ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA
Guerras do Alecrim e da Manjerona

Cena IV
(Entram Dona Nize e Dom Fuas)

Dona Nize: Fagundes, encaminha a Dom Fuas, que meu tio está acordado.

Dom Fuas: (à parte) Ainda o embuçado aqui está? É para ver!ah, cruel!

Dona Nize: Anda, Fagundes.

Fagundes: Senhora, que não há escada para descerem.

Dona Nize: E aquela por onde subiu, aonde está?

Fagundes: Empurrei-a com um homem, que também queria subir.

Dom Gilvaz: (à parte) Devia ser Semicúpio.

Dom Fuas: Pois como há de ser?

Sevadilha: Não há mais remédio, que saltar pela janela.

Fagundes: Mas vejam não caiam no alfuje.

Dom Gilvaz: (à parte) Em boa estou metido!

Dom Fuas: Aonde está a chave da porta?

Sevadilha: A chave tem guardas e está agasalhada no travesseiro do velho, por não dormir numa porta.

Dom Lancerote: Fagundes, venha abrir esta janela, que já vem amanhecendo. (Dentro)

Fagundes: Eis aqui mercês o que quiseram!

Dom Lancerote: Fagundes, que faz, que não vem? (Dentro)

Fagundes: Estou enxotando o gato da vizinha: sape gato. Senhores escondam-se aonde for.

Dona Nize: ai, que desgraça!

Dom Lancerote: (Dentro) Sevadilha, que é isto lá?

Sevadilha: (Dentro) É o gato da vizinha: sape gato.

Semicúpio: (Dentro) Abram a porta que se queima a casa: fogo, fogo!

Fagundes: Ai, que há fogo na casa! São Marçal.

Dona Nize: Eu estou morta!

Dona Clóris: Ai, que se queima a casa, que desgraça! (Entra).

Dom Fuas: Pior é esta!

Dom Gilvaz: Há horas minguadas!

Semicúpio: (Dentro) Abram a porta, que há fogo, fogo!

Sevadilha: Mofina de mim, que lá vão os meus tarecos.

Semicúpio: (Dentro) Não ouvem? Pois lá vai a porta pela porta fora. (Entra Semicúpio com uma quarta às costas, e ao mesmo tempo sai Dom Lancerote em fralda de camisa, e Dom Tibúrcio embrulhado em um lençol, com uma candeia de garavato na mão).

Semicúpio: Fogo!fogo!

Fagundes: Adonde é, meu senhor?

Dom Tibúrcio: Que é isto cá?

Dom Lancerote: Fogo aonde, se eu não veja fumo?

Semicúpio: Como há de ver o fumo, se o fumo faz não ver?

Dom Tibúrcio: Aqui me cheira a Alecrim queimado.

Dom Lancerote: Dizes bem; Clóris, acendeste algum Alecrim?

Dona Clóris: Eu, senhor, não... foi... porque sempre...

Dom Lancerote: Cala-te, que eu porei o Alecrim com dono; há mais mofino homem! Lá vai o suor de tantos anos.

Semicúpio: Com ele podia vossa mercê apagar este fogo.

Dom Gilvaz: (à parte) Estou admirado de ver a traça de Semicúpio!

Dom Tibúrcio: Senhores, acudamos a isto, que se acaba a torcida.

Dom Lancerote: Vede, sobrinho, ainda assim não se entorna o azeite.

Dona Nize: Ai, os meus craveiros de Manjerona!

Dona Clóris: Ai, os meus olhos de Alecrim!

Fagundes: Ai, a minha canastra!

Sevadilha: Ai, os meus tarequinhos!

Dom Lancerote: Ai, a minha burra!

Dom Tibúrcio: Ai, o meu alforje!

Semicúpio: Ai com tanto ai! Senhores, aonde é o fogo?

Dom Lancerote: Vejam, vossas mercês, bem por essas casas aonde será.

Semicúpio: Entremos, senhores, antes que se ateie o incêndio.

Dom Gilvaz e Dom Fuas: Vamos.

(Saem Semicúpio, Dom Fuas e Dom Gilvaz e logo tornam a entrar)

Dom Lancerote: Vereis vós, trampozinha, que fim leva o Alecrim.

Dona Clóris: O Alecrim não tem fim, que nunca murcha.

(Entram os três)

Dom Gilvaz: Não se assustem, que não é nada.

Dom Fuas: Já se apagou, Deus louvado.

Dom Lancerote: Aonde foi? (O fogo)

Semicúpio: Foi no almofariz, que estava ao pé da isca.

Sevadilha: Pois eu não fui que a petisquei.

Fagundes: Pois eu nem no ferrolho.

Semicúpio: Pois eu ainda estou em jejum.

Dom Lancerote: Ora, meus senhores, vossas mercês me vivam muitos anos pela honra que me fizeram.

Dom Gilvaz: Sempre buscarei ocasiões de servir a esta casa. (vai-se).

Dom Fuas: E eu não menos. (vai-se).

Semicúpio: Agradeça-nos a boa vontade, não mais.

Fagundes: Se não houvessem boas almas, já o mundo estava acabado.

Dona Clóris: (à parte) Eu estou pasmada do sucesso!

Dona Nize: (à parte) E eu não estou em mim!

Dom Tibúrcio: Ora, com licença, meus senhores, que me vou pro em fresco. (vai-se).

Dom Lancerote: Eu, todavia, ainda não estou sossegado. Viu nossa mercê bem na chaminé?

Semicúpio: Para que vossa mercê descanse de todo, vazarei esta quarta nos narizes daquela velha, que são duas chaminés.

Fagundes: Ai, que me ensopou! Senhor, que mal lhe fiz?

Semicúpio: É dar-lhe a molhadura de certa obra.

Dom Lancerote: Que fez vossa mercê?

Semicúpio: Deixe, senhor; isto é par que se lembre e tenha cuidado no fogo, que facilmente se pode atear por um acidente.

Fagundes: Vou mudar de camisa. (vai-se).

Dona Nize: Tomara aproveitar os cacos para a minha Manjerona.

Dom Lancerote: Esta advertência merece esta moça, que é uma descuidada, que por seus desmazelos me deixou furtar um capote.

Cantam Dom Lancerote, Sevadilha, Semicúpio, Dona Clóris e Dona Nize a seguinte:

Ária A 5

Dom Lancerote:

Tu, moça, tu tonta

Sentido no fogo,

Senão tu verás.

Sevadilha:

Debalde é o seu rogo,

Que fogo sem fumo

Não é bom sinal.

Semicúpio:

Que linda pilhage,

Que fogo selvage,

Que lambe voraz!

Dona Clóris:

Não sente quem ama.

Dona Nize:

Não temo esta chama.

Ambas:

Que é fogo de amor.

Dom Lancerote:

Cuidado no fogo.

Sevadilha:

Debalde é o seu rogo.

Dom Lancerote e Sevadilha:

Que fogo sem fumo

Não é bom sinal.

Dom Lancerote:

Sentido, cuidado.

Semicúpio:

Que fogo selvage.

Todos exceto Dom Lancerote:

Que é fogo de amor.

Todos:

Cuidado, pois, cuidado,

Que algum furor vendado

Fulmina tanto ardor.

PANO

>>>Segunda Parte

Guerras do Alecrim e da Manjerona
 
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