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EUGÉNIA VASQUES
Armando Nascimento Rosa:
5 anos de Teatro Representado
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(Discurso proferido na Sociedade Portuguesa de Autores, 23 de Novembro de 2005)
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1. Eleita “comentadora de serviço” da dramaturgia em florescimento de Armando Nascimento Rosa, volto a tomar a palavra na SPA para comemorar, desta vez, um feito que se arrisca a tornar-se uma raridade: o facto de a jovem dramaturgia de um até há pouco desconhecido autor eborense ter conseguido alcançar a cena teatral e aí se ter mantido durante cinco anos ininterruptos … A sessão de hoje destina-se, justamente, a revisitar, em forma de selecção antológica, aquelas peças do teatro de ANR que já conheceram leitura ou leituras de criadores muito diferentes entre si, com destaque para João Mota que já deu vida a duas peças: Lianor no País Sem Pilhas, a primeira a subir à cena, (entre 17/10/2000 e 14/7/2001), justamente pela Comuna (com estreia na sala de ensaio do Centro Cultural de Belém), nesta primeira fase ou ciclo de vida criativa de Nascimento Rosa, e, a mais recente, Maria de Magdala: Fábula Gnóstica, a peça que se encontra actualmente em cena num dos palcos da Comuna até ao próximo dia 4 de Dezembro (estreada em Évora no Teatro Garcia de Resende, em 20/10/2005, e que terminará aí a sua carreira em 14/1/2006). |
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2. Como alguns de vós sabem, tenho acompanhado de perto a evolução da poética teatral de Armando Nascimento Rosa, uma poética a que não são, aliás, alheios os seus principais textos ensaísticos, como a sua tese sobre Beckett, autor em cuja obra encontra a valorização de um “teatro do inconsciente”, procedendo, contudo, completamente ao contrário do autor irlandês que é um adepto feroz da recusa da acção…
Como os actores aqui presentes bem sabem e o público atento também, existem características identificadoras desta poética teatral, duas das quais constituem a marca de estilo que demarca Armando Nascimento Rosa dos outros dramaturgos da sua geração: o uso do fabulário mitológico em enquadramento realista, misturando, herética e popularmente, tragédia com comédia, e o uso de um imaginário gnóstico, elevado a palco agónico do inconsciente colectivo ou mesmo lugar psicanalítico. |
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3. Do fabulário mitológico são extraídas personagens e situações que servem ao dramaturgo para, a seu modo, fazer falar os temas mais candentes do quotidiano. Assim, Lianor no País Sem Pilhas recorreu a imagens reconhecíveis dos contos fantásticos, ampliando a mitologia dos contos de fadas e dos filmes de aventura através do recurso à cibernética, o que resultou naquilo a que já chamei “uma espécie de gnose (que os filósofos gregos antigos entendiam como aquela “visão” que transformava o “ser” e o salvava). . . “explicada às criancinhas”.
Audição - Com Daisy ao vivo no Odre Marítimo , exercício de dramatização de vozes que, em primeiro lugar, Élvio Camacho encenou no Teatro Maria Matos (estreia em 14/2/2003), tem por pano de fundo uma pantalha, de recorte platónico, em que os diferentes planos da existência são, insidiosa mas ludicamente, metaforizados pelo actor e as suas máscaras, oriundas sobretudo do teatro heteronímico de Fernando Pessoa, que irão proceder a um exorcismo de pulsões interditas que o autor arrasta do teatro da sua mente para o palco socialmente partilhado do teatro (1). “Sonata cénica e xamânica”, Audição é um económico monólogo (2) que se volve, teatralmente, num conjunto de monólogos das várias vozes, de vocação aforística, cuja simbologia, a exemplo de Lianor no País Sem Pilhas, visa permitir aos auditores-espectadores uma viagem “iniciática” a planos diversos do Ser, conduzidos, guiados, por um xamã-travesti, ou seja, pela drag-queen Daisy Waterfields, alias, Daisy Mason Waterfields, figura ambígua de que encontramos mais espécies na escrita dramática de ANR, como é o caso do xamã cego homem-mulher Tirésias (3) de “Reflexo de Édipo”, versão de Julho de 2002 da futura peça Um Édipo: Mitodrama fantasmático em um acto, primeiro volante de uma trilogia sobre mitos, constituída por Nória e Prometeu: Palavras do Fogo (4) e por Maria de Magdala: Fábula Gnóstica a que já fiz referência.
Um Édipo (5), a minha peça favorita, é um drama de fantasmas, cujos patronos filosófico-estéticos são Platão, Freud e Jung e cujo patrono simbólico é o deus Hermes, o psicopompo, i.e., o guia das almas entre a vida e a morte.
Nesta peça (6), uma vez mais, a veia cómica do autor tem o poder de trazer as aristocráticas personagens mitológicas para a materialidade reconhecível de uma burguesia camiliana, ainda que estejamos embarcados numa viagem “iniciática”. E se a personagem mitológica Édipo continua, neste “mitodrama fantasmático em um acto” ou «drama ocultado» (subtítulo que o autor prefere agora), a ser, em primeira instância, a personagem-lugar-palco de interrogação da identidade individual, da autognose, e Tirésias a personagem ambígua que permitiu ao dramaturgo revisitar e recriar um lado censurado do mito da casa dos Labdácidas (7), a personagem que se eleva deste labirinto mitocrítico é um deus inescapável, infiel, pederasta, mulherengo, mentiroso, vaidoso e muito poderoso que emprestou as barbas ao Deus de Israel. É Zeus, o deus arsenotelus, que foi macho e fêmea, como rezavam os mistérios órficos! É dele reflexo a ambiguidade de Tirésias – mãe e pai -, a ambiguidade censurada de Laio, marido de Epicasta/Jocasta, a multiplicidade de Édipo, o homófobo, a perturbação de Manto, filha sem Mãe. A luta contra o poder paterno é o reflexo do litígio entre o direito sagrado (8), centrado na Culpa, que, em moldes heréticos, coloca Afrodite no chamamento das musas ao som da música de um Orfeu que afinal é Laio, o patrono, na Hélade, da prática da pederastia.
(Enquanto baralha as pistas, o dramaturgo-xamã vai tipificando um complexo que ninguém ousa nomear: o “Complexo de Laio” que Freud, falocêntrica e patriarcalmente, terá preferido recalcar...) |
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4. O Túnel dos Ratos (9) é uma peça mais longa, em dois actos, ou melhor, em 36 cenas ou sequências. O palco imaginado da acção é, como o inconsciente, um palco subterrâneo, uma caverna, espécie de mina meio alentejana, meio nortenha (10) ou inferno católico (Hades) onde germina a “doença das vacas loucas”. As personagens, reconhecíveis como iguais a nós, comportam nomes míticos (Virgílio, Teófilo) numa confusão panteísta de Antiguidade Clássica e Catolicismo (Hérnia de Fátima) que resulta numa enorme paródia muito séria, num grotesco mundo contemporâneo, global e capitalista que isola e bestializa as pessoas e mostra, tal qual o cinema americano, como só perante a catástrofe essas pessoas – nós - voltam a ganhar individualidade e humanidade. |
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5. Em Maria de Magdala: Fábula Gnóstica (encenação de João Mota numa pioneira co-produção entre o Cendrev e a Comuna), mantém-se o gosto de ANR pelo “enredo”, à maneira do “drama burguês” ou do melodrama, partindo do enredo mítico. Mantém-se, nesta peça, igualmente, a propensão para a efabulação em torno do teatro como palco psicanalítico, mantém-se o gosto pela mitocrítica ou pelo discurso da antropologia do imaginário e desenvolve-se até a mistura de géneros dramáticos cujo enquadramento cultural é duplamente significativo por estarmos, no plano das personagens e da acção, num cruzamento de culturas e de eras (pagã-cristã) que anunciam, justamente, o começo de uma nova civilização: a civilização cristã. O gosto pelo imaginário gnóstico enceta, em Maria de Magdala, um rumo mais arriscado ideologicamente, apresentando, sobre fundo de feminismo gnóstico, uma das teses mais polémicas da civilização contemporânea: a impossibilidade de existência de uma teologia feminina em virtude da imposição de uma facção misógina da Igreja católica.
E por aqui nos ficamos, por hoje. Tenho dito.
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TEATRO DO AUTOR |
Goiânia - Uma Nova Caixa de Pandora. Peça tripartida, inédita, Menção Honrosa do Prémio Alves Redol de Teatro – 1988, de instituição única pela Comuna-Teatro de Pesquisa.
Espera Apócrifa (1989), peça breve de acto único, homenagem epigonal na morte de Samuel Beckett, publicada na revista Actor (Lisboa: Cassefaz, Março de 1990), e mais tarde, em versão ampliada, como apêndice ao livro Falar no Deserto. Estética e Psicologia em Samuel Beckett . Prefácio de Eugénia Vasques. Lisboa: Cosmos, 2000.
A Ilusão Cósmica – Viagem ao Futuro no palco (1995-1998). Inédita.
Audição - Com Daisy ao Vivo no Odre Marítimo (1998). Sonata cénica e xamânica. Évora: Casa do Sul, 2002.
Lianor no País sem Pilhas - Uma peça teatral infanto-juvenil (Abril de 2000). Porto: Campo das Letras, 2001.
Vozes Invasoras - Uma Comédia de Horrores Sobre os Direitos Humanos (Novembro de 2000). Inédita. Duas cenas foram representadas em castelhano no espectáculo A Noite deCassandra, do Projecto multilingue Casandra: Teatro e Direitos Humanos, Fundação Instituto Internacional del Teatro del Mediterraneo, Madrid, 2000/2001.
Um Édipo - Mitodrama fantasmático em um acto (2002). Évora: Casa do Sul, 2003.
A Última Lição de Hipátia (2002), seguido de O Túnel dos Ratos (2003). Porto: Campo das Letras, 2004.
Nória e Prometeu – Palavras do Fogo (2000-2004). Edição electrónica em 2005: www.Triplov.com.
Maria de Magdala – Fábula Gnóstica (2003). Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2005.
A Ilha de Colombo – Drama virtual em um actopara três actores (Fevereiro de 2005). Inédita.
Samba de Cecília – Peça dramático-musical (2005). Inédita.
O Eunuco de Inês de Castro - Teatro no país dos mortos (2005/6). Inédita.
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Volumes de Ensaio |
Falar no Deserto: Estética e Psicologia em Samuel Beckett (1994; dissertação de mestrado). Prefácio de Eugénia Vasques. Lisboa, Cosmos, 2000.
As Máscaras Nigromantes: Uma Leitura do Teatro Escrito de António Patrício (2001; dissertação de doutoramento). Lisboa: Assírio & Alvim, 2003. |
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NOTAS |
(1) Cf. Posfácio pp. 64-65.
(2) Com três diferentes encenações posteriores em 2004: estreadas no Funchal, em Setúbal, e em Montemor-o-Novo.
(3) Mãe de Manto, a filha que teve com o Zeus arsenotelus, macho e fêmea, dos mistérios órficos.
(4) Leitura dramatizada em 20/6/2003, com coordenação de Élvio Camacho, na Livraria Eterno Retorno, em Lisboa, e edição electrónica pelo Triplov em 2005.
(5) Encenação de Miguel Loureiro, estreada em Lisboa na sala 1 do Teatro da Comuna em 4/7/2003.
(6) Com tradução em inglês de Luis Toledo, em 2004, a editar em 2006 nos Estados Unidos da América pela Spring Journal Books.
(7) O guénos amaldiçoado desde Tântalo, o herético e, depois, por causa do filho deste Pélops (pai Crisipo), e do filho deste, o cruel Atreu, a que pertence Édipo.
(8) thémis, e o direito novo da pólis, dike, direito que dá voz às Leis, à Razão e aos deuses novos, como Apolo e Atena, outra filha sem mãe que Zeus pariu sem dor. Esta luta imemorial é aqui desviada da rota psicossocial traçada pelos historiadores de orientação marxista já que Armando Nascimento Rosa prefere vertê-la em moldes cristiânicos.
(9) Cendrev, encenação de José Russo, estreia em Évora, em 25/11/2004, no Teatro Garcia de Resende.
(10) É no norte do país que existem, de facto, minas de urânio abandonadas como a desta peça.
(11) Lianor no País sem Pilhas conhece agora uma segunda encenação por Élvio Camacho, com o Teatro Experimental do Funchal, estreada em 30/11/2005.
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Eugénia Vasques nasceu em Coimbra em 1948. Viveu e estudou em Paris (Universidade de Paris VIII) entre 1970 e 1975. Concluiu o curso de Formação de Actores/Encenadores no Conservatório Nacional de Lisboa. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Português-Francês) pela Universidade de Lisboa, leccionou em SãoTomé e Princípe e obteve o Doutoramento em Hispanic Language and Literature na Universidade da Califórnia, Santa Barbara, EUA, com equivalência a Estudos Portugueses pela Universidade Nova. É professora-coordenadora na Escola Superior de Teatro e Cinema, onde lecciona Teorias da Arte Teatral, Análise de Texto e seminários no âmbito da crítica e dramaturgia. Crítica de Teatro, no semanário Expresso, desde 1985, tem escrito centenas de artigos e ensaios, maioritariamente sobre artes performativas contemporâneas e sobre mulheres. Traduziu teatro e, entre outros estudos, publicou os volumes Jorge de Sena: Uma Ideia de Teatro 1938-71, Considerações em Torno do Teatro em Portugal nos Anos 90: Portugal/Brasil/África, Mulheres Que Escreveram Teatro no Século XX em Portugal. |
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