Tempo serial / Romance sideral

 

 

 

 

 

 

TIAGO CFER


Professor de Filosofia, Secretaria da Educação do Estado de São Paulo . Ensaísta e romancista, autor de Gradiente Spectrum (romance, 2023) e Mutações da escrita na época do vampirismo pornográfico (ensaio, 2023)


Seriado, de Mauricio Salles Vasconcelos (Lisboa: Kotter, 2024), apresenta um panorama de enfoques e procedimentos para a escrita do romance no presente milênio. Com a utilização de técnicas de transmissão em rede, vincula trama narrativa ao fluxo de imagens-de-mundo difundidas no universo da produção serial. O autor cartografa as dimensões existenciais de uma época marcada por eclosões de conflitos, crises globais e estilhaçamento de perspectivas coletivas desde o 11 de Setembro de 2001.

O projeto parte de uma narrativa em torno de um núcleo composto por mãe e filho na constituição de um romance familiar, parafraseando-se aqui a conceituação de Freud, não mais em termos tradicionais, mas numa outra vertente, passível de se definir como romance familiar sideral.

Mirna Amorim, “mãe que acabou sozinha em sua própria moradia”, desloca-se entre um espaço de confinamento no Brasil – apartamento onde vive instalada diante de uma televisão enquanto acompanha a telenovela Grande Shopping Veredas – e caminhadas urbanas movidas por sexo irrefreável. Jornalista idosa, desde um desentendimento há seis anos com o filho, Ismael A. B., ela não mais manteve contato com o rapaz, que vive e trabalha em Nova York como ator em séries.

Publicado no Brasil, em 2021, recém-lançado em edição portuguesa pela Kotter, Seriado se localiza entre três polos (Nova York, Rio de Janeiro e Palmeira.Perímetro, cidade fictícia situada em Minas Gerais, Brasil) de uma América assolada com as reverberações do atentado às Torres Gêmeas. Do encontro de Mirna com Ismael num teatro em Manhattan, em dezembro de 2001 – momento em que o filho apresenta uma peça teatral sobre sua própria vida, Ator Principal –, desenvolve-se uma sucessão de eventos narrativos marcados por dinâmicas e impasses comuns à vida globalizada: dissolução dos laços coletivos, dissensos no pacto eminentemente econômico a envolver diferentes territórios e culturas do planeta, acirrados com conflitos de toda ordem e a crise crescente do projeto transnacionalizado do capital.

Ganham a cena multidões de corpos e espectros de humanidade em fuga televisionada sem saída. As conflagrações desencadeadas com o 11 de Setembro surtem um clima de suspense infinito entre o que ocorre e o que é noticiado. Como bem apreendeu Baudrillard, “a não-guerra inaugura a inquietante familiaridade do terror”.

Em contraposição, não mais correspondendo a uma concepção padronizada de socialidade, emerge no romance de Mauricio Salles Vasconcelos uma espécie de sintonia planetária nômade, atravessada por fluxos migratórios e descentralizações geográficas. Cria-se um andamento multitudinal incalculável, tendo o construto de pertencimento favorecido pela tecnologia como propulsor de contatos à longa distância.

O tempo real da vida multisseriada se apresenta em um conglomerado de povos e espaços em confronto, assim como figura o bairro nova-iorquino da última série em que Ismael atuou: Game – Forum – Zero. “Golfo” é o nome de uma espécie de zona extraterritorial dentro da metrópole; ou “Globo – Glomus (Aglomeração rebaixada a uma sobrevivência mantida por refugos, recolhas de real adulterado, subvalorado).” Tudo decorre de uma espécie de locus subterrâneo ‘repleto de contingentes/continentes/concentrações humanos”.

Daí, dessa reversão da megalópole nova-iorquina onde Ismael reside e a mãe vai reencontrá-lo, se desencadeia uma série de acontecimentos que conduzem a trama para um plano aberto, no interior de Minas Gerais (sudeste brasileiro), onde a narrativa ganha uma profusão de caminhos e direções. Terra em transe, o Vale, visitado por fiéis e romeiros do mundo todo, nos é apresentado a partir da perspectiva de um docfiction gravado por Ismael e uma amiga produtora de vídeos, durante a busca dele pela mãe desaparecida após nova ruptura entre os dois tão logo se reaproximam em Nova York.

O Vale se torna, então, set multisserializado de uma hipertelenovela sobre Regiões e Religiões, como também recepciona os descaminhos de errantes lançados à deriva, sem elos familiares reconhecíveis rumo a um coletivo exorbitado, inaudito, desnorteador.

Um cruzamento de prismas se intensifica em várias esferas de conhecimento e subjetividade através de configurações expandidas de estar-no-mundo hoje. A narrativa em trânsito sinaliza processos de individuação das personagens que ganham corpo em um amplo horizonte de espaços heterogêneos, superpovoados. Em vez de cumprir uma função “receptora de mensagens de áudio, espectadora de imagens”, a dinâmica serial explicita o novo campo de produção alcançado pelo “formato fração/fragmento”, assim expõe um personagem do livro, analista do boom dos seriados na atualidade.

De um enredo nuclear, S. Vasconcelos implementa uma história multimodal e serializada: as vidas de mãe e filho, emaranhadas a sistemas de informação, impelidas pela história virótica de povos em guerra e dispersão sobre a Terra. Isso se dá sob a marcação do tempo do desastre, matriz grau zero que se extremiza na sequência dos anos desde o início do milênio. Assim, cada fragmento de Seriado, cada plot concentra um intrincado jogo de antagonismos e enlaces – a figura da mãe, por exemplo, irá se deflagrar em uma personagem que aos poucos constitui a ideia de uma anti-matriz –, de modo que o desdobramento da trama ganha uma força eletrizante característica dos thrillers tão comuns ao universo das séries, revelando, por sua vez, um outro perfil da mulher idosa, ao fim da vida.

A implicação de duas personagens absorvidas pelos seriados – a mãe, enquanto assídua espectadora, e o filho, um atuante nessa vertente videofilmográfica – acaba por fornecer elementos para que uma história doméstica exponha-se em consonância com a serialização, hoje onipresente na realidade cotidiana, própria de uma cultura digitalizada e regida por fluxos audiovisuais.

Assim, Seriado demonstra que a escrita de romance é capaz de recriar trilhas para o império contemporâneo das imagens-fluxos e os diversos modos de arte, inclusive a literatura, na atualidade, quando levada a um dimensionamento tecnonarracional em sintonia com a grande disseminação de streamings. A contar de sua proposição como romance serial, também sideral por força de seus pontos conexos em expansão para rotas imprevistas, sempre amplificadas por referências mitopoéticas, cósmicas, em compasso com a cartografia da terrestridade mais concreta, o livro de Mauricio Salles Vasconcelos restitui à existência humana uma familiaridade inédita. Algo que se experimenta no corpo a corpo com o mundo em sua variedade de dispositivos tecnológicos e disposições comportamentais ocorridas em tempo real, na vertigem de um incessante fluxo de relações e renovações narrativas.

 

Serialização – Contrafluxo Narrativo

 

O campo de provas onde as personagens de Seriado são instadas a agir é da ordem dos simulacros e simulações, de uma virtualidade extrema que as dissuade de passar ao atual – uma lógica hiper-realista de dissuasão do real mediante o virtual (como constata Jean Baudrillard, em “A guerra do Golfo não teve lugar”). Um ambiente em que o próprio campo de provas, característico de nossa cultural experimental, tal como pensa Avital Ronell, define-se pela ironia – calibração retórica decisiva para o destino do teste (Veja-se seu livro The Test Drive).

Aliás, a observação de David Foster Wallace, em seu ensaio sobre televisão e ficção nos Estados Unidos de que a cultura televisiva imanta as narrativas contemporâneas com a “aura da ironia”, também aponta para este foco de nossa análise. Sua voltagem irônica implica, obviamente, a transferência da ideia de aura para uma esfera em que tal ideia foi destituída – ou teve sua autenticidade suprimida: a da televisão. Essa via benjaminiana tomada pelo autor de “E Unibus Pluram: television and U.S. fiction” será fundamental para uma compreensão mais plena do romance Seriado, pois nele a obra de arte passa para o terreno das aparências livres da ideia de verdade.

Suas personagens, espaços e eventos, apesar de aparecerem e serem apresentados neste mesmo mundo em que vivemos – ou seja, apesar de a narrativa assumir seu compromisso realista –, eles operam movimentos que não são completamente determinados pela História. A viagem não se reduz a uma mera volta no tempo, muito menos ao desesperado retorno a uma origem perdida, mas expõe uma arqueologia do presente capaz de apreender as procedências do passado em suas potencialidades que ainda não se realizaram.

Se há um propósito estético ou ético bem definido em Seriado, ele não tem nada a ver com uma reafirmação do passado, tal como ocorre frequentemente hoje em dia com os romances históricos e temáticos mais publicizados no mercado editorial: em sua maioria são livros, tornados marcas, que pretendem nos seduzir com reconstituições realistas de personagens ou acontecimentos ligados à história de alguma ordem ou causa (ativista, identitarista) emergente no presente, como que para legitimar ou fornecer um design prévio para o desejo, a insatisfação e a inquietação coletivos.

Na narrativa de Salles Vasconcelos, as dinâmicas e os aspectos da vida presente, os fluxos de desejos e realizações da espécie humana são tratados não sob o crivo de palavras-de-ordem universais e transcendentes – autenticidade, justiça, recompensa, reparação etc. Ao contrário, transpõem-se para relações de forças que ainda não foram usurpadas ou exploradas pelos valores e discursos de poder que definem a “cena” de maior visibilidade e aderência da literatura e da crítica hoje.

A arte do romance seria melhor compreendida se indagássemos com que outras forças ela entra em relação, e qual a forma que daí decorre como “composto”. Ou, como sua funcionalidade pode ser extraída e transformada do que lhe foi legado como funcional? Como o romance, ao invés de capturar o leitor em um valor de culto e exposição, encerrando-o num circuito ritualístico, ressonante e fetichista, num fanatismo primitivo com a obra, deixa de fundar-se no fascínio e passa a fornecer proposições para uma pragmática realmente política?

Travando uma heterodoxa relação com as séries em fluxo de transmissão contínua pela rede, com a narcose planetária que o uso narcísico das novas tecnologias propicia, Seriado engendra uma infinidade de planos prospectivos em abordagens nada usuais de formas de vida comunitárias, entrelaçadas a misticismos, teorias, etnografias, ciências terapêuticas. Seu furor existencial está diretamente ligado à problemática da linguagem romanesca: quais são as novas relações que podemos tramar com a vida? De que modo combatemos o poder?

Uma sintonia nômade, atravessada por fluxos migratórios multitudinais, contrasta com o estado de guerra serial característico da vida globalizada. A viralização de imagens-em-série reportáveis a um retrato do mundo, sempre violentas, desestabilizadoras e detonadoras de tudo o que é vital, reverte-se em uma linguagem virótica que ganha a consistência de uma cosmopoiesis. Uma cosmopolítica daí se desdobra, capaz de fazer vibrar territórios linguísticos os mais culturalmente diversificados no contexto da mundialização. Uma multiplicidade de signos se projeta entre as distâncias e as temporalidades, entre céus e territórios.

Se a nossa realidade tornou-se experimental – com sua “ausência de destino o homem moderno entregou-se a uma experimentação sem limites consigo mesmo” –, em Seriado o sentido da experimentalidade não se amesquinha ao hiper-realismo da transparência que sempre nos oferece mais estímulos imagéticos, hipertrofias do verossímil. Opõe-se, assim, à obsessão narcísica pelos detalhes que a pornografia faz reinar – introjetando-se em nossos corpos feito um novo estilo de vampirização da lógica capitalista. O experimental no romance de MSV consiste, antes, em desprender da monstruosidade e da obscenidade irremediáveis que a simulação pornô determina como realidade uma existência ficcional em que as representações da sexualidade não conseguem mais colar. O romance e seu programa de um sexo sem sexualismo nem pornografia, liberado de todas as suas funcionalidades de produto nacional bruto, de todas as manias de Narciso, faz-se enquanto Sexo Sideral.

Em meio à farsa experimental, tal como delimita a realidade capitalista, com toda sua mecânica pornô-vampiresca, Seriado nos abre perspectivas para um novo e mutante realismo. Contraponto vital à imobilização geral da pornografia instituída em loopings de discursos reiterados ao infinito por todas as mídias, o livro constela modos de existência completamente alternos, alterados em relação aos valores correntes de coletivo e vida comum. Sua sintaxe dobra e desdobra-se em um outro sexo, hachurando, ao ritmo de seus enunciados, a vida serial online. Acaba por irradiar a cadaverização dos modelos de vitalidade e velocidade capitalistas, cujo sonho de guerras e agonias permanece aqui na Terra feito um fantasma. As ondas de uma política em mutação emergem através de linhas dotadas de insuspeitos e celebratórios estilos de vida.

Finalmente, então, chega-se ao limite do que o título pretendia oferecer ao leitor: o romance familiar neurótico de Freud transmutou-se em romance familiar serial-sideral. Daqui em diante, somente a leitura garantirá uma maior compreensão dessas trilhas desconcertantes ou desnorteantes que a narrativa de Mauricio Salles Vasconcelos apresenta sobre a serialização do tempo presente. Boa viagem.

 

SERIADO, romance de Mauricio Salles Vasconcelos. Lisboa: Kotter, 2024.

 

 

REFERÊNCIAS 

BAUDRILLARD, Jean. The Gulf War did not Take Place. Trad. Paul Platton. Bloomington: Indiana University Press.

RONELL, Avital. The Test Drive. Urbana: University of Illinois Press, 2005.

WALLACE, David Foster. “E Unibus Pluram: A Televisão e a Ficção Americana. In _________________. Uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer. Trad. Vasco Teles de Menezes. Lisboa: Quetzal, 2013.