JOÃO MOTA
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João Mota apresenta-se Um livro em acto: Maria Estela Guedes |
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Contudo, esta afirmação, comprovada pela observação no terreno, não deixa de ser curto-cicuitada pela constatação de que algumas das linhas da pedagogia de João Mota, como a questão da paradoxal “transgressão-disciplina” e da criação de disponibilidade interior “total”, se não “formatam” ou “condicionam” esteticamente, pelo menos na aparência, o jovem intérprete, provocam nele uma espécie de “mal-estar” que cada um é, ainda que indirectamente, convidado a resolver com a maturidade que esta metodologia é suposto ter acelerado. A primeira questão que se levanta, centrada no paradoxo transgressão-disciplina, é claro que sublinha a dimensão cívica da responsabilidade individual que João Mota repete, incessantemente, ao longo de todas as suas aulas. A segunda questão, porém, é muito mais difícil de resolver por depender muito das estruturas psíquicas do jovem indivíduo em presença. Mas não podemos deixar de pensar quanto esta linha de trabalho visando a criação de disponibilidade interior do futuro intérprete radica, ela também, num paradoxo que é o resultado da própria experiência de vida de João Mota enquanto formando. Relembremos. A Via Negativa A aprendizagem da profissão de actor por João Mota decorreu, nos primeiros anos, pela via “ditatorial” do método de transmissão vertical – a prática que se aprende com o exemplo --, no âmbito das Companhias de Amélia Rey-Colaço/Robles Monteiro e de Francisco Ribeiro (Ribeirinho). Foi uma aprendizagem marcante que não deixou de criar, todavia, no jovem actor, um desejo de procura de libertação. No entanto, as experiências de formação e artísticas, de ruptura, que viveu, primeiro, com Adolfo Gutkin – em 1970, na Fundação Calouste Gulbenkian --, onde descobriu técnicas específicas de improvisação e contactou com um professor de actores com formação específica em Pedagogia Teatral, depois, com Peter Brook e o seu grupo internacional, logo no ano seguinte, preparou o então jovem actor para uma disciplina veiculada, agora, através de uma via negativa” (na expressão de Grotowski), que consistia na eliminação dos obstáculos que impediam a expressão, que consciencializava o actor através de um método indirecto ou de transmissão horizontal, que fornecia, estruturalmente, uma técnica básica, uma “gramática” fundada, ao contrário dos saberes tradicionais (truques, “tábuas”), na procura do vazio, da “página branca”, da disponibilidade, de um “procurar o estado puro” (Mota, O Texto e o Acto, p. 158), de um fazer “o ponto zero” para o actor se “esvaziar” dos seus hábitos, das suas certezas, dos clichés adquiridos, isto é, da “facilidade exterior” para atingir uma energia, uma força mimética criadora, relacionada com a inteligência consciente e não com a imitação redutora. Eis a razão directa da necessidade que tem este pedagogo de conduzir o estudante-actor para uma filosofia que combate o narcisismo, o vedetismo, e procura a organicidade, a comunicação, a utópica harmonia entre o indivíduo e o Outro, entre o interior e o exterior. O combate, social e político, que subjaz a esta prática de formação emerge claramente sob o conceito, se não paradoxal pelo menos inesperado, de “essencial”. João Mota procura levar o estudante a alcançar, a consciencializar, o “essencial” através de exercícios e improvisações (livres e elaboradas) (1), orientados para o desenvolvimento da intuição e da atenção. Aquele essencial é um campo, segundo a sua metáfora, um campo onde os impulsos de um se encontram com os impulsos do Outro; trabalhar a “improvisação livre”, por exemplo, conduzirá igualmente a uma aprendizagem: a da relação existente entre a verdade da “forma de expressão” (conceito estruturalista da linguagem que é interessante ir detectando como fundo ideológico-formal que deixou, no jargão escolar, os seus traços) e a qualidade da comunicação. Fases do Processo Passar da “pessoa aparente” à “individualidade” é outra das características desta paideia. Trabalhar sobre o corpo e os seus gestos, trabalhar sobre os sons como “meio de expressão”, desenvolver e explorar as “capacidades expressivas”, gestuais, corporais e vocais, dentro das componentes espaço-tempo, libertar e desenvolver os “meios de expressão” para atingir um comportamento “natural” espontâneo, estimular a criatividade e a fantasia são os primeiros instrumentos fornecidos aos futuros actores. Como verificámos, sob a estratégia definida para a formação psíco-física do actor, assenta um ideário de “aprofundamento humano”. Contudo, é com estes mesmos instrumentos que se processará a “construção da personagem”. Mas de que modo se realiza a aprendizagem indirecta e directa que conduz a essa ideia (quase que diríamos “deslocada”) de “construção da personagem”? Partindo do desenvolvimento ou aquisição do sentido de observação e passando deste, à condução progressiva da aquisição do sentido dramático e depois à descoberta do texto. É muito interessante o processo. Primeiro vem a importância atribuída à memória no teatro. Depois, são introduzidos “métodos de incorporação”. O primeiro método de “incorporação” desta metodologia consiste na consciencialização do verbo como principal motor da acção. O segundo método de “incorporação” amplia o primeiro e visa consciencializar o corpo como o outro motor da acção. Nestes métodos emerge, como se constatou nas aulas, o papel central do verso. O verso, tal como para Peter Brook (cf. A Porta Aberta, pp. 9-10) e para os poetas em geral (que João Mota privilegia nas suas escolhas textuais), é uma medida de respiração e é o lugar “da centelha de criação”. Daí que, antes dos textos da dramaturgia, portuguesa ou universal, ou outros textos literários, a descoberta do texto se processe através de poemas de dimensão curta (como o Haiku ou o soneto), populares ou culturalmente interiorizados (os versos de Os Lusíadas, por exemplo). Só mais tarde se procede à escolha de poemas longos versando temas que o professor deseja trabalhar (prazer, desejo de viver, felicidade e outros). Ouçamos uma vez mais Peter Brook para compreendermos o passo seguinte desta metodologia activa de “criação de personagem” e de manuseamento inicial de textos para cena:
Em suma, este “modo dinâmico e activo” é contrário a qualquer “exegese”: trata-se de uma “hermenêutica” prática, de uma “pragmática”, no decurso da qual é construído o “sentido da obra”, num processo de “levantamento do espectáculo” em três movimentos que João Mota enuncia deste modo:
“Alcançar” a criação O actor é, em primeira instância e reiteradamente, aconselhado a partir da realidade exterior para a interior, da vida vivida e observada para a criação teatral. Para “alcançar” a criação, há um conjunto de regras vitais que não devem ser infringidas: não se deve nunca limitar a imaginação e criatividade do actor; o actor deve evitar o “naturalismo” televisivo (falando “baixo”, para um interior), deve evitar o “texto bem dito” e deve, enfim, procurar fazer passar o texto pelo acto teatral (Cf. O Texto e o Acto, p. 158). Mas, de modo positivo, o actor deve, também, obter uma preparação e disciplina técnica e uma “cultura teatral”, assim como cada actor deve respeitar – e fazer respeitar – o seu processo próprio até conseguir “habitar o texto”! Finalizamos esta digressão pelo interior de uma prática de pedagogia teatral tão pessoalizada – que se deveria confrontar, é certo, com a prática profissional de encenador e director da Comuna --, ouvindo a voz do próprio João Mota, num texto datado de 1997, onde fala apaixonadamente da sua profissão:
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(1) A questão do uso e abuso da improvisação é reiteradamente tratada por João Mota nos seus cursos. Vejamos o que a propósito afirma Peter Brook na sua obra A Porta Aberta: . . .Existem. . .duas formas de improvisação: a que parte da liberdade total do actor e a que leva em conta elementos predeterminados, às vezes até restritivos. Neste último caso, o actor terá que «improvisar» em cada espectáculo, escutando novamente e com sensibilidade os ecos interiores de cada detalhe em si mesmo e nos outros. Assim fazendo, verá que nos detalhes mais subtis nenhuma representação pode ser exactamente igual a outra; é esta consciência que lhe permite uma renovação constante. (p. 59). |
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