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******************************Eugénia Vasques

A Crise Realista: A Desmaterialização do Teatro
e a Responsabilização do Espectado
r
Um Século À Procura da Abstracção,
da Imaterialidade e do Espectador Responsável

Conferência na Escola do Espectador, Viana do Castelo, 27/11/08 . 21h30

«Dans un monde sécularisé, le repérage de l’aspect rituel de nos comportements paraît être un outil heuristique permettant à la fois de renouer avec
une approche anthropologique de la culture du corps
et de redonner du sens à nos expériences humaines même dans leurs résonances
les plus archaïques

(Betty Mercier-Lefèvre, «La danse contemporaine et ses rituels»,
Corps et Culture
, Numéro 4 (1999), Corps, Sport et Rites,
[En ligne], mis en ligne le 24 septembre 2007)

I

Na passagem do século XIX para o século XX, o teatro e as artes da representação em geral entram na crise realista que começara a tomar várias formas a partir, sobretudo, da segunda metade do século XIX. Com a quebra do peso da mimese e da ilusão realista, o teatro abandona as convenções dramáticas e transforma os elementos que o compõem em simples variantes. Por um lado, vai desenvolver-se um teatro centrado no corpo vivo do intérprete, conduzindo ao palco mestiço da performance. Por outro, assiste-se ao desenvolvimento de uma metalinguagem que acentua e empola a teatralidade, destituindo, ao mesmo tempo, a importância do sentido uno, da unidade de acção e mesmo do acto de representação. Num caso como no outro, estamos perante uma cena teatral que exige a participação e responsabilização do espectador e que oferece às pequenas «tribos» teatrais espectáculos-experiência cada vez mais, arrojadamente, direccionados para um público especializado na linguagem do criador.

Com efeito, no decurso das últimas três décadas do século XIX, os artistas de países francófones (França, Bélgica e Suiça) reagem ao realismo vigente, sobretudo ao realismo naturalista teorizado por Zola e posto em prática, de 1887 em diante, pelos vários Teatros Livres inspirados pelo Théâtre Libré de Antoine, em Paris. Profundamente convencidos que o teatro era um lugar onde se explicavam textos a quem não os sabia entender de outro modo (Mallarmé), os poetas simbolistas lideraram, em vários países (incluindo a Rússia), movimentações que se traduziam em experiências feitas, sob forma amadora e informal, em lugares de convívio (casas, cafés, etc.) e que congregavam artistas oriundos das várias artes.

Reconhecendo ser herdeiros de uma tradição anti-realista, que remontava, pelo menos, a Wagner e à utopia socializante da «obra de arte total» ou Gesamtkunswerk, os poetas simbolistas uniam-se pela recuperação de uma linha de trabalho unificadora das artes e clamavam por um «teatro invisível» e mesmo sem «personagens e acção», como defendia o radical Mallarmé. (cf. Habert, p. 67). Em 1896, várias foram as vozes a propor um teatro sem actores, sem cenários, sem tralha, como defendia Alfred Jarry, o poeta anarquista, autor de Ubu e que viria a ser o secretário de um dos mais importantes directores de teatro simbolista, Lugné-Poe, fundador em 1893 do Théâtre de l’Oeuvre.

Estamos, em suma, numa interessante fase de denúncia da mimése naturalista, contemporânea do próprio Naturalismo, e o que os Simbolistas defendem é a «palavra poética» como único meio para pôr os espectadores em contacto com o mundo das essências (cf. Roubine, p.8). Este programa idealista, de contornos platónicos, assume, no entanto, um estranho paradoxo. Com efeito, se para os poetas Simbolistas o teatro é o lugar em a PALAVRA se materializa, através da voz e do corpo, é claro que essa materialização, feita por intermédio do actor, representa a própria degradação da Poesia. Resta-lhes, então, como também defendiam os encenadores Appia e Craig, a música – arte do tempo e não pesada arte do espaço como a cenografia ou os figurinos ou a representação grosseira, opaca, do actor -- como a única materialidade que o teatro, a existir, devia ou podia admitir.

E o que é que estes desmaterializadores do teatro e das artes propunham para substituir a encenação realista ou naturalista que começava a ganhar terreno no interior de um estiolado e desgastado teatro burguês? De acordo com o seu ideário elitista e individualista, seria a imaginação e a capacidade de sonho do espectador que se deveriam responsabilizar pela encenação (do/s sentido/s); A encenação deveria, portanto, renunciar às tecnologias e maquinarias, que a descoberta da electricidade potenciava, a fim de que ela não se tornasse um obstáculo visual e ilusionista à comunhão poética que o espectáculo deveria estabelecer com o espectador. O actor, por seu lado, nessa utopia Simbolista, sendo o veículo principal de materialização da palavra poética, era o elemento teatral que provocava maior desconfiança. Assim, para que ele continuasse em cena – no caso de o Poeta se recusar a tomar-lhe directamente o lugar, o que fizeram alguns, como Mallarmé--, deveriam criar-se-lhe obstáculos e barreiras à representação realista!

Entram, então, em cena várias propostas concretas para uma interpretação não-realista baseadas na irrealização gestual, na dicção cantada como um salmo, na máscara em substituição do histrionismo e da emoção, como aquelas defendidas por Alfred Jarry, ou a estilização do actor em “übermarionette” defendida pelo actor e encenador inglês Edward Gordon Craig. O compositor suíço Adolphe Appia, estudioso da música de Wagner e que se tornará cenógrafo e encenador por amor à obra revolucionária de Wagner, propõe, na mesma senda da estilização, que o teatro coloque o corpo vivo do actor no centro de uma acção cénica que teria o movimento e o ritmo como elementos fundadores de uma relação nova entre o actor e o espaço (artes do espaço), visando transformar a arte dramática – no sentido wagneriano do termo – numa autêntica Obra de Arte Viva, o título da sua reflexão mais emblemática de um teatro visionário de futuro. O texto do autor mantém aqui a sua relevância absoluta pois constituía o centro de uma partitura teatral de que o encenador seria o maestro.

E é pois nesta linha de progressiva estilização do corpo e do teatro no seu todo que se desenvolvem, ainda que sobretudo no quadro de teatros particulares e amadores, inúmeras experimentações de um teatro não-realista, não-figurativo cuja existência problemática o poeta Tchekov ilustra, à perfeição, na sua peça magna A Gaivota, reflexão intensíssima sobre o embate epocal entre Naturalistas e Simbolistas.

I
Seis Grandes «Tentações»

Adoptando, parcialmente, como guião para o ponto seguinte desta reflexão a tese das “Seis Tentações do Teatro” do século XX proposta por Jean Jacques Roubine, na sua obra pedagógica de 1990 Introdução às Grandes Teorias do Teatro, podemos propor uma leitura genérica do teatro no século XX baseada na evolução das formas dramáticas, caminho que não aprecio particularmente, mas que nos ajudará a sistematizar ideias e a preparar raciocínios para as sessões dos próximos dias.

Segundo este autor francês, a primeira metade do século XX, que estendemos até por volta do final da Segunda Guerra Mundial (1945), ostenta um teatro fundado numa primeira «tentação», a tentação de substituir o autor, o dramaturgo, o poeta, pelo encenador, novo responsável e autor do espectáculo, o que promoverá uma atitude de recusa das velhas teorizações herdadas que dão, agora, lugar à voz individual dos encenadores de teatro como intérpretes últimos dos autores e do sentido das suas obras. É o fim da era normativa do texto dramático, o fim da era do autor e o momento, cosmopolita, em que o encenador passa a ser o autor do espectáculo. Contudo, ainda por volta dos anos 50, embora se tenda já a ousar tomar «liberdades» com o texto, a verdade é que este é ainda um tempo dominado pela segunda «tentação», a tentação da superioridade do texto e da autoridade do grande repertório, um tempo em que se discute o papel dos clássicos e da sua representação, o que promovia uma encenação pautada pela exigência intelectual – herdada do Naturalismo -- num confronto do encenador com o universo do texto que o encenador deveria saber «escutar». A encenação seria, assim, ainda, uma espécie de «caixa de ressonância» do «sentido» do texto do autor que o encenador teria de provar ser capaz de «desocultar».

Na segunda metade do século, entre o final da década de 50 e o início da década de 60, viver-se-ia, ainda, uma fase de «dupla soberania», a soberania do texto e a do encenador. O estruturalismo (Barthes), pondo fim ao mito do «segredo» do texto e ao mito da intenção do autor, dá origem a uma nova modalidade de relação encenador-texto. Trata-se agora da submissão do encenador não já à intenção do autor mas à materialidade do texto, o que vai permitir, na cena, uma grande liberdade de acção e vai permitir à interpretação do texto, libertada do jugo da falaciosa intencionalidade do autor, afirmar-se, cada vez mais, como uma interpretação pessoal e intransmissível, múltipla e inesgotável, assinada pelo encenador/a.

A terceira «tentação» seria, digamos assim, a era do «despedaçamento», do esfacelamento sistemático e teórico da forma dramática no interior, pelo interior do espaço teatral. Por um lado, a forma dramática encontrava pela frente uma nova forma para o género dramático e para a cena teatral, a forma épica, como a concebera na Alemanha do início do século o encenador e director Erwin Piscator e na URSS, Meyerhold e os seus discípulos Tairov e Evreinov. É nesta senda que se coloca o dramaturgo encenador alemão Bertolt Brecht, que a França «descobre» somente em 1954, por altura do Festival Internacional de Paris. Nesse Festival, apresenta-se pela primeira vez o Berliner Assemble com a peça Mãe Coragem.

No meu entendimento, a FORMA épica, ainda que pondo em causa o mecanismo dramático, não será, porém, ainda, o fim do conceito de mimesis pois constitui, somente, uma maneira diferente de mostrar o real (coração da mimesis), destruindo sobretudo o ilusionismo das aparências exteriores.
O que Brecht realmente propõe, naqueles anos 50, com o «teatro épico», esquecido já o incómodo Meyerhold que Staline assassinara num campo de concentração e Piscator que inventara esta designação, é, numa perspectiva sociológica nova, o incitamento do espectador a descobrir a complexidade da realidade social, não por si mesmo, porém, mas conduzido pela mão de três condições maiores de realização/aplicação do «teatro épico»:

a) uma escrita narrativa não contínua, não causal (princípio, meio, fim) mas contígua (conjunto de cenas);
b) uma encenação que não provoque a ilusão e adesão emocional do espectador;
c) uma personagem que se vai construindo na acção; quer isto dizer que, se a forma dramática convencional reproduz o sistema sócio-político vigente, a forma épica acentuará os comportamentos e as opiniões produzidas na cena; ora, sendo a personagem, por natureza, «opaca», será através dos seus comportamentos e das suas opiniões que ela se revelará ao espectador, seu juiz.

Como corolário desta orientação, o teatro épico substitui o CONFLITO (intriga) pela CONTRADIÇÃO (dos comportamentos), o que se vai realizar, perante o espectador, através de uma sucessão de cenas no decurso das quais a fábula não progride de modo contínuo mas procede por arranques, por saltos, como na vida humana. O «estranhamento» (Verfremdungseffekt) é, nesta lógica não-contínua e não determinista, o motor da encenação e da representação épicas, num teatro eminentemente político e engajado, fundado, de acordo com os Modernistas e Vanguardistas de início do século, na sugestão promovida pela economia de meios (metonímia).

Este modelo de teatro, que se tem de bater, no terreno, com o Teatro do Absurdo (Martin Esslin, 1961) preconizado por dramaturgos como Ionesco, Adamov, Tardieu, em França, e, claro, pelo grande dramaturgo irlandês Samuel Beckett – também ele a residir em Paris --, tem mesmo assim um impacto duradouro no teatro europeu e americano que se vai desenvolver nas três décadas seguintes (60-70-80). Se em França, por exemplo, os modelos mais originais são os do Théâtre du Soleil de Arianne Mnouskine e o de Roger Planchon, e na Alemanha a corégrafa Pina Bausch, o fenómeno artístico dos anos 80, na sua proposta de uma Dança-Teatro reputada pós-brechtiana, em Portugal, sobretudo depois de 1974, serão as Companhias Cornucópia e O Bando as que melhor souberam actualizar o modelo do teatro épico, criando, cada uma segundo a sua lógica própria, um lugar específico para o texto de autor, para a reflexão política e para a síntese entre erudição e desejo de intervenção social.

A quarta «tentação» identificada por Roubine centra-se naquilo a que o autor chama «o grande sonho litúrgico» e a que eu prefiro chamar a entrada em cena de uma linha de teatro antropológico, fundada, também ela, no pensamento estruturalista (Lévy Strauss). Trata-se de um teatro entendido como cerimonial, que assume como «promotores» artistas que vão desde o Romântico Richard Wagner, aos Simbolistas Appia e Craig e inclui o promotor do «Teatro da Crueldade», Antonin Artaud. Este novo teatro-cerimónia, centrado na ideia de ritual, deseja-se, tendencialmente, irrepetível e não reprodutível. Nos anos 60, são defensores desta corrente, não por acaso, os grupos norte-americanos Living Theatre – que defende uma nostalgia de uma violência sacrificial e o pacifismo --, o Bread and Puppet – que promove a reunificação mística do mundo e o pacifismo – e o artista multi-média Bob Wilson, entendido, mais tarde, como o papa, o guru, do post-modernismo. Todos estes artistas e outros têm como horizonte da sua criação uma tomada de posição contra a guerra do Vietname.

A quinta tentação identificada por Jean Jacques Roubine é a da «exigência sacrificial» de actores e espectadores. Entendendo o teatro como uma experiência dos limites (para ACTORES e ESPECTADORES), este teatro deseja-se uma experiência iniciática de onde o espectador sairia purificado por meio de uma cura «cruel» (no sentido simbólico de Artaud). Para tal, era necessário promover uma situação de transe, partilhada, idealmente, pelo público graças a uma disponibilidade total e à concentração. É a fase das criações colectivas e a fase de moda das religiões orientais e de novas drogas associadas aos grandes acontecimentos colectivos, como Festivais e grandes manifestações sob a bandeira do Make Love Not War.

Mais uma vez, será o Living Theatre a comandar o movimento que tem Artaud como patrono. O encenador volve-se em condutor de ritual e o público passa a ser englobado nas acções ritualísticas propostas por esta forma de teatro. A cena deixa de ser totalmente separada do público e transforma-se numa espécie de altar onde se desenrola o ritual social.

Para além do Living americano, o outro nome maior que englobamos neste teatro de dimensão ritualística é o de de Jerzi Grotowski, um polaco nascido em 1933 (e que veio a falecer em 1999). É difícil sintetizar a acção e influência deste importante visionário e teorizador das artes performativas do século XX – ele que preferiu, num dado momento da sua investigação, falar de «performance» e abandonar a palavra «teatro» no seu trabalho -- cujo livro Para Um Teatro Pobre foi traduzido em Portugal logo após 1974. Nesta obra reúnem-se textos relativos somente à sua primeira fase de trabalho (1959-1969), ainda muito jovem, durante a qual encontrou, por meio de um intenso inquirir da natureza própria do teatro, o conceito de “teatro pobre” ou “teatro puro” o qual, através do “actor santo”, lutaria contra a bastardização da arte teatral.

Depois daquela primeira fase, durante a qual realizou trinta e cinco encenações sobre textos de autores polacos e sobre textos de grandes poetas, vanguardistas e dramaturgos universais como Ionesco, Tchekov, Sófocles ou Shakespeare, iniciou novo período de trabalho, entre 1969 e 1978, a que chamou “Teatro de Participação” ou “Parateatro”. Interessado agora na luta contra a imitação, contra a mimesis, e contra o afastamento entre o actor e o espectador, Grotowski abandona o “teatro” e investe numa “antropologia teatral” fundada na articulação com a antropologia cultural e com a psicologia.

Em 1979, organiza o seu primeiro grupo internacional e, até abandonar a Polónia, dedicar-se-á a uma pesquisa sobre rituais com vista a uma muito estruturalista investigação da existência de universais corporais. Era a fase do “Teatro das Origens” inspirado nas experiências multiculturais a que se dedicara anos antes, no decurso de viagens pela Ásia Central, a China e a Índia (1956 a 1970). Em 1983, Grotowski instala-se em Irvine, nos Estados Unidos, dedicando-se à tentativa de isolar “unidades mínimas” nos rituais antigos de diferentes culturas e à investigação dos traços sobreviventes desses rituais no movimento performativo, nas danças, nas canções, nos rituais e na estrutura das linguagens e nos ritmos dos seus performers. Foi a fase mais estimulante da sua investigação “científica”, a fase do “Teatro Objectivo”, a que se seguiria, a partir de 1986, já em Itália, em Pontedera (onde viria a falecer), um período de intensa actividade em torno daquilo que designou por “Arte como Veículo [Excipiente]”.

Mas, fazendo de uma realidade muito complexa uma apresentação simples, dir-vos-ei que, para Grotowski, o teatro era sobretudo uma experiência pessoal e vital que exigia, em consequência, intimismo, confidencialidade e um público muito restrito. O actor de Grotowski renuncia totalmente à PERSONGEM e DESNUDA-SE, interiormente, perante o auditório. Para isso, Grotowskia abandona a improvisação – que só poderia conduzir ao exibicionismo e histrionismo -- e defende um outro instrumento de trabalho para o actor: aquilo a que no teatro convencional francês se chama «le role» e que traduzimos em português, sem muita precisão, por «o papel». Trata-se de uma pauta de acções físicas e psíquicas, portanto, estruturalisticamente falando, de um «texto estruturado» passível de decifração pelo espectador. O actor escolheria o seu «papel» de acordo com as ressonâncias que este tem com o seu psiquismo, tendo como guia o encenador que é, sobretudo, um primeiro espectador e o criador da atmosfera de afecto e segurança necessários para um trabalho de actor de alto risco e perigo emocional. O espectador deve ser/estar próximo e conectado com o actor e estar INTEGRADO no dispositivo cénico. O «cenário» não pode, portanto, existir, sendo o espaço cénico um lugar de encontro do ritual.

A última «tentação» proposta por Roubine diz respeito a um caminho que o cenógrafo alemão Georg Fuchs designou, no princípio do século XX, «a teatralização do teatro» (1910). O predomino deste «teatro teatral», eminentemente cenográfico, é o da máquina-de cena, inspirada no cenário construtivista da Revolução Soviética, cenário-máquina-de-representar onde pontifica, com virtuosismo e risco, o actor-máquina-viva, o actor-cenário, o actor-operário criado pelo Meyerhold bolchevique. Nesta sexta e última «tentação» inscrevem-se as linguagens teatrais dos anos 60-70 inspiradas em tradições antigas recuperadas (teatros do Oriente, commedia dell’arte, etc.), nas quais textos, jogo cénico e imagem ocupam o lugar central. Muitos são os criadores a inscrever-e nesta linha. Selecciono Arianne Mnouskine e o Théâtre du Soleil, La Fura dels Baus catalã e, numa perspectiva altamente estilizada, o Bob Wilson das grandes criações plásticas e feéricas.

Os anos 80 do século XX encerrar-se-iam, para Roubine, numa apoteose de cruzamentos e mestiçagens (ue eu chamo linguagens cénicas pluri e intra-culturais). Três FORMAS seriam dominantes:

a) a cena povoada de máquinas escultóricas;
b) o palco nu onde pontifica o actor virtuoso, «portador» de textos cultos trabalhados, porém, sem restrições ou pudores dogmáticos (Arianne M., Brook, etc.);
c) a cena do actor multiforme, livre, que se pode dar ao luxo de ter prazer em (a)presentar textos da memória colectiva  e da memória pessoal (tentação do «universal»). O polaco Kantor é um dos criadores que convoca, num teatro marcado por pesado silêncio carregado de significação ideológica, memórias pessoais elevadas a metáfora do universal numa linguagem identificadora a que chamou «Teatro da Morte».

II
Reavaliação da Mimesis

Observando, nesta proposta de leitura global do século XX, os aspectos que parecem mais relevantes para a compreensão das idiossincrasias da cena performativa contemporânea, destacaremos, desde já, como o mais relevante, a rejeição do Realismo por parte das gerações herdeiras dos Simbolistas – como é o caso dos Surrealistas que levarão, no decurso de grande parte da primeira metade do século XX, ainda mais longe, a ideia de teatro como espiritual espaço da fantasia – como Kandinski com o seu conceito mais ou menos inspirado em Wagner que é o de “composição de cena” ou como Appolinaire em cuja peça, de 1917, As Maminhas de Tirésias, de 1917, figura a invenção do termo «surrealismo».

E não deixa de ser curioso que perante os dois importantes suportes tecnológicos e artísticos, como são a fotografia e o cinema, suportes estes que pareciam ser os garantes últimos do realismo mas que se volverão, progressivamente ao longo do século XX, em artes não subsidiárias da representação mimética do real, que sejam estas mesmas artes que vão suscitar uma reavaliação da mimesis ao permitir ao público compreender, como afirmou Picasso, que «Todos sabemos que arte não é a verdade. A arte é uma mentira que nos faz compreender a verdade.» (cit. em Habert, p. ?).

Ao longo de todo o século XX, as experiências artísticas próximas do teatro de arte – teatro de dimensão artística e social que se coloca em oposição a um teatro popular e de entretenimento – permanentemente afirmam o teatro como um lugar onde não se procura o reconhecimento da realidade mas se persegue a consciencialização do espectador solicitado a ver o teatro ora como lugar de ficção, de convenção, ora como lugar de partilha, no interior do qual esse mesmo espectador é um participante consciente cada vez mais envolvido na responsabilidade de criação pelo menos do sentido da obra (teoria da recepção).

III
Os Métodos de Trabalho

O “novo teatro” dos anos 70 e 80 do século XX exige do actor uma formação cada vez mais especializada em virtude do constante aparecimento de novas linguagens, novas atitudes e novos modos de fazer. Peter Brook foi um dos cultores de um processo de formação dos actores e dos públicos por meio de workshop. Este método de trabalho em workshop tem por objectivo a exploração sistematizada de modos diferenciados de chegar à linguagem mais apta a transmitir, esteticamente, um conceito de teatro, um modo de estar na criação em conjunto e um modo mais eficaz de entrar no universo estético de um encenador ou de um grupo. Esta metodologia de trabalho, associada a “seminários de escrita” ou a processos de criação em work-in-progress, têm facilitado a criação do próprio texto e da sua encenação num registo que, não evita, infelizmente muitos equívocos e desonestidade.

Alguns dos grupos de vanguarda europeia e americana que mais utilizaram o método workshop foram, a partir da década de 60, os já referidos Living Theater, o Teatro Laboratório de Grotowski, o Théâtre du Soleil de Ariane Mnouchkine, Performance Group, do antropólogo americano Richard Schechner, o Theater of the Ridiculous, e, entre muitos outros exemplos, o San Francisco Mime Troupe. O método de «Jogos Teatrais» de Viola Spolin (1906-1994) e o «Teatro do Oprimido» de Augusto Boal (1931-) são outros territórios de aplicação da técnica workshop com vista à democratização do acto teatral mais social destinado a qualquer indivíduo e a qualquer idade.

Este método de trabalho, geralmente promotor de formas de teatro de grande teatralidade, conheceu desenvolvimento em Portugal somente a partir dos anos 90. Um dos casos mais expressivos tem sido o da Companhia O Bando, de João Brites, que a exemplo do que fez Ryszard Cieslak, o célebre actor de Grotowski, com vários grupos de actores, procurando um “teatro das raízes”, promove “retiros”, “estágios”, com os actores a fim de encontrar vias muito próprias de construção dos seus espectáculos de configuração imagética, sócio-antropológica e não-psicológica.

Estamos, uma vez mais, perante uma linha de “desnaturalização”, de abolição da personagem e da psicologia e de recentramento no conceito, amplo, de «acção». O seu processo de desenvolvimento encontrou-se com o da performance (sobretudo da que foi oriunda das artes plásticas), linguagem dominante na cena alternativa contemporânea.

IV
O Corpo e o Teatro: Um «Realismo da Presença»

Em 2005, no âmbito do 59º Festival d’Avignon, subordinado ao tema do corpo, estalou uma grande polémica, envolvendo público, que apupava ou aplaudia, filósofos, como Régis Debray, críticos, antropólogos, sociólogos e artistas, tudo em torno da selecção de espectáculos proposta pelo coreógrafo belga Jan Fabre, artista associado, nesse ano, à direcção do Festival, espectáculos esses que foram entendidos pelos seus detractores como insatisfatórios, excessivamente híbridos, incompletos, privilegiando a dança e o vídeo em lugar do teatro.

Esta edição do histórico Festival, fundado por Jean Vilar há seis décadas, teria, afirmavam alguns, demonstrado propensão para a violência gratuita e privilegiado a imagem em detrimento do texto e os efeitos de moda à custa de uma verdadeira reflexão. Alguns dos espectadores desagradados chegaram inclusivamente a afirmar que o desprezo dado ao teatro tinha chegado a um ponto de ruptura que afastava o público do Festival. A polémica foi de tal ordem que, para além de centenas de artigos e intervenções várias, surgiu, na editora L’Entretemps, um livro intitulado Le Cas Avignon 2005 - Regards Critiques, com coordenação do crítico Georges Banu e de Bruno Tackels. O livro afirma destinar-se a ajudar os espectadores a decifrar os espectáculos e ajudar à interpretação da atitude, por vezes dolorosa, de muitos dos espectadores habituais do Festival. A obra propõe-se igualmente reflectir com o leitor sobre as relações entre arte e política e entre o indivíduo e o mundo, relações afirmadas como estando na base do próprio teatro ocidental.

Ora o que estaria em questão naquela polémica edição do Avignon 2005 que dividiu o público entre «público convencional» e «público activo», segundo foram afirmando alguns meios de comunicação, terá sido, eventualmente, o desencontro entre a arte contemporânea e a parte do público que se sentiu afastado, desrespeitado e até insultado por ela. Alguns artistas, porém, em solidariedade com a programação e os espectáculos de Jan Fabre, lembraram que é sempre esta a reacção de alguns e sobretudo da imprensa reaccionária que também no Segundo pós-Guerra fez campanha contra o teatro do encenador Jean Vilar, o próprio fundador do Festival de Avignon. Desta vez, porém, e ao contrário dos anos iniciais do Festival, os artistas puseram a tónica das suas obras numa espécie de procura, intimista, do Humano no passado arquetípico, essencial. Foi isso que fizera Jan Fabre – mostrando a urgência de regressar a uma linguagem corporal com vista a integrá-la, ou à sua metáfora (líquidos), numa visão espiritual do Humano – , o que fez Roméo Castelluci que mergulhou no íntimo do corpo para procurar compreender o mundo, enquanto Marina Abramovic prosseguiu a sua pesquisa feminista, de trinta anos, sobre a intimidade dos corpos, enquanto Jacques Delcuvellerie apresentou um espectáculo de vozes que não tinham o suporte de corpos.

Estas propostas de 2005 mostravam, assim, a terrível conclusão de uma espécie de derrota da arte face ao presente histórico, o que deixou, como se percebeu, muito do público inquieto, desconfortável e sem qualquer sentimento de esperança no futuro. Como não deixou de ser amplamente debatido e assinalado, esta querela seria sobretudo ideológica, semelhante à querela que gerou, no século XVIII, a imposição do Belo como medida, numa atitude de separação da Vida e da Arte, contrária à posição da arte contemporânea que, outra vez, as confunde. Trata-se, no fundo, de uma discussão sobre qual o método a adoptar pela arte para falar da sociedade contemporânea. Enfim, afirmaram alguns cpmentadores, o Festival de Avignon assumira, finalmente, e ao fim de muitas décadas de marasmo, um ponto de vista geracional e enfrentava a contemporaneidade do teatro, deixando cair os artistas e públicos institucionalizados em torno do teatro de arte e tomando partido por uma matéria de teatro arcaizante, liminal, que tem como centro o corpo e a palavra destituída de contexto linear.

E qual será, então, o papel do actor neste «teatro» cuja linguagem recusa a língua articulada? Para Romeo Castelluci, é na estrutura aberta da tragédia que pode residir a matéria passível de pôr novamente o público em tensão e colocá-lo em direcção ao desconhecido. O actor teria de colocar-se como que de fora da Humanidade (da História?) para melhor mostrar os seus pontos fracos. Para Jan Fabre, os actores-bailarinos mostram um combate contra o arcaísmo restaurado na cena que o coreógrafo constrói sob a tutela da tragédia. Warlikowski, por seu turno, prefere colocar o público em relação com o arcaíco, instaurando um simulacro de naturalidade na cena de repente destruída pela intervenção de um actor (“Quand on fait l’amour, au dessus de nous volent des âmes qui n’ont pas encore pris forme, des enfants pas encore nés de nous”). A sua resposta quanto ao papel a desempenhar pelo actor é que o teatro moderno interroga principalmente a relação entre encenador e actor. Os seus actores são deixados evoluir livremente, como se estivessem mais próximos da vida do que do próprio encenador. Também para R. Castelluci, o teatro moderno é um lugar de partilha entre actores e encenadores sem relação de poder ou saber entre eles. Os actores de J. Fabre devem guiar o coreógrafo em direcção ao desconhecido, numa deriva consentida.

Todos estes artistas da cena performativa contemporânea concordam que o arcaísmo conduz o público para um ensimesmamento. O teatro contemporâneo recusa, assim, uma vez mais, as regras herdadas do teatro convencional a fim de criar com o indivíduo uma espécie de ligação secreta que visa sobretudo perturbá-lo.

Voltamos, pois, neste início de século XXl, a um sentido da subjectividade que representa para cada um de nós um sentido conduzido pela nossa subjectividade e memória pessoal. De uma forma desviada, o que é realmente interessante, é que são os herdeiros do Simbolismo e do Surrealismo, os criadores «universalistas» de um teatro atravessado pelo utopia antropológica estruturalista, com Grotowski à cabeça, que estão a ganhar a aposta neste início do século XXI.

Lisboa-Viana, 27-29 de Novembro de 2008
Posto em linha a 9.12.2008
Eugénia Vasques nasceu em Coimbra em 1948. Viveu e estudou em Paris (Universidade de Paris VIII) entre 1970 e 1975. Concluiu o curso de Formação de Actores/Encenadores no Conservatório Nacional de Lisboa. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Português-Francês) pela Universidade de Lisboa, leccionou em SãoTomé e Princípe e obteve o Doutoramento em Hispanic Language and Literature na Universidade da Califórnia, Santa Barbara, EUA, com equivalência a Estudos Portugueses pela Universidade Nova. É professora-coordenadora na Escola Superior de Teatro e Cinema, onde lecciona Teorias da Arte Teatral, Análise de Texto e seminários no âmbito da crítica e dramaturgia. Crítica de Teatro, no semanário Expresso, desde 1985, tem escrito centenas de artigos e ensaios, maioritariamente sobre artes performativas contemporâneas e sobre mulheres. Traduziu teatro e, entre outros estudos, publicou os volumes Jorge de Sena: Uma Ideia de Teatro 1938-71, Considerações em Torno do Teatro em Portugal nos Anos 90: Portugal/Brasil/África, Mulheres Que Escreveram Teatro no Século XX em Portugal.