Temos de parar para pensar

 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO


Mais do que os receios que, naturalmente, poderiam assaltar-me nesta situação de grave pandemia que estamos a viver, em que os meus quase 89 anos de idade e um historial clínico pouco risonho, me põem no grupo dos de máximo risco, mais do que esses receios, dou por mim com este pensamento quase obsessivo:

«Temos de parar para pensar».

As imagens filmadas, creio que por “drone”, de Lisboa e de muitas outras grande cidades dramaticamente desertas, recordando Chernobyl na sequência da explosão do reactor nuclear em 1986, têm o sabor da tragédia que se poderá abater sobre a humanidade.

No passado dia 27, escrevi o que então me veio ao pensamento:

Uma “coisa” que nem tamanho tem, feita de meia dúzia de moléculas à base de oxigénio, hidrogénio, carbono e umas pitadas de fósforo, ultramicroscópica, a meio caminho entre o inerte e a vida ou, como alguém disse, entre a química e a biologia, está a pôr em causa a hegemonia mundial dos EUA e a mostrar que todo o seu enorme poderio militar nada vale face à deliberada inexistência de um serviço nacional de saúde. Está a abanar a já de si frágil coesão da União Europeia, a revelar quão vãs foram as esperanças de Jean Monnet, Willy Brandt e Mário Soares e a dar voz aos partidos antieuropeístas. Está a desacreditar governantes irresponsáveis e populistas como Trump, Bolsonaro e Boris Johnson, a revelar uma Rússia em aproximação à Europa e uma China ambicionando ser a futura primeira potência mundial. Neste quadro, pode perguntar-se «de que vale, daqui para a frente, uma organização militar como a Nato»?

À margem do terramoto no mundo da política, da economia e das finanças, que julgo poder antever-se, assiste-se a uma notada melhoria em alguns aspectos do ambiente natural, nomeadamente e à vista de todos, na poluição atmosférica, dando plena razão à jovem sueca, tão mal e estupidamente tratada por alguns dos nossos comentadores de sofá.

Estas e mais do que evidentes reflexões são suficientes para, em meu modesto entender, que nada sei de ciências sociais e políticas, estar convicto de que

«temos de parar para pensar».

Na realidade, nós e todos os países ditos desenvolvidos, com milhões e milhões de habitantes concentrados em enormíssimas cidades, já estamos parados em múltiplos aspectos das nossas vidas. É nas escolas e nas universidades, na indústria e no comércio, no teatro, no cinema e nos concertos, nos museus e, até, no futebol. Estamos, por assim dizer, fechados em casa, uns porque têm consciência das vantagens dessa atitude, outros porque a isso se sentem obrigados. Uma recomendação que, diga-se, está a ser amplamente respeitada, praticamente sem necessidade de lhe dar o carácter de imposição subjacente à situação de Estado de Emergência decretado no passado dia 18.

Todos sabemos quais os sectores da sociedade que, numa situação como esta, não só não param como multiplicam os seus esforços ao limite das suas forças físicas e emocionais. São os da saúde, dos médicos e enfermeiros ao mais modestos operacionais, são os bombeiros, as forças de segurança e os militares, os farmacêuticos e todos os que nos continuam a assegurar os bens de primeira necessidade e os serviços essenciais. São, ainda, não esqueçamos, os cientistas e os técnicos que, neste momento, estão a dar o seu melhor na luta contra esta pandemia.

Estou convicto de que, quando esta contrariedade passar, muita coisa vai mudar, quer nas relações internacionais quer nas políticas internas dos países. Não estou a falar dos aspectos partidários, mas sim dos da administração, como por exemplo, a das dotações orçamentais para a saúde, as do ambiente natural, as da ciência, da educação e da cultura, as das opções económicas e financeiras, as das relações de trabalho e outras.

Especificando um pouco na área da educação (leia-se ensino) em que, como é esperável, terei algo a dizer e que, no que se reporta ao nosso país, mais me preocupa neste momento,

Começo por recordar uma afirmação do Primeiro Mministro António Costa na cerimónia de entrega do Prémio Manuel António da Mota, no Palácio da Bolsa, no Porto, em 2016: “De uma vez por todas, o país tem de compreender que o maior défice que temos não é o das finanças. O maior défice que temos é o défice que acumulámos de ignorância, de desconhecimento, de ausência de educação, de ausência de formação e de ausência de preparação”.

Num país, como Portugal, onde a investigação científica e o ensino superior, em todas as áreas do conhecimento, está ao nível do que caracteriza os países mais avançados, é confrangedor assistir à generalizada iliteracia dos portugueses, incluindo muitos dos nossos quadros superiores, intelectuais de serviço e políticos de profissão que, embora conhecedores dos domínios em que se movimentam, são falhos de outras culturas, em particular da científica, que a escola deveria dar mas não deu e continua a não dar, como está implícito nas palavras do Primeiro Ministro.

É minha convicção que grande parte desta a situação, vinda bem ao de cima na citada afirmação do Primeiro Ministro, que não mais esqueci, radica, desde há muito e em grande parte, na “máquina pedagógica” do Ministério da Educação. Já aqui escrevi e volto a escrever que os ministros e secretários de estado da tutela, uns com ideias, outros sem elas, têm-se sucedido ao sabor das legislaturas e das remodelações. Foram, entrando, ignorando muitas das disposições dos que os antecederam, criando outras e desaparecendo de cena, dando lugar a novos outros, em repetição deste desgraçado ciclo. Outra parte da responsabilidade desta triste e lamentável situação cabe aos sucessivos chefes de governo que, mais preocupados com outros sectores da administração, dividendos políticos e outras aberrações dos aparelhos partidários instalados, têm descurado este gravíssimo problema, bem expresso nas ditas palavras do Primeiro Ministro: “défice que acumulámos de ignorância, de desconhecimento, de ausência de educação, de ausência de formação e de ausência de preparação”.

Temos, pois, de parar para pensar.

Pensar que é preciso vontade política para promover uma profunda avaliação e consequente reformulação das políticas do Ministério da Educação, em particular as pedagógicas e administrativas.

Pensar no sentido de fazer com que o Ministério da Educação se torne numa das principais preocupações dos governos, não só na escolha dos respectivos titulares, como nas dotações orçamentas que permitam dar às escolas as necessárias condições de trabalho e de relativa autonomia e, aos professores, a dignidade compatível com o importantíssimo papel que representam na sociedade, a começar pelos respectivos vencimentos, colocações e estabilidade.

Pensar na profunda revisão de tudo o que se relacione com o ensino básico e secundário, a começar na conveniente e eficaz formação e avaliação de professores, reformulação de programas passando pelos livros e outros manuais de ensino (que envolvem interesses instalados) com discursos estereotipados que se repetem acriticamente em obediência a esses programas, levando ou, melhor, obrigando os professores, não a ensinar e formar cidadãos, mas a “amestrar” alunos a acertar nos questionários de exames, por vezes, autênticas charadas.

Pensar que o professor não pode, de maneira nenhuma, ser um mero transmissor das noções, tantas vezes, insisto em dizer, estereotipadas e acríticas dos manuais de ensino. Sempre disse e insisto em dizer que o professor deve saber muito, mas “muito mais” do que o estipulado no programa da disciplina que deve ter por missão ensinar. Para tal, os professores necessitam de tempo, e tempo é coisa que a situação que se vive nas nossas escolas lhes não dá. Há que libertá-los de, praticamente, todas as tarefas que não sejam as de ensinar. Há que resolver o problema das suas colocações, com vidas insuportáveis material e emocionalmente, a dezenas de quilómetros de casa, separados das famílias..

Pensar no papel importantíssimo dos sindicatos, não só relativamente aos problemas laborais, mas aos de natureza pedagógica que eventualmente ao aflijam.

Pensar, face às extraordinárias capacidades das tecnologias informáticas no mundo globalizado dos dias de hoje, nas vantagens e desvantagens dos ensinos presencial e à distância, incluindo o ensino superior.

Pensar em intervir no sentido de alterar o tecido social e político dominante na sociedade economicista que domina na União Europeia e que, evidentemente nos envolve, continuando a promover e alargar o fosso entre os que estudam, e assim aspiram e conquistam o direito à cidadania, e os outros.


A.M. GALOPIM DE CARVALHO