Teologia em cativeiro e teologia em liberdade

 

 

 

 

 

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


  1. Sem conhecer a história da Inquisição, do Santo Ofício e da Congregação para a Doutrina da Fé, não se pode avaliar a novidade, o alcance e a importância de um acontecimento recente do Papa Bergoglio. Evoco a história dessas instituições que não poderei desenvolver nesta crónica, mas todos se podem lembrar do papel do Cardeal Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Em muito pouco tempo foram condenadas todas as formas inovadoras de teologia, já depois do Concílio Vaticano II. Era um regresso aos tempos anteriores a esse marcante acontecimento.

E como eram esses tempos? Hoje, dispomos de conhecimento histórico e de abundantes testemunhos[1].

Vou fixar-me numa carta que o grande teólogo Yves Congar, O.P., escreveu à sua mãe, quando ela completava 80 anos (10.09.1956).

Tenho pena de não a poder reproduzir porque é um documento único, na sua verdade e na sua veemência.

Fala dos três exílios que sofreu por imposição romana, sem nunca lhe dizerem a verdadeira causa. «Creio que é por ter dito coisas que não gostavam de ouvir e por ter tocado em problemas sem me alinhar com o único artigo que querem impor a todos os católicos: nada pensar, nada dizer senão que há um papa que pensa tudo, que diz tudo. Ser católico consiste em obedecer».

Acrescenta: «O papa actual [Pio XII], sobretudo depois de 1950, desenvolveu, até à mania, um regime paternalista. Só ele diz ao mundo e a cada um o que é preciso pensar e como deve pensar. Quer reduzir os teólogos a comentadores dos seus discursos e a não terem a veleidade de pensar seja o que for, de empreender algo fora desse comentário, excepto, repito, dentro de uma margem estreita, bem identificada e vigiada, de problemas sem consequências.

«Praticamente, destruíram-me, tanto quanto puderam. Retiraram-me tudo aquilo em que acreditava e ao qual me entregava: ecumenismo, ensino, conferências, acção junto dos padres, a colaboração no Témoignage chrétien, participação nos grandes congressos (de intelectuais católicos), etc.

«Não tocaram no meu corpo; em princípio não tocaram na minha alma; nada me perguntaram, mas a pessoa de um homem não está limitada à sua pele e à sua alma. Sobretudo quando este homem é um apóstolo doutrinal, ele é a sua acção, é as suas amizades, as suas relações, é a sua irradiação normal. Tiraram-me tudo isso, pisaram tudo isso e, assim, feriram-me profundamente. Reduziram-me a nada e, portanto, destruíram-me. Quando, em certos momentos, revejo o que tinha ambicionado ser e fazer, o que já tinha começado a fazer, sinto um imenso desgosto»[2].

Quem diria que este dominicano seria, poucos anos depois desta carta, escolhido por João XXIII, como perito marcante do Concílio Vaticano II?

  1. Referi, no começo desta crónica, a importância de um acontecimento recente de Bergoglio. Que acontecimento foi esse? Vamos por partes.

O Papa Francisco promulgou, a 19 de Março de 2022, a nova constituição apostólica Praedicate evangelium para a Cúria Romana. É ela que detém os serviços centrais de governo da Igreja Católica.

Propôs uma Cúria mais atenta à vida da Igreja Católica no mundo e à sociedade, rejeitando uma atenção exclusiva à gestão interna dos assuntos do Vaticano.

Já, na altura, tinham sido sublinhadas as suas novidades. Acabou com a distinção entre Congregações e Conselhos Pontifícios, passando os vários departamentos do governo da Santa Sé a assumir a denominação de Dicastérios.

Neste momento, importa reflectir nas razões que levaram o Papa a substituir o cardeal jesuíta Luis Francisco Ladaria, que ele mesmo tinha nomeado (2017), por D. Victor Manuel Fernandez, até agora arcebispo de La Plata, na Argentina.

Na carta de nomeação (01.07.2023), trata esse arcebispo por Irmão e aponta ao novo Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé uma tarefa que o Papa considera preciosa e mais preciosa se tivermos em conta o que apontei no ponto 1 desta crónica. É preciosa porque o seu objectivo central é guardar o ensinamento que brota da fé para «dar razão da nossa esperança, mas não como inimigos que apontam e condenam».

E sublinha em termos inesperados e atrevidos: o Dicastério a que Vossa Excelência presidirá chegou, noutros tempos, a usar métodos imorais. Eram tempos em que, em vez de promover o conhecimento teológico, se perseguiam possíveis erros doutrinais. O que espero de si é certamente algo muito diferente e peço-lhe, como Prefeito, que dedique o seu empenho pessoal mais diretamente à finalidade principal do Dicastério que é guardar a fé.

A fé só se guarda, vivendo-a com fervor e testemunhando-a, não repisando formulações de outos tempos. É preciso acrescentar que se trata de «aumentar a inteligência e a transmissão da fé ao serviço da evangelização, para que a sua luz seja um critério de compreensão do sentido da existência, sobretudo perante as interrogações suscitadas pelo progresso da ciência e pelo desenvolvimento da sociedade».

Estas interrogações, assumidas num renovado anúncio da mensagem evangélica, tornam-se instrumentos de evangelização, porque permitem entrar em diálogo com o contexto actual, de uma forma sem precedentes na história da humanidade.

Além disso, sabe que a Igreja precisa de crescer na interpretação da Palavra revelada e na compreensão da verdade, sem que isso implique a imposição de um único modo de a exprimir. De facto, as diferentes linhas de pensamento filosófico, teológico e pastoral, se se deixarem harmonizar pelo Espírito no respeito e no amor, podem também fazer crescer a Igreja. Este crescimento harmonioso preservará a doutrina cristã mais eficazmente do que qualquer mecanismo de controlo.

  1. Em contraste com o que era habitual na Congregação para a Doutrina da Fé – estar sempre contra as inovações da teologia – este Papa deseja e encoraja o carisma dos teólogos e o seu esforço de investigação teológica, desde que não se contentem com uma teologia de gabinete, com uma lógica fria e dura que procura dominar tudo.

Será sempre verdade que a realidade é superior à ideia. Neste sentido, é preciso que a teologia esteja atenta a um critério fundamental: considerar inadequada qualquer concepção teológica que acabe por pôr em dúvida a omnipotência de Deus e, em particular, a sua misericórdia. É necessário um pensamento capaz de apresentar, de forma convincente, um Deus que ama, que perdoa, que salva, que liberta, que promove as pessoas e as chama ao serviço fraterno.

Isto acontece se o anúncio se concentrar no essencial, que é o mais belo, o maior, o mais atrativo e, ao mesmo tempo, o mais necessário. Existe uma ordem harmoniosa entre as verdades da nossa mensagem, onde o maior perigo ocorre quando as questões secundárias acabam por ofuscar as centrais[3].

 

 

[1] Marie-Joseph Lagrange, O.P., Recordações Pessoais. O Padre Lagrange ao serviço da Bíblia, Tenacitas, 2017; Marie-Dominique Chenu, O.P., Une école de théologie: le Saulchoir, Étiolles, 1937; François Leprieur, Quand Rome condamne, Plon/Cerf, 1989

[2] Yves Congar, O.P., Journal d’un théologien. 1946-1956, Cerf 2001, pp.424-431

[3] Vaticannews.va, 01.07.2023


Público, 09 Julho.2023