chineses” por um grupo liderado pelo 13º Dalai Lama. Hoje, o Tibete é um território autônomo dentro da República Popular da China, cuja capital é Lassa ou Lhasa, que literalmente significa “lugar dos deuses”.
Como se vê, o protagonista do novo romance de Silas Corrêa Leite flerta bastante com o budismo tibetano, mas é, antes de tudo, um inadaptado, um ser antissocial, que nunca se entrosou nas corporações que frequentou e das quais se fez associado, até o dia em que decidiu jogar tudo para o alto. “Eu não era aquilo, qualquer coisa no meio deles. Sempre um estrangeiro. Um esquisito, carta fora do baralho. Um alienado total. Então, por que escrever tanto contra tudo e contra todos, feito um arauto do caos, um profeta desarticulador do modus operandi do sistema?”
Por este estilo anárquico e demolidor, o leitor pode perceber que não perderá nada em descobrir este novo romance de Silas Corrêa Leite. Pelo contrário, ganhará muito ao conhecer uma prosa cativante, antenada com o Brasil das últimas cinco décadas, essa barafunda em que os articuladores do golpe civil-militar de 1964 enfiaram o País e que, até hoje, não se sabe onde nos vai levar.
III
Silas Corrêa Leite é poeta, romancista, letrista, professor, desenhista, jornalista, resenhista, ensaísta, conselheiro diplomado em Direitos Humanos e membro da União Brasileira de Escritores (UBE), além de blogueiro e ciberpoeta. É formado em Direito, Geografia e cursou extensões e pós-graduações nas áreas de Educação, Filosofia, Inteligência Emocional, Jornalismo Comunitário, Literatura na Comunicação, entre outras.
Tem mais de 20 livros publicados, entre os quais: Goto: a Lenda do Reino do Barqueiro Noturno do Rio Itararé (romance), Gute Gute: Barriga Experimental de Repertório (romance infanto-juvenil), Porta-Lapsos (poemas) e Campo de Trigo Com Corvos (contos). É autor ainda do primeiro livro interativo da Internet, o e-book O rinoceronte de Clarice. Foi finalista do Prêmio Telecom, Portugal.
Tibete, de quando você não quiser mais ser gente
Silas Corrêa Leite
Rio de Janeiro: Jaguatirica Editora, 382 páginas, 2017.
E-mail da editora: jaguatiricadigital@gmail.com
E-mail do autor: poesilas@terra.com.br
Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imp rensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br