ALEXANDRA VIEIRA DE ALMEIDA
A literatura como a luz oblíqua das palavras
em Diário da casa arruinada, de Tiago Feijó
O termo “diário”, proveniente do latim diarium, está relacionado com a palavra “dia”, considerando-se um gênero autobiográfico. No romance Diário da casa arruinada, de Tiago Feijó (Penalux, 2017), temos uma nota do autor ao relatar que encontrou numa casa em ruínas um caderno de anotações com a história destas personagens que se apresentam no romance em questão. Como nas estratégias narrativas que unem ficção e realidade, o autor quer dar verossimilhança ao que vai editar, revelando que vai reproduzir fielmente o diário para os leitores neste livro. No entanto, o jogo ficcional quebra a expectativa dos dias autobiográficos, deixando o leitor num “entre”, num “talvez”, numa “possibilidade” ou “impossibilidade”, da narrativa ter realmente acontecido, já que ninguém da vizinhança soube da verdade dessas pessoas que teriam circulado pela casa: Quim, Madalena, Selene e Irene.
Dividido em vinte capítulos, o romance tem um preâmbulo do narrador-personagem Quim, apelido de Joaquim, que na luz rascante da escrita, produz seus retardamentos, suas demoras, suas inconstâncias, e que em meio ao motivo “revelado” principal de sua escrita, “o parar de fumar” (um diário de um ex-fumante), conduz o leitor a outros motivos maiores, a sua relação com outros seres humanos, embora sua relação com o cigarro produza faíscas imaginárias no papel, fazendo do texto o corpo do que se abstém. Na abstinência e no nervosismo de seus atos pela perda de seu vício, há um desfile de ações que encaminham o leitor pela curiosidade de um desfecho impactante para Quim. A necessidade da escrita surgiu desde quando ele era pequeno, leitor de grandes escritores da literatura universal e brasileira. Depois, até faz a faculdade de Letras, tamanho seu amor pela leitura e pela escrita. Com senso autocrítico, rasga seus papéis e desiste do dom de criar palavras poéticas. O fumo o conduz à perda desta sensibilidade. Mas é por ele mesmo que ele volta a escrever, produzindo este belo diário que é uma ode ao processo de escrita na literatura.
Há uma intertextualidade marcante neste romance espetacular. São maravilhosas as referências aos grandes autores que criam os elos, os ganchos, na sua narrativa. Textos dentro de textos, citações, que são recriadas pela mão certeira de Tiago Feijó. Como não se deslumbrar com a graciosidade de sua filha Selene, que em meio ao parque, como a Alice no país das maravilhas, corre atrás de um coelho? Ou como em algo mais forte e pesado, em Baudelaire, as bebedeiras de Quim, o vinho delirante dos poetas e sua genialidade? Comparecem tanto as citações literárias, como a sabedoria dos ditos populares a conduzirem sua narrativa a uma recriação das palavras a partir da luz oblíqua da literatura. Seu pai, gerente de um banco, utiliza-se de um dito popular, quebrando o tom solene dos grandes escritores. A leveza, a graciosidade, o peso, e a dureza, se mesclam na sua narrativa, que para além dos vícios da bebida e do fumo, nos levam aos doces sonhos da criança, aos chocolates e brincadeiras, repletas de referências literárias.
O livro é todo marcado pelo compasso da luz, do sol, da lua, sua filha Selene é a lua dos gregos. A luz não é totalmente clarificante, embora esta seja a proposta do narrador-personagem, ou seja, iluminar com sua escrita os segredos escondidos de sua narrativa. Ele quer revelar sua vida e a dos outros, tentar dar um sentido às dúvidas que atormentam sua experiência em meio ao mundo que o circunda. Mas parar de fumar, na verdade, é o leitmotiv para que a escrita aconteça. Se para ele, o relato de um ex-fumante poderia ser algo banal e desinteressante para os leitores, é, justamente, o deixar incessante dos tragos, do fogo que ilumina seus cigarros, que a luz tênue dos vitrais numa noite escura pode nos esclarecer e acobertar sobre sua vida, que tem algo de extraordinário na urdidura estratégica de ações cotidianas e aparentemente banais, como o ato de se barbear, que pela dimensão profunda de sua narrativa, ganha ares de importância vital na sua escrita.
Tiago Feijó, 34 anos, nasceu em Fortaleza (CE) e cresceu em Guaratinguetá, no interior paulista. Formado em letras clássicas pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), atua como professor na rede pública de ensino. O autor é apontado com uma grande promessa literária no cenário nacional. Já ganhou vários prêmios literários, entre eles o aclamado Prêmio Ideal Clube de Literatura, que lhe conferiu a publicação do livro Insolitudes em 2015, obra de estreia que reúne os contos premiados do autor. Em 2016 venceu o Prêmio Bunkyo “Livro do Ano”, e recentemente, em outubro, também ganhou o prêmio Sesc/DF de Contos “Machados de Assis”. |
O grande escritor Guy de Maupassant, exímio na arte do conto, fala sobre os vários tipos de romancistas. O texto “Estudo sobre o romance” (1887) assim diz sobre um desses tipos de romancista: “O romancista que transforma a verdade constante, brutal e desagradável, para tirar dela uma aventura excepcional e sedutora, deve, sem preocupação exagerada com verossimilhança, manipular os acontecimentos, prepará-los e ordená-los para agradar ao leitor, comovê-lo ou enternecê-lo. O plano do seu romance não é senão uma série de combinações engenhosas que conduzem com destreza ao desenlace”. Quanta atualidade nas palavras deste autor do século XIX!!! Tiago Feijó ao narrar o diálogo entre Quim e sua esposa Madalena, uma artista plástica, utiliza uma combinação inusitada e original ao diário para dar dramaticidade a uma relação de casamento que está em ruínas como a casa arruinada, espaço desta desestruturação. Tiago Feijó utiliza o diálogo teatral com as indicações de cenas e a relação entre as quatro personagens: Quim, Madalena, Selena e Irene. O claro-escuro da luz inebriante e embriagante das palavras nos conduz a uma quebra de expectativas quanto às delimitações entre os gêneros. Temos um diário dividido pelos dias de abstinência. Na verdade, um diário que não é exatamente um diário, pela desautorização da vizinhança que relata o não conhecimento destas personagens em seu âmbito real. Um diário que mescla o real e o autobiográfico, ao delirante e fictício. Observem o estágio de sonho na casa arruinada num momento da narrativa. Um diário que se mescla ao teatro, rompendo com as barreiras dos gêneros que se colocam nas prateleiras estanques do tradicionalismo.
Como o diário que está relacionado ao “dia”, Tiago Feijó, fere esta luz clarificante com a luz oscilante da lua, da noite, cortando a pele do tempo limitador. Refundando cronologias, tempos e espaços, a narrativa, por vezes lenta, por vezes iluminadora, mas, por alguns momentos, rápida, ágil e nervosa, como uma vertigem, nos conduz às paragens da vigília e do sonho, da insônia e do sono, do dia e da noite. Mas a luz que ilumina sua escrita deixa sombras em seus rastros, revelando pistas e enigmas para o leitor inteligente. Tiagó Feijó, com sua mão que costura com maestria sua narrativa, leva-nos aos fios dourados e negros do abismo. Um romancista que nos faz mergulhar nas profundidades da escrita e dos precipícios, fazendo o leitor enxergar uma luz oblíqua no final do túnel. Uma luz oblíqua que funda uma nova literatura prestes a conquistar mais leitores e o reconhecimento da crítica.
Diário da casa arruinada, romance. Tiago Feijó.
Editora Penalux, 2017. 168 páginas, R$ 38 reais.
Disponível em:
http://bit.ly/diario_casa_arruinada_leia | E-mail: vendas@editorapenalux.com.br
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
Contato: alealmeida76@gmail.com