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******************************Eugénia Vasques
Díptico Familiar
C -- Tem calma, pá! Tu és louco? Olha que ele é a Fada do Bom-Gosto! Não sabes que ele pode-nos mandar matar alegando extrema ausência de qualidade? Não sabes?
(Os Vendilhões do Templo, 2007, p. 44; sublinhados meus)
A. Um/a crítico/a ou comentador/a de artes performativas é, em virtude do corpo-a-corpo que a actividade pressupõe, um ser multiplamente condicionado. Basta lembrar as bengaladas do Camilo (aliás, meu trisavô, por via bastarda) e outras vergastadas mais recentes, para, no que me diz respeito, estar sempre de pé atrás quando se trata de falar de artistas ou de criadores que nos podem saltar à frente da porta de um teatro! Mas, confesso, quando a nossa tarefa crítica é colocada frente ao espelho deformador do teatro e ainda mais por uma personagem hermafrodita – a Fada do Bom Gosto (FDBG) --, eu, que até me interesso pelo estudo dos rastos teatrais das sexualidades admitidas e alternativas, fico, novamente, em estado de incapacidade plumitiva.

Fazendo, porém, das tripas coração, que é uma atitude que podemos constatar ser grada ao dramaturgo (1) que aqui nos convoca, saio do armário da crítica e arrojo com todas as consequências.

B. O díptico Os de Sempre, segundo volume de teatro publicado por João Negreiros, é constituído por dois objectos de escrita teatral (“Os de Sempre” e “O Segundo do Fim”) com os quais me relacionei de forma muito diferente pois, como concluiria Lapalisse, os objectos são muito diferentes entre si. Esta relação diferenciada, ainda que não antagónica, já me sucedera ao ler o primeiro díptico teatral de João Negreiros, Os Vendilhões do Templo/Silêncio, publicado, em 2007, igualmente pela Edições TUM. E, observando bem o que me agrada mais nuns textos do que nos seus pares, cheguei à conclusão que aquilo que mais me prende radica na capacidade revelada por esta escrita torrencial em envolver, arrebatar, a curiosidade do leitor por meio de um fluxo de surpresa que, a par da ironia ou do humor e de uma criatividade, que inclui, fortemente, o imaginário infantil contemporâneo, caracteriza, por exemplo, “Os de Sempre”, a minha peça favorita.

C. Esta peça constitui, desde logo, um bom exercício para quem, tecnicamente, tenha a necessidade de lhe atribuir um género ou um público-alvo. Peça com “crianças”, não se destina, se houver bom senso, a uma camada infantil. Porém, a enorme metáfora que se esconde dentro dos “rebuçados” embrulhados em pratinhas, por sua vez desembrulhados por um menino-sábio e eloquente num “armário” que está aqui em lugar das florestas dos contos de fadas de todos os tempos, conhecidos em livros, em imagens ou em narrativas fílmicas complicadas pela ficção científica, tem como destinatários os pais e os pais dos pais e também os adolescentes, que se encontram, em todas as gerações, no centro nevrálgico de todo o sofrimento causado pelas famílias.

D. Também “O Segundo do Fim”, a segunda peça, envolve, na sua ficcionação desenfreada, a estrutura familiar – o pai, a mãe, a filha (“a filha que se esquece, a filha em que se bate, a filha que se viola, a filha boa demais para matar os pais”) que é um híbrido entre o Espírito Santo e o Grande Irmão detentor absolutista do Poder – em IX «cenas» convocando quer os bidões beckettianos quer a maternidade assassinada declinada pelas muitas vagas de epígonos surrealistas num quadro de desertificação da natureza tão cara aos absurdistas em geral e aos pós-modernos germânicos de cepa pós-marxista.

E. A primeira peça deste volume, de estruturação mais ”épica”, graças às suas XII «cenas», ostenta, num imaginário ancorado em referências helénicas e crísticas, um Salvador-criança, uma Helena que, como a de Tróia, não traz felicidade, uma Avó (que terá certamente sido hippie nos seus tempos), um Sérgio-menino que será abduzido e que, na sua revolta precoce, prefigura Eduardo, o pai descerebrado (quem sabe pelas drogas pesadas) e refém da mãe que, também ele, será raptado pelo Anjo.

F. No teatro deste fluente jovem autor identificamos técnicas e referências que denunciam algumas leituras dominantes e a sua familiaridade com o palco do TUM. Ainda que um tanto prisioneiro do “absurdamente previsível” (palavras de uma personagem), João Negreiros gosta de aforismos, de trabalhar o lugar-comum (no ar das notícias, da publicidade, dos filmes, da b.d., etc.), de jogar na auto citação, no metadiscurso e na naturalização lexical (chizato, palete) (2), na rapidez dos diálogos fáticos, divertindo-se a testar os limites da eloquência das suas personagens mais marcantes e a criar esquemas dramatúrgicos que ajudam a misturar cultura clássica com a cultura pop nossa quotidiana.

G. Chegada ao ponto G, permito-me, apesar do risco, afirmar que este é um livro de peças à procura de uma estrutura, ou seja, a fala própria do [drama]turgo João Negreiros. Prevejo que daqui a muitas leituras que descentrem o autor das suas referências, daqui a muitas encenações fora do âmbito (protector) académico do TUM e daqui a algum despaísamento geográfico, João Negreiros, como o meu trisavô (por via bastarda), aparecer-me-á ao caminho munido de uma bengala. Em flor, decerto, como a de S. José, o pai putativo de outro menino Salvador.

Lisboa, 4 de Setembro de 2008.

(1) Será que ainda se pode falar em dramaturgos nos casos destes escritores para teatro? Um bom tema de debate… no teatro universitário!

(2) Esquecida ficou a naturalização de headphone. Ou será voluntário?

Eugénia Vasques nasceu em Coimbra em 1948. Viveu e estudou em Paris (Universidade de Paris VIII) entre 1970 e 1975. Concluiu o curso de Formação de Actores/Encenadores no Conservatório Nacional de Lisboa. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Português-Francês) pela Universidade de Lisboa, leccionou em SãoTomé e Princípe e obteve o Doutoramento em Hispanic Language and Literature na Universidade da Califórnia, Santa Barbara, EUA, com equivalência a Estudos Portugueses pela Universidade Nova. É professora-coordenadora na Escola Superior de Teatro e Cinema, onde lecciona Teorias da Arte Teatral, Análise de Texto e seminários no âmbito da crítica e dramaturgia. Crítica de Teatro, no semanário Expresso, desde 1985, tem escrito centenas de artigos e ensaios, maioritariamente sobre artes performativas contemporâneas e sobre mulheres. Traduziu teatro e, entre outros estudos, publicou os volumes Jorge de Sena: Uma Ideia de Teatro 1938-71, Considerações em Torno do Teatro em Portugal nos Anos 90: Portugal/Brasil/África, Mulheres Que Escreveram Teatro no Século XX em Portugal.