(Recostado num sofá, HÉLIO observa com regozijo, no televisor, o seu programa Quem é Quem, cujo convidado é o " novo " OLÍMPIO AREIA. Se outros écrãs houver no cenário, visíveis para a assistência, mostrarão as imagens dessa emissão, desprovidas de som.
NÁRIA entra em cena com uma expressão rígida, de tristeza. HÉLIO não olha para ela e, por isso, fala com efusividade, absorvido pelo que vê no écrã. )
HÉLIO: O show não podia ser melhor. O nosso Franz na pele do clone encarna o papel vários furos acima do original. Olímpio era figura grata dos liberasianos, mas agora com sangue novo ficou imbatível. Se eles sonhassem o que aconteceu... E tudo graças a ti, Nária, que devolveste à vida um presidente morto, sem deixar efeitos secundários. (Olhando finalmente paraNÁRIA.) Mas o que é que tu tens? Estás tão calada! Sentes-te mal? (Ergue-se do sofá e acarinha-a.) Desculpa... Eu esqueço-me em como tudo isto te afecta. O que tu fizeste foi dar corpo a uma fraude, enquanto o cadáver de Olímpio deu entrada no crematório funerário sob falsa identidade.
NÁRIA: (Amargurada.) Acabou de chegar um cosmofax enviado por uma prima tua que vive na Terra, em Portugal.
HÉLIO: (Transtornado.) O meu pai! O que foi que aconteceu?
NÁRIA: Ele encontrava-se em Lisboa pr'ássistir a um festival de teatro onde iam homenageá-lo. Sofreu um acidente num transporte urbano. O motorista automático desligou-se e houve um embate com outra viatura. O teu pai deu uma queda que lhe danificou o coração artificial. Teve morte imediata.
HÉLIO: (Desconsolado.) Não foi preciso nenhum asteróide para nos separar dele. (HÉLIOesconde o rosto com as mãos e enovela-se no sofá, contraído de dor. NÁRIAacaricia-lhe a cabeça, tentando confortá-lo.
Num espaço distinto daquele onde se encontram NÁRIA e HÉLIO , vê-se uma marquesa de morgue onde repousa um manequim que é suposto ser a réplica do corpo do VELHO PAI . Um lençol cobre-o à excepção dos pés nus. De pé, a seu lado, está o fantasma do VELHO PAI com o traje negro que já lhe conhecemos, contemplando o seu corpo morto. Aparece a MÃE-SOMBRA e dirige-se-lhe. )
MÃE-SOMBRA: Roberto, essa casa arruinada já não é habitável. Tens de devolvê-la aos serviços de demolição da natureza.
VELHO PAI: Foi minha esta embalagem gasta, com alguns amanhos para se ir aguentando. Custa-me deixá-la.
MÃE-SOMBRA: As separações forçadas são assim. Mas irás acostumar-te.
VELHO PAI: És mesmo tu, Ydaura? Não estarei com alucinações por falta de oxigénio?
MÃE-SOMBRA: Estás a ver-me com olhos que já não são sintéticos.
VELHO PAI: Continuas bela, nessa túnica magnífica!
MÃE-SOMBRA: Escolhi este figurino. Mesmo aos fantasmas, deve exigir-se elegância.
VELHO PAI: E as rugas do rosto, também as desenhaste?
MÃE-SOMBRA: Sim, Roberto, quero estar em sintonia contigo.
VELHO PAI: Sempre a mesma Ydaura, mas... há uma serenidade nova em ti.
MÃE-SOMBRA: (Brusca.) Mudei eu, ambos mudámos. Não és Orfeu para me salvares da morte. Também estás morto e por isso aqui nos vemos.
VELHO PAI: Já vieste para cá há tanto tempo... O que é que me espera agora?
MÃE-SOMBRA: Liberta-te daquilo que foste! [Temos de aprender a ir sendo e a nada sentir como nosso, curiosos e estrangeiros a tudo, capazes de lembrar e de esquecer e de passar velozes como a água dos ribeiros].
VELHO PAI: (Entristecido.) Isso é uma anestesia.
MÃE-SOMBRA: Sim, Roberto. E o meu prazo de mulher-fantasma está a esgotar-se.
VELHO PAI: Vou perder-te pela segunda vez.
MÃE-SOMBRA: Treinas-te para quando te perderes a ti mesmo.
VELHO PAI: Não nos voltamos a ver?
MÃE-SOMBRA: Talvez, não sei... Seremos dois estranhos na multidão, emocionados pelo encontro dos olhares. (Surge em cena de novo a barca de Caronte comO CANTORremando a bordo.)
VELHO PAI: Ydaura, gostava de levar para o último barco uma lembrança do Hélio e da Nária.
MÃE-SOMBRA: Para isso não precisas de mim. Eles vão evocar-te e voltarás ao passado próximo. (Como mestra de cerimónias, ela dirige a cena, virando-se paraNÁRIAeHÉLIO, ambos de novo sob as luzes nas posições que ocupavam.)
NÁRIA: Não te entregues à dor. O teu pai havia de gostar que o recordássemos vivo, como no último jantar em Évora, na Taberna dos Mercadores.
MÃE-SOMBRA: (Fala para o filho como se este a ouvisse.) Vamos Hélio, esse serão repete-se de novo. A vida do teatro é mais intensa que o teatro da vida. (Pausa. Mesas quadrangulares e cadeiras de restaurante, luzes indirectas, entre outros adereços indicativos, transformam o cenário num breve simulacro da Taberna dos Mercadores. O VELHO PAI e HÉLIO sentam-se frente a frente numa das mesas, perfilados para o público. NÁRIA sentar-se-á na mesma mesa, entre ambos, posicionada frontalmente face à assistência. Com gestos directivos de braços, a MÃE-SOMBRA simula presidir às operações.) Faremos recuar os números do relógio. Hélio não sofre. O Roberto regressa ao vosso palco. Deixámos o espaço e pisamos o solo ancestral. Os cantores incitam-nos à dança e a noite termina com música. (A transição desta cena para o epílogo será feita sem hiato assinalável.)
Fim do Terceiro Acto |