JOÃO PEREIRA DE MATOS
Um Deus Impaciente
Tinha toda a eternidade mas impacientava-se. Como? Um deus impaciente? Talvez por capricho e poder que ele o contrário à sua vontade nunca foi de admitir mas, mais do que isso, mesmo no que criasse era imperfeito. A modelação do barro genésico requer calma, a exacta e reflectida ponderação, não basta dizer «faça-se» que a coisa fica feita. Quero dizer, feita ainda pode ficar, não será, contudo, coisa de que se orgulhe depois.
Era, pois, um deus imperfeito. Mas, não se iludam, era naquele panteão magnífico, um dos mais fortes e poderosos, temido pelos homens, e pelos outros deuses. Capaz de vergar a Natureza ao seu capricho, desafiava Fortuna e destino, impondo orquestra quisesse até mesmo às Parcas. Coitadas, cortavam o fio do que será quando ele mandava e não quando devia ser. E ele queria-o muitas vezes porque era, já o sabeis, impaciente como ninguém.
Mas era a descomunal potência genésica o seu principal atributo.
Criava animais exóticos e inverosímeis cuja função era desconhecida até mesmo para eles que, depois de experimentarem o que era viver, logo se deixavam morrer, depois da perplexidade e sem deixar descendência. Eram rudes esses bichos. Não houvera tempo para detalhes na tamanha impaciência do deus e a bestialidade das criaturas , magníficas de pujança, além de suicidárias, tornava-as cruéis. Ainda bem que duravam pouco. De outro modo, seriam o terror dos homens e dos outros animais que assistiam, incrédulos àquela proliferação de monstros.
Em contrapartida, quando saiam plantas das suas mãos criadoras, elas espalhavam-se por todo o lado de modo incontrolável, ameaçando sufocar, na sua exuberância, todo o mundo. Porém, mais uma vez, porque eram imperfeitamente formadas, logo feneciam às primeiras chuvas ou, então, era esta nossa divindade que se irritava e as apagava da face da terra enviando um grande cataclismo que não poupava ninguém.
O pior era que tais fracassos, ferindo-lhe o orgulho, o tornavam ainda mais impulsivo e impaciente, ao ponto de uma exasperação endemoninhada o dominar. E assim lhe crescia uma fúria, tão descontrolada que nenhuma hecatombe ou vingança, castigo ou generosidade lhe podiam aplacar o ódio.
Um Deus Cansado
Eu sou o deus cansado. Levo milénios para mexer um braço. Será por que o meu movimento é quase imperceptível ou por que espero em demasia e, num momento, o movimento acontece com a violência indescritível de algo há muito reprimido?
De resto, sou gigante, descanso sobre a montanha — sou, aliás, maior do que ela — e o movimento que, eventualmente, consiga fazer tem a força de um abalo geológico, sentido até nos antípodas. É verdade, o meu metabolismo é lentíssimo, contado em eras, não em dias, ou anos, ou décadas, centúrias ou milénios. Apesar disso, só há pouco me apercebi que sou eu que vegeto em lentidão e as demais criaturas vivem uma temporalidade mais sã. Até aqui, nem as via, nem as conseguia ver, tal era a sua célere existência. Eram, apenas, pontos intermitentes na minha retina e só com esforço comecei a reparar. Não admira, porém. Durante tanto tempo dormi, que a última vez que estive acordado só havia aí uns lagartuxos que desapareceram sabe-se lá porquê. Agora, os seres são ainda mais pequenos, mas tão industriosos que se notam porque constroem umas estruturazinhas muito elaboraras que se estendem até perder de vista, e cada uma tem mil luzinhas embora seja difícil entender para que servem. Talvez, para eles, com os seus metabolismos frenéticos, a noite não seja um piscar de olhos como é para mim e, ao contrário, lhes dure o tempo suficiente para que usem essas luzes, para que possam também viver quando o Sol não brilha. Observei, assim, o caos organizado que promovem e achei-o interessantíssimo, mas o esforço de atenção a esses seres minúsculos desgastou-me, sinto que o sono avança sobre mim como uma maré de sombra, as pálpebras pesam-me apesar de, com todas as forças, as querer manter abertas. É engraçado, ao ver que toda a Criação se mexe com tanta vitalidade, convenci-me que pouco aproveito a vida, estou para aqui deitado nesta cordilheira e era um chão raso quando aqui cheguei. Talvez, todo este mundo que vejo em constante transformação não dure para sempre e pergunto-me se o orbe não irá rebentar enquanto estou a dormir e qual será o destino desses curiosos bichinhos que se dão a si próprios o nome de homens.
O Sonhador
Um deus não dorme. Está sempre atento à sua potência divina. Mas eu queria descansar. Deixar o mundo fluir sem mim, sem a ordem tutelar da minha centelha. Se dormisse, se enfim sonhasse, o que seria de todos?
Cansado, talvez, da eternidade, recaí, então, num torpor absoluto, entrecortado por breves e delirantes sonhos. Mas, sou um deus. Primeiro, obtive o meu desejo que era o de um descanso perene porque um deus nada faz pela metade, e se dorme é para não acordar jamais. Segundo, de cada vez que sonhei, brotou da minha potência genésica uma nova e terrível teratologia. Fiz criaturas tão pavorosas que, não só atormentavam todas os seres como passaram a me ser insuportáveis pois, desde que as, inadvertidamente, criei começaram a invadir-me os sonhos, povoando os meus pesadelos que se adensaram em novos terrores. O pior, é que essa populosa alucinação foi produzindo monstros ainda piores, mais tremendos, fortes e cruéis, alargando a devastação dessa recente espécie. E foi assim que a cada nova geração desses demónios pior se tornou o fenómeno, enquanto eu, dormindo, definhava.
Agora, no último momento de lucidez antes do fim, porque eles chegaram para me aniquilar, não só compreendi que o mundo está cheio de demónios horrendos como me lamento por este infeliz legado. Arrependo-me, com amargura, por alguma vez ter desejado dormir, e sonhar e invejo os simples mortais para quem é tão fácil e doce o descanso, o sono e o sonho.
Um Deus Insone
E, como não durmo nem sonho, deliro. Gostava de vos poder dizer que essa alucinação toda era genésica: que o absurdo que vedes, no qual tropeçais a todo o momento, é obra minha. Não o é. Esta vigília incómoda apenas me permitiu mergulhar, mais e mais, como num poço sem fundo, nos recessos de mim.
É certo que lá encontrei mundos, afinal sempre sou um deus, e dos mais fortes. Mas, esses mundos. Pobres mundos, distorcidos, em sofrimento, pedindo para morrer…
Tal qual me obrigasse à existência porque não logrei nunca desviar o olhar, para descansar a vista, daquilo que sou, e nessa hiperatenção desgovernada não houvesse brecha por onde se infiltrar a morte. O doce esquecimento dela. Mesmo a sua natureza de ser coisa outra, decerto, outra realidade que não concebo nem consigo, que é não ser.
De resto, tenho medo do sono. Mas como? Não sou o possante deus? Aqueles que todos temem porque a minha fúria é certeira? Pois, é essa fama universal e consabida que me impede o descanso. Como me defender dos meus próprios irmãos, que conspiram a minha morte e esperam, há milénios, para me ceifar. Enquanto permanecer acordado não poderão nada contra mim, mas eles são muitos, eu, só um. E, mal fechasse os olhos, eles que são argutos e tão incorruptíveis quanto eu, cairiam sobre mim e quando eu acordasse seria tarde demais. Estou, por isso, em permanente vigília, um impasse que se não quebra nem pode quebrar pois as forças deles equivalem às minhas em magnitude.
Todavia, o cansaço, tomou conta de mim. Fechado no meu palácio, há incontáveis eras, desenvolvi o temor que me exaure. Não querendo mostrar fraqueza, isolo-me. Mas, o isolamento enfraquece-me. É assim que sinto terror dos outros deuses, dos homens, dos bichos, enfim, de tudo o que é vivente e pode ser testemunha do meu depauperado estado.
Sou, neste momento, menos do que um reles homúnculo, recolhido na câmara mais interior deste vasto complexo, na escuridão pesada de uma cela degradada onde ninguém entra. Entregue ao pó e à treva imaginando as glórias passadas, um esplendor que nesta penumbra perpétua é menos do que um sonho. Pois a vigília é lucidez e será ela que, afinal, me irá aniquilar.
Um Deus do Vago?
Não sou a morte. Não sou, sequer, a vida. Algo no meio? Talvez. Nem isso sei. O que pode haver entre o absoluto derradeiro da morte e a precária emergência da vida? Direi, então, que existo. Morto não estou mas a vida parece-me ser outra coisa, mais clara e luminosa, em boa verdade, pulsante. Que sei eu? Eu que não nasci nem sou perene. Fui-me dando conta que estava e ia ficando, na suave lassidão das coisas frágeis, não completamente vivo, não completamente abençoado de não-ser. Sim, sou um deus do vago, patrono do que não é, embora esteja como aquelas ideias difusas que apenas parecem, que enchem de alegria o seu possuidor e que que se revelam vazias na sua incompletude, miragens doidas, ilusões benévolas que talvez sejam o primeiro motor de toda a melancolia. Que direi, então? Como me posso arrogar a um lugar no mundo quando superintendo sonhos e farrapos mentais? Possibilidades condenadas a nunca se cumprirem porque são insubstantes? Porquanto um deus, mesmo do frustre, está aqui apenas para servir a sua função; senão dissolve-se. E se pensares bem, a maioria da estirpe divina tem um papel e um âmbito vitalícios e, nesse sentido, são imortais. Deles é o brilho cristalino, a bem-aventurança da sua majestade, sabem com exacta ciência quem são e o que fazem neste estranho mundo. Em suma, serão felizes, pois tendo uma identidade firme e a serenidade do que é excelente podem gozar o momento e esse, com vimos, para eles não acaba. Nem pela acção do tédio são derrotados. A sua natureza é a de conquistarem as dificuldades e essa escura divindade que é o tédio, meu irmão, é tão persistente quanto estúpida. Opera de dois modos: ou fecha as portas da possibilidade ou as deixa tão escancaradas que se torna difícil escolher. Em ambos os casos o importante é paralisar a vítima. Todavia basta a firme decisão para se sair desse torpor de angústia. Eu, ao contrário, apenas confundo e, mal grado a minha vontade, estabeleço sobre o pobre vivente tal antinomia entre os opostos que ele já não logra agir e se deixa afundar na letargia do que é difuso. Não o faço por mal e é raro chegar a esse extremo. Amiúde, cinjo-me ao leve dissabor: pequenos objectos perdidos (que furto e logo desencaminho pois nada consigo reter), a desorientação na urbe mesmo nos caminhos conhecidos (a minha obra suprema julgo serem os labirintos), a breve nostalgia de um tempo mais simples (que eu próprio, de resto, anseio mas, como tudo em mim, sem saber porquê). As provações mais duras não são comigo, são para as Hárpias ou do Diabo. Eles sim, perdem as almas, traficam o bem e o mal, num grande jogo do cosmo cujas consequências serão para sempre. Humílimo, sou a mais leve sombra, não tenho a eloquência da desgraça, a ambição da hecatombe, a destreza de uma punição exemplar. Nem o incómodo que trago é persistente. Isso poderia pressupor que o meu jugo seria consequente e eu nunca soube o que ando aqui a fazer. Não a miséria existencial, mas algo parecido com o mais leve desespero, um tom suave de tristeza, um fogo morno de júbilo, um resquício de pavor após o pesadelo. Ou, outra coisa qualquer. Olhai o meu corpo: ele é mutante e em fluxo, não se define e desafia a forma seja ela a de um paradigma antropomórfico ou zoomórfico; dedos que não agarram ou garras que não rasgam; ao ponto de se não saber se são dedos ou garras; e porque não vimes ou, ainda, delírio de máquina, todo de engrenagens que não uso? Tomai a minha biografia: não sei quando nasci e é provável que seja o produto de um longa e imprecisa coalescência, uma condensação do que é espúrio. Todavia, surgi velho porquanto porto comigo os signos de terminal senescência. E como esta génese levou o tempo de tantas pequenas eternidades também não sei o que fiz, se é que fiz, pois um acto implica acção definitiva. No máximo, vou fazendo sem que se possam distinguir os inícios, meios e fins de um feito; confundo então essa mais simples das causalidades. Sem nada saber é como se tivesse o dom de perscrutar o futuro. Não sei se sou uno se sou múltiplo, não sei se sou um ou sou muitos, uma legião desarvorada que se declina e que, depois, se reune sem saber que o fez; ou então que foi vária e única que uma coisa não excluiu a outra desde que se entenda a circularidade do tempo ou a sincronicidade do tempo ou que os efeitos precedem as causas ou que não há efeitos nem causas e tudo acontece pelo arbítrio que cada coisa e cada ser impõem a si mesmos.
Não me posso, contudo, queixar de monotonia. Bem vedes, o vago é o reino do vário e logra apequenar qualquer infinito porque um conjunto em expansão ilimitada ainda corresponde a um acrescento unitário ainda que infinitesimal. Ao invés, o mais simples do vago que represento é simultaneamente uma negação categorial e, mesmo que só em potência, todo o universo.
Sou a colecção do pouco. Porém cumpro o duvidoso mester da dissipação e isso é belo, Totem da prosperidade porque só há verdadeira riqueza quando pode ser dispersada, dividida e subdividida e ainda restar imensa; nada tenho, é certo, mas apadrinho quanto projecto louco animou as criaturas dando-lhes a certeza que nele perderão a fazenda, a prole e a vida e mesmo assim perseverar em direcção aos abismos, para que sintam a queda e a vertigem da queda, um arrependimento profundo que dá lugar ao êxtase da aniquilação. Este é labor de amores, e arte vã, e de Império ruído. Esta é a verdade do que é incerto, este é o caminho dos santos; abandonar a evidência em favor da mais insubstanciável ambição. É esse o caminho dos malditos, capitanearem o espírito de um tempo em correria para o futuro sem cuidarem com o mester dos guardiões do que é, e são todos. É esse, por fim, a vereda ainda mais estreita dos alienados; estes perdem o que perderam os santos e os malditos e além disso aquilo que são, pois é a própria identidade que se torna difusa. No rio tormentoso dos impulsos irrestritos submergem aquele quantum de lucidez que conservava a ordem, organiza a memória e constrói um ego. Sem isso entregam-se plenamente a mim. Em paga dessa suprema devoção dou-lhes o segredo do que houver de fantástico que é, aliás, o substracto do mundo; levo-os pela mão nessas viagens e eles ajudam-me com a sua coragem; combatem comigo os monstros que se geram em toda a sentiência porque se não é possível pensar sem que haja engano e errância também não custa acreditar que esse refugo do intelecto ganhe vida com o único objectivo de destronar o seu senhor; e se os sãos os reprimem só para que nos recessos da consciência essas teratologias ganhem mais força, só os loucos podem ver quem são e como actuam e assim combater tais fantasmagorias no mesmo plano existencial; se os derrotarem serão puros mas pagarão com a vida — é a mais antiga justiça universal que só os verdadeiros inocentes haverão ser punidos.
Afinal, sempre sirvo para alguma coisa.
Ah, e talvez seja o grande promotor da dúvida. E essa sim, será para vós, mortais, o que há de mais importante. E ela que me vindique e justifique, embora tenha de confessar que nem isso possa afirmar, convicto. Em vez dessa certeza fico-me pela intuição opaca e confusa como um resíduo mental de um entresonho às primeiras horas da alba.
Por isso, mais do que tudo, não sou. Ou quase.
Poseidon
Eu sou como água. Melhor, eu sou a água. O espírito arcaico que habita cada gota e, então, sou múltiplo. O espírito imemorial que habita o oceano que circunda a terra e, então, sou uno. O espírito activo que habita os rios e, então, sou imparável. O espírito plácido que habita o lago, e então, sou sereno. O espírito manante que brota das fontes e, então, trago a frescura à floresta. O espírito vivificador que compõe cada animal bravio mas também as variegadas gentes, então posso ser feroz ou dócil e, muito raramente, até sábio.
O Lamento de Cronos
Por muito tempo que haja, há sempre também a irrevogabilidade do tempo e eu estou cansado de ser tempo. Sempre vagueando paro o futuro, sempre, desde o princípio até ao fim que bem conheço, que sempre conheci desde o primeiro momento de uma luz que me cegou e que eu soube logo que seria cegueira perpétua embora recordasse até ao mais ínfimo pormenor tudo o que aconteceu, à minha passagem, e recordasse, de igual modo, tudo o que iria acontecer, só a mim negada a alegre inconsciência de não conhecer o futuro e portanto de o poder povoar de qualquer expectativa, retirando daí prazer, a alegria da descoberta, quer quando os melhores anseios, finalmente, se cumprem quer quando se compreende que, afinal, não havia caso para tanto medo. Como por virtude da declarada ou íntima e secreta esperança que o espírito sobreviva ao corpo e que a identidade que sustenta cada um perante o cosmo seja mais e maior do que o brevíssimo sopro que para o comum das gentes é tudo o que lhes foi permitido, enquanto durou a sua passagem debaixo do Sol.
Um Deus errante
Do quanto me detesto faço cansaço. Uma derrota de coisas torpes (não o será toda a derrota?) pois se, ao menos, algo da perfeição fosse meu, no que crio e construo e quero e desejo, poderia encontrar conforto nisso. Mesmo que fosse perfeição imperfeita como o é a das coisas rudes e, ainda assim, plenas e belas e fortes na sua inocente crueza. Para mim não houve nem há nem, sequer, haverá a frescura do que é clássico, repouso dinâmico como o de um gato. Nem a coragem do grotesco, nem o inefável rendilhado do barroco.
Para mim só resta o que é frustre, inacabado, tedioso e repetido. Mil vezes repetido e nunca alcançado modelo que foi entrevisto num tempo antigo. Às vezes pôde parecer que estava perto, todavia já conheceis a dolor da miragem: o mais longínquo era o que estava — que parecia estar — perto. E essa estrutura fi-la toda minha. Eu sou o que anda perdido. Patético e sozinho no deserto que arquitectei. Ou, argonauta do sentido obscuro que mais prospera na penumbra, tóxico fungo ou verme ou outra coisa qualquer, desde que vegete sem luz no seu torpor de séculos.
Pois pari a Criação para andar, perdido, nela.
The Hypergod
Sou um deus e transcendi-me. E agora não sei. Isto é, sei-o demais. Mas, como um deus — já, de si, prodígio de força e poder, ele próprio, superlativo — transcende qualquer limite? Pois bem, essa é a minha potesta divina: encetar por um caminho único de exponencial perfectibilidade. A cada novo estágio ou patamar, mais capacidade aufiro de aumentar todos os atributos que me tornam excepcional, melhor entre os melhores da casta divina, panteão excelente que me parece agora povoado de criaturas reles, frágeis e cheias de falhas. Os meus irmãos já não me podem entender, eu que os supero em tudo, que logrei um entendimento universal, de uma omnipotência tal que os poderia apagar da existência se o quisesse. Não o fiz por piedade, porque são insignificantes. Igualmente, com nada interfiro, pois até o cosmo e as criaturas nele estão tão abaixo da minha condição que não me ocupam de de modo algum. Também isso transcendi.
Explicar-vos-ei, no entanto e com detalhe, como cheguei até aqui.
De um deus vulgar, como era, isto é, imperecível, são, incorruptível e imune a qualquer maleita ou acidente, apercebi-me que isso, por magnífico que fosse, não era, ainda suficiente. Que poderia crescer e ser melhor e então cultivei a presciência, abrindo o espírito, para toda a adveniência que se revelava à minha volta. Espectador do passado e conhecedor do futuro, ví-me já no estado derradeiro da minha evolução. E assim, expandi ainda mais a consciência e o poder de observação, abarcando, nessa altura, não só o todo de tudo como o mais ínfimo fenómeno do mundo até à raiz da matéria. Depois, entendi, que o corpo que foi o meu veículo em todos estes milénios era, apesar de tudo, um obstáculo. Libertei-me dele. Pura energia desencarnada, capaz de perscrutar na grande máquina do universo, também percebi que tinha acesso, instantâneo, a qualquer lugar e a qualquer tempo, e, bem assim, à própria mente e nela aos mais recônditos pensamentos de quaisquer homens, bichos ou deuses que existiram, existam ou venham a existir. A seguir, passei a ser em uníssono com a própria existência. Cada parte de mim está em todas as coisas, e cada coisa individual contém o todo de mim. Pois eu sou infinito e infinitamente divisível sem perder, contudo, a minha intrínseca unidade. Todavia, isso ainda não foi o fim. O universo, este, não é o único. Há um labirinto quase inextricável de outras dimensões, paralelas, sobrepostas, divergentes, incomunicantes para todos excepto para mim. E assim, dediquei-me a percorrer esse dédalo cósmico e a incorporar no absoluto de mim essa multidimensional diversidade. Só então cheguei ao último estágio da perfeição, ao derradeiro degrau, que foi penetrar na própria consistência do vazio. Percebi, na minha total omnisciência, que algo que é tudo não tem um fora à excepção daquilo que não-é, um não-ser por excesso, e quando vi toda a magnitude do que é, redundar num insignificante grão de pó que recedia, cada vez mais, ante mim, suprimi os últimos e distantes resquícios da minha identidade e, libertando-me dos grilhões da existência, tornei-me no nada.