ALEXANDRA VIEIRA DE ALMEIDA
O texto como espelho da linguagem e dos seres em Terra úmida, de Myriam Scotti
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux. Contato: alealmeida76@gmail.com
O romance Terra úmida (Penalux, 2021), de Myriam Scotti, ganhou o Prêmio Literário Cidade de Manaus (2020) na categoria regional e narra a imigração de judeus marroquinos na Amazônia. Logo na bela e reflexiva orelha do livro, de Anita Deak, se diz: “De que maneira a relação com a terra que se habita perfaz e transforma as relações mais íntimas?” A questão do território, do local da cultura, revela uma fragmentação do ser e, ao mesmo tempo, a união e separação da família. Os ciclos da vida dos sujeitos assim como os ciclos da natureza se intercambiam. Relações de amor e ódio, os nascimentos e as mortes, as partidas e encontros/reencontros, são conduzidos pelo pulso firme de Myriam, que a partir da visão de duas perspectivas, ou seja, dois narradores, apresenta o espelho que reflete e oculta a realidade a partir da linguagem.
Na primeira epígrafe, de T.S Eliot, ele nos mostra o quanto a memória deixa seus ecos, mas que converge para uma zona vazia de silêncio e do que não poderia ser dito. Na segunda, de Samuel Benchimol, temos a visão da terra prometida da Bíblia sendo revivida pela imigração dos judeus marroquinos na Amazônia. Um diálogo entre o bíblico e o histórico. Mas o livro de Scotti não se caracteriza apenas como um romance histórico, de desenraizamento e fatos ligados à realidade. Ele se agiganta por sua estatura de composição ficcional, que mescla conhecimentos de vários campos do saber como a culinária, a cultura, o social, o religioso, o político, o psicológico, demonstrando o domínio e o trabalho de intensa pesquisa e burilamento da escrita. Um enraizar-se nos espelhos da linguagem ao nos expor as feridas abertas e os nervos estratégicos das narrativas em que se misturam o factual e o real, na dança simbólica do poético e enigmático jogo estético.
Uma das estratégias literárias é a utilização de dois narradores. Na primeira parte, temos as reflexões de Abner a partir da narrativa, na segunda parte contada por sua mãe Syme por meio de diários, com datas e, no final, o retorno do primeiro narrador Abner, na terceira parte, como um epílogo. Assim, nos deparamos com uma narrativa dentro de outra narrativa, que se relacionam e se bifurcam, como numa encruzilhada em que a escolha tem papel fundamental. Dessa forma, o livre-arbítrio para além das questões religiosas e culturais tradicionais, se revela neste adentrar em zonas de descobertas indecifráveis aos olhos da razão. Nos diários, encontramos as origens da família, suas tradições e ritos peculiares.
Aqui, temos a regressão no tempo de muitos anos depois do tempo de existência atual de Abner. O início do tempo narrado nos diários é no ano de 1887 indo até 1911. Os leitores destes cadernos se destinam a um triplo endereçamento, feito por Myriam de forma original, os irmãos Abner e Isaac, filhos de Syme, (leitores internos dentro da obra), nós, os leitores reais, e a própria escrita, que se torna animada pela linguagem. Dessa forma, seu romance é um trabalho rico em ficcionalidade, flertando com a questão da escrita a todo momento, mas sem deixar de lado o outro papel do jogo textual, o processo do conhecimento de si e do outro, nesse intercâmbio entre humanos, mais ainda intensificado por serem preponderantes as relações entre membros de uma mesma família. Outro recurso linguístico é a estrutura própria do primeiro narrador, o filho Abner, e da segunda narradora, a mãe Syme. Isso cria um artifício literário para se revelarem as diferenças de escrita entre os dois narradores. A genialidade de Scotti nos apresenta a primeira parte com capítulos mais extensos e a segunda parte mais ágil, com capítulos mais breves, apesar de ser a parte mais extensa da obra, revelando um inventivo contraste.
Logo no início do romance, o narrador Abner diz: “Um ontem não tão distante, apesar das tantas décadas transcorridas e de meus cabelos já serem brancos como a neve que nunca conheci, os fatos retornam à minha mente com detalhes: o céu demasiado azul e o calor forte, abafado, não deixavam dúvidas de que o mês de agosto havia chegado com toda sua pujança”. A aventura pelas lembranças do narrador conduz ao enredo também memorialístico. O grande mestre da nossa literatura no seu alcance das memórias foi Machado de Assis com seu romance Memórias póstumas de Brás Cubas, entre outros. No seu último romance, Memorial de Aires, temos a estrutura de diários em que o Conselheiro Aires vai relatando seu dia a dia. Na obra de Scotti, nos deparamos com um misto entre as personagens e a natureza, num processo lírico de arrebatamento, como em “a beleza comovente da floresta”. Há um mergulho mágico e encantado do narrador-personagem nos rios da floresta. Dessa forma, a natureza é caudalosa, ao mostrar seu transbordamento afetivo. O afeto do eu que serpenteia o exterior.
No começo da narrativa, há a descrição da mudança que ocorre na natureza numa viagem pelos rios da Amazônia, irrompendo a primeira camada dócil e amena com o inusitado da fúria natural. Isso seria o prenúncio de algo estranho, uma pista, uma sugestão, uma incógnita a ser desbravada pelas águas do enredo? Há o tom de mistério, de algo enigmático no início da história, pois se o narrador começa a falar dele (eu), depois muda o direcionamento, se referindo a “nós”, o que desperta a curiosidade do leitor. Assim, mais uma vez, é nesse convergir entre o eu e o outro que se produzem os espelhos mais translúcidos ou obscuros, como as águas de Tânger (Marrocos) e de Manaus (Brasil), respectivamente. O escurecer na natureza, nessa relação entre linguagem e natura, revela as transformações externas expressas de forma lírica pela palavra. Temos aqui uma rica oposição: a potência e a força da natureza em meio à fragilidade dos seres perante o grandioso.
Há um choque, uma tensão, com a dramaticidade da situação. Ocorre de repente um fenômeno da natureza, um “anel de água”, uma “imensa tromba” que os assusta. Ele até duvidava da veracidade do fenômeno, colocando-o como lendário, mas que se concretiza como um fato. E algo estranho se forma, um “redemoinho”, que nos faz resgatar a frase de Guimarães Rosa: “Viver é muito perigoso”. Aqui, a ação dramática é muito importante. Tal fenômeno assustador causa atração e tremor nos personagens. A tripulação vive um momento agônico, mas vê o belo em tal fenômeno natural. Aqui, podemos nos reportar ao pensador alemão Rudolf Otto com relação ao numinoso ao falar do sagrado. O duplo jogo da linguagem do tremendum e fascinans que nos provoca com relação ao numinoso, pode ser evocado, aqui, com relação ao domínio da natureza. Na sua história, o importante é contar coisas essenciais e impactantes, o que é crucial na sua existência. E a natureza tem sua mimese, uma estratégia narrativa utilizada por Myriam Scotti, que revela o camuflar da natura, essa desconhecida, como no mistério do sagrado e do literário: “Como a natureza era dissimulada, a rir-se de nossa ingenuidade ao presumir já conhecê-la o suficiente”. Isso se dá nas camadas latentes do enredo, em que a mãe do narrador, se dá a conhecer para seus leitores e filhos Abner e Isaac.
As coisas vão se descortinando aos poucos, mas com um tom de mistério e com a cobertura da superfície do real, não deixando tudo vir à tona. E uma das lembranças de Abner é a festa de Bar Mitzra, que ao completar treze anos, atingiu a maioridade, na tradição sefardita, pois foi após esta celebração que seus familiares saíram de Marrocos para Manaus. Várias expressões da tradição judaica são explicadas num Glossário que a autora muito bem organizou para esclarecimento dos seus receptores. Dessa forma, há uma dupla imersão. O narrador se define, se individualiza e se caracteriza e, ao mesmo tempo se insere no seu meio, religião e povo. A imersão é na natureza, mas também é no social.
Lá em Marrocos, o lugar era inóspito, com miséria, escassez e problemas religiosos, como a não aceitação da minoria judia pelos muçulmanos. Com violências, a convivência era difícil, não podendo se misturar. O interessante é notar como o narrador parte do retrato natural para o retrato cultural, ambos retratos de tensão, que crescem numa gradação ao longo da história se misturando. Todas as condições adversas observadas pelos familiares como as “guerras civis”, as “pestes”, “as péssimas condições sanitárias”, que levavam à morte, não destroem o que há no seu interior, o amor ao lar e à pátria. O motivo da viagem, alegado pelo pai, Judah, era conquistar a “prosperidade” em “terras amazônicas”. Assim, se a viagem se inicia interiormente nas memórias do narrador, outra viagem acontece, no exterior. Aqui, é o olhar do estrangeiro em outro território e não a visão do exílio de um brasileiro no estrangeiro. Mas o lá e o cá se entreolham e se cruzam em seus arranjos de atração e repulsa, devido a motivos diversos. Aqui, eles podiam praticar a religião sem temer o preconceito. Há uma tristeza, porém, fazendo o narrador pensar que seu regresso à África seria um retorno ao útero materno, associando a pátria à maternidade, um tema que também é muito explorado no romance. E ele aprende a palavra própria de nossa língua, “saudade”, expressando este sentimento pela língua portuguesa, pois revela o entrelugar e o aprendizado de uma nova cultura.
Em outro capítulo, o narrador Abner retoma a imagem anterior num processo de rememoração das sensações e reflexões anteriores e seus desdobramentos. A natureza aponta para uma ambiguidade que se refere à própria figura de Syme; “mãe” e “carrasco” num só dia. E aqui, Abner é “assombrado por pesadelos” com os desdobramentos de um fato externo e real da natureza nos seus pensamentos. Deixemos o desvendamento dos pesadelos para a leitura dos receptores, deixando-os surpresos a cada leitura de uma nova página do livro de Scotti. O pai de Abner se torna um regatão, levando os filhos Abner e Isaac em suas viagens para transportar mercadorias. O narrador diz: “Até 1910, a produção de látex fazia de toda a região amazônica uma das mais prósperas do país”. Há um retrato da desigualdade do local, pois apesar da exuberância, também havia seringueiros vivendo na miséria.
E Abner não queria viver só do comércio pelo navegar nos rios da Amazônia, ele teria um sonho, que será revelado ao longo da leitura do livro. E havia uma forma de tratamento com relação ao pai e à mãe nesta cultura, à figura materna que era estendida à avó e à bisavó do narrador. Aba, para o pai, e Ima, para a mãe, que são expressões explicadas no final da obra através do Glossário. E Ima Syme aprende e se fascina logo pelos pratos locais, uma exímia cozinheira que já preparava os pratos típicos de sua região. O amor do narrador, assim como de seu pai Judah e de seu irmão Isaac era dividido num amor duplo entre Syme e a natureza da região amazônica em suas viagens pela floresta para o comércio, o que entristece e leva Syme para a solidão. E algo impacta a vida dos três, a doença grave de Syme. Há o retrato tétrico da doença com dores agudas e inchaço da barriga, símbolo da maternidade indesejada. Há todo um cuidado, um aprendizado a partir da memória para Abner reaprender o que deveria ser feito com a mãe adoentada. O tremor mais uma vez ocorre, agora com relação ao humano e não à natureza, ele teria que estar sozinho com a mãe. Nesse enfrentamento, temos as artimanhas da linguagem em seu jogo de contradição. Alguém que é familiar se torna estranho. Agora a viagem seria pelos mapas e peles familiares. Isso o amedrontaria mais do que a viagem geográfica? O afeto que era maior pela externalidade se adentra no seu ser e ele reflete sobre o sentimento do amor.
A fala da mãe se apresenta como uma surpresa ao longo da narrativa. O livro, dessa forma, revela máscaras cada vez mais inusitadas que são descortinadas pelas letras iluminadas da linguagem que desoculta aspectos conflitantes e, até terríveis dos seres humanos. E o que dizer no seio da própria família? A mãe aponta uma faca aguda e afiada, metaforicamente, no filho. E a ironia é uma das marcas desta narrativa. O filho teria o real entendimento em meio à adversidade que a mãe relata? São cenas carregadas de afetividade e comoção familiar e íntima em todos os seus pincéis contrastantes. E há um relato antitético, pois em meio à náusea, o asco e o mau cheiro, temos a natureza exuberante do lugar. O papel da mulher na cultura desta tradição também é preponderante, Rivka, é a moça escolhida para seu filho Abner se casar. A fisionomia da moça revela o interno, ou seja, o exterior mostra o que estava dentro. Os traços físicos da moça demonstram uma psicologia. Aqui, no narrador, há o choque entre prisão e liberdade, tradição e livre-arbítrio, indivíduo e coletividade. Numa fala da avó Fortuna, quando ele ainda morava em Marrocos, há um jogo com as palavras parecidas em sonoridade, mas diversas nos sentidos, como em “arrebatavam” e “arrebentavam”, com relação aos amores. O casamento aqui é uma instituição e cabia aos pais escolherem com quem os filhos deveriam se casar.
Em vários momentos da narrativa, Abner imagina, efabula, como poderia ser, mas não foi, convergindo para o presente e para a epígrafe de T.S Eliot. Imagina como seria sua vida de casado com a judia Rivka, confessa que preferia o amor sem compromissos. A tradição era o casamento e a mãe exigia obediência. A mãe, oscilando entre a dureza e a doçura, entre a ironia e a humanidade, faz o narrador entrar em contradição, titubeando entre realizar um desejo da mãe após uma fala sem firmeza dela, pois não disse em voz alta, murmurou, quase segredando. Há a liquidez da fala, entre o sim e o não, sem a palavra sólida imperativa. Aí nos perguntamos, aquilo era seu desejo para o filho? Ele teria escolha? Os outros personagens também teriam o poder da escolha? E ele passa a refletir sobre a solidão de sua mãe, a doença o leva a uma aventura interior e não nos rios caudalosos e negros da região. Mas a doença da alma dela era maior que a física.
O livro fala de perdas, de ausências, de faltas dos sujeitos amados. Depois de um fator triste, Abner passa a entender mais a mãe. O desnudamento dos seres se revela aos olhos dos leitores. E nessa memória seletiva, há momentos de lapsos, de esquecimentos e de lacunas. A mãe, por exemplo, tentava preencher a ausência da tríade masculina, ordenando a casa. Como combinado antes de virem para o Brasil, seu marido Judah trabalharia com o tio-avô de Abner na área de cartório, mas não era sua escolha, preferindo ser regatão e se aventurar pelos rios amazônicos a partir do negócio do tio Moisés de Abner. Desde o século XIX, os judeus marroquinos vinham para o “norte do país” na “época do apogeu da borracha”.
Na descrição física e psicológica do irmão Isaac, havia contrastes entre a aparência e a essência, uma oposição entre máscara e individualidade. O irmão queria o espetáculo e o expectador, contar suas aventuras e perigos nas viagens com seus pais. Apesar da aparência franzina e tímida, era extrovertido. A plateia e a dramatização seriam elementos importantes na vida de seu irmão. Ele tinha a arte da persuasão, todo o convencimento e retórica. E o narrador vai tecendo na sua trama textual suas impressões sobre Isaac, fazendo confissões ao leitor. E, magistralmente, Abner faz comparações opositivas entre membros da família, aqui, com relação ao irmão a partir da área da culinária. O leitor não quer convencer o leitor a ter simpatia e afeição por ele, mas será que ele não queria ter um maior afeto da mãe, apesar da dureza e ataque recorrente dela? Em meio a mortes, perdas, nascimentos, festas, temos os elementos contraditórios da vida, com prazer e dor. Comparecem aqui celebrações de vida e ritos fúnebres. Festas como o Pessach e o Shabat. Ao longo de toda a história, temos a visão tensa e agônica da realidade.
O pai se encantou com a atividade de regatão, pois poderia conhecer as mais diversas culturas e povos na nova localidade. A questão da oralidade é bem importante na região, com o papel da escuta, do ouvir e do falar. O escrito e o falado se imbricam como nos rios enamorados do tempo e do espaço. Mas aqui também tinham muitos problemas, como a malária, que o amigo de seu pai pegou. Judah também contraiu. O pai de Abner e Isaac se tornou regatão para levar suprimentos e mercadorias em regiões afastadas no meio do mato através dos rios. Myriam mostra também na sua obra a potência da crítica social, apresentando as relações de poder dos coronéis (como senhores feudais) que “eram os donos das terras onde havia as árvores com o látex”. Em meio ao fausto desses senhores, encontramos a precariedade e miséria dos seringueiros. Uma família portuguesa também se torna amiga desta família marroquina, e os costumes se misturam a partir da culinária.
O espelho num certo momento poderia ser a metáfora para o encobrimento do que poderia ser visto, o que é nu e aberto é coberto, um ato, uma ação, que reflete a ideia de culpa. As relações familiares são extremas, beirando entre a escassez e o excesso. Enquanto a avó representa o carinho, a doçura conjugada à sabedoria, deixando ele ser, no seu processo de individualização e identitário, sua mãe quer cortar suas asas. As metáforas do lar como prisão e o rio como liberdade mostram as contradições que perpassam a obra de Scotti. Há oscilações entre a potência da familiaridade, a partir dos afetos, sua desfamiliarização, pelo estranhamento e secura, com processos catárticos de refamiliarização, havendo momentos ambíguos na rede sígnica no campo das relações humanas. As mortes ao longo do enredo aparecem como uma iluminação, uma lamparina no navio interior. Mas há, ao mesmo tempo, o processo de anoitecimento, conduzido pela escrita inventiva de Myriam, nos nocauteando com surpresas cada vez mais impactantes até o final da obra, que nos enreda numa cadeia inesperada. O relógio também serve como metáfora de retorno à vida, num dos momentos importantes na história. Há todo um processo de ressensibilização, de retorno ao humano, mostrando que não é apenas a mulher que teria uma maior sensibilidade. Aqui, tanto as personagens masculinas quanto as femininas são cruciais em seu enredo.
Nesta obra admirável, as personagens se confessam, o murmúrio, o silêncio, são quebrados, rompidos, como a casca do ovo, saindo dali a vida, brotando a existência. Ao longo do romance, Myriam nos mostra e esconde, como na duplicidade do ser. Algumas coisas vêm à tona, outras ficam armazenadas no quarto interno das personagens. Algumas feridas são abertas, mas não cicatrizadas. Nos diários se revelam os verdadeiros desejos, pensamentos e sentimentos da mãe de Abner e Isaac. Há imagens que têm analogias como o refúgio da praia para a mãe e os rios para o marido e filhos, símbolos da liberdade em meio à reverência e à tradição. No romance, temos os olhares do feminino e do masculino, mesclando dois narradores dos dois sexos. Compreender o mistério do outro, tão difícil em nossa sociedade, parece-nos dizer o sussurro de suas páginas.
O que ressalto nos diários de Syme é a conversa com a escrita, como um objeto inanimado ganha vida e personalidade, sendo a própria personagem, adquirindo vida própria. Syme escreve: “E tu, diário, não tens nada a me dizer?” Nos diários também, originalmente, há saltos no tempo, lacunas, vazios, páginas em branco, mostrando aquilo que não pode ser dito ou expresso, o que deve ser silenciado. A escrita faz vir à tona os sentimentos mais adversos, antagônicos, complexos, revelando o amor e a amargura. A escrita faz confissões avassaladoras que irão arrebatar/arrebentar os leitores. Esses irão se aproximar ou se incomodar, num processo de ondulação afetiva. As impressões sobre a nova terra flutuam como o Rio Negro em suas diversas expressões de afeto e ódio. Assim, como as relações humanas. Syme tem uma personalidade incomum em meio ao que impera. Na região de Manaus há todo um cosmopolitismo, com seus portos que abarcam a diversidade de povos e nações: judeus, árabes e outros.
Há certos momentos nos diários em que há cortes abruptos nas letras, nas palavras, expressando o vazio, o silêncio, o que a memória se recusa. O esquecimento é o outro lado da rememoração, ou ele seria o leitimotiv para o que não poderia ser expresso, como a lenda do avestruz que esconde sua cabeça na terra? Tem-se um processo com a experimentação da linguagem também no romance de Myriam. Esses lapsos linguísticos poderiam expressar o estado de ânimo da narradora, seu adoecimento ou seu esquecimento? Ou ainda, a autora quis criar tal estratégia para o preenchimento dos vazios pelo leitor, sendo esse um criador de histórias a partir de sua imaginação? Há um desocultamento pela palavra, cada vez mais as verdades mais cruas se expõem pelos lábios do texto, o espelho que faz nascer a reflexão e a digressão sobre os aspectos mais recônditos do humano: “Preciso escrever o que tento esconder de mim mesma”.
Portanto, em Terra úmida, temos uma criação inventiva na relação entre o externo (natureza e sociedade), as relações humanas e o jogo das palavras. Esse desocultar também expressa seu oposto, pela falta, pela ausência, o corte doloroso no ser. A escrita serve para expor o que são os segredos do ser. O que poderia ser silenciado no terreno da referência, mas não do texto, da escrita, se apresenta como metáfora a partir do espelho. Mas o cobrir esse espelho com a veste da linguagem também traduz seu esquecimento, seu vazio, seu silenciamento, os reinos do explícito e do implícito, como o grande vestido de casamento de Syme que é passado para as mulheres da família de geração em geração, se cobrindo então da tradição e se desvestindo, se desnudando como recusa e busca da liberdade como o voo de um pássaro. O final surpreendente do romance de Myriam Scotti nos deixará sem fôlego, atirando-nos num afogar nos rios das palavras em seu movimento incessante.
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