(A acção regressa ao laboratório. HÉLIOeNÁRIAterminam o visionamento da mensagem de OLÍMPIO. HÉLIOmostra-se inquieto e desconfiante, por contraste com a segurança aparente da expressão de NÁRIA.)
HÉLIO: Eu não estou a perceber.
NÁRIA: Não percebes o quê?
HÉLIO: (Amargo.) Pensei que confiasses em mim. Mas o pormenor de vivermos juntos e dormirmos no mesmo colchão não é suficiente para que tu me reveles os teus segredos de estado.
NÁRIA: Não vejas as coisas de uma forma tão pessoal...
HÉLIO: Não há outra maneira de vê-las. Os factos são estes: recebeste aqui o presidente no laboratório, para lhe copiares os neurónios na tua máquina. A data desse encontro foi tão secreta que nem o jornalista soube.
NÁRIA: (Hesita, fala sem convicção.) Não é bem assim. Mas... (Pausa.)
HÉLIO: Mas o quê?
NÁRIA: Bom, numa coisa talvez estejas certo. Eu tive receio que a tua paixão profissional se pudesse sobrepor ao segredo que eu te confiasse.
HÉLIO: (Desanimado) É realmente essa a imagem que fazes de mim: uma espécie de alcoviteiro de massas?!
NÁRIA: Não quero discutir contigo, Hélio, eu sei que não foi uma decisão leal, mas peço-te que compreendas a minha situação. Achei tudo tão sinistro... (Caminha em círculos ao ritmo das frases.) Olímpio acossado por todos os que o rodeavam... O seu staff de sempre tornado em seu carrasco... Entretanto, o teu programa de estreia na TvPhobos contou logo com a presença de Lucy e do seu harém... Não sei, tudo me passou pela cabeça... O caso pareceu-me tão grave que ocultei o sucedido a todos os que trabalham comigo. Olímpio veio aqui ao laboratório fora das horas de serviço e, quanto a ti, palavra, estive prestes a contar-te várias vezes...
HÉLIO: (Acusador.) Mas nunca o fizeste! (NÁRIA mantém-se silenciosa e comprometida.) E há outra coisa que não consigo aceitar. Para que o presidente aqui viesse em segredo, foram necessários contactos prévios de parte a parte, no sentido de garantir o sigilo e iludir os seguranças pagos pela família Pet, que o seguem de perto como cães programados. Tu escondeste tudo isso de mim...
NÁRIA: Hélio. ouve-me! (Ela interpela-o sem que ele pareça querer dar-lhe ouvidos.) Há um facto que tu desconheces ...
HÉLIO: (Sarcástico.) Mais mistérios por desvendar.
NÁRIA: Poucas pessoas o sabem e a maioria delas já morreu. Mas confessá-lo a ti só me fará bem... e compreenderás a minha dificuldade em falar deste assunto. (HÉLIOnão consegue disfarçar a curiosidade.)
HÉLIO: Qual é agora o ficheiro secreto?
NÁRIA: Juntos visitámos ainda a minha mãe, lembras-te bem, naquela clínica de Zurique, a cidade da minha infância, pouco tempo antes de ela nos deixar para sempre. Num momento de lucidez, pediu-te que saísses, para ficar a sós comigo. Como era possível falar ainda? Tinha o cérebro devastado pelo vírus neural. Ela implorou-me uma vez mais para guardar um segredo que escondo desde criança. Sempre fui habituada a silêncios e segredos. Tem muito a ver com as raízes orientais da minha mãe. Acostumei-me a nada perguntar sobre o dinheiro que recebíamos periodicamente na conta doméstica. E procurei ignorar a frieza do marido da minha mãe para comigo...
HÉLIO: Sempre o trataste por pai. Por que lhe chamas agora o marido da tua mãe?
NÁRIA: Hélio, o meu pai biológico chama-se Olímpio Areia.
HÉLIO: (Pausa de admiração.) Mas porquê tanto secretismo sobre a tua paternidade?
NÁRIA: (Estilo narrativo.) Olímpio já era então um homem público. E se o poder oferece domínio sobre os outros, também chama sobre si um sem número de ameaças. Kora Tai Shin, assim se chamava a minha mãe, teve um caso amoroso com Olímpio, quando este exercia um cargo político em Luna Nova. Já ele estava casado com Salira Fétova, que viria a ser mais tarde a primeira dama de LiberAres. Minha mãe da Ásia era nova e ingénua; recorreu à mais antiga das estratégias femininas. Julgava que uma gravidez bastaria para dissolver o casamento sem herdeiros de Olímpio e Salira. Enganou-se, pois aquilo que mantinha unido o casal era um consórcio económico. Kora Tai Shin, a minha jovem mãe, estava vaidosa por ser fértil, num tempo em que a poluição rádioquímica tornara estéril grande parte da população terrestre. Salira Fétova era uma mulher atingida pela calamidade e chegou-lhe aos ouvidos que a amante do marido esperava um filho. Salira Fétova era uma figura sinistra que estaria por detrás do tráfico de embriões roubados, nas colónias espaciais de Luna Nova e Blue Moon. Uma rede criminosa que semeava o terror. Os médicos malditos deslocavam-se em ambulâncias... entravam nos habitáculos a qualquer hora do dia... anestesiavam a vítima, uma mulher grávida de poucos meses... extraíam-lhe o embrião e vendiam-no depois a preços exorbitantes, para o fabrico clandestino da única droga capaz de contrariar o envelhecimento do cérebro: o forever young. Este comércio monstruoso, que alimentava as clínicas de cosmética, só terminou, como sabes, com a legalização do forever young, que passou a ser produzido por clonagem. Nunca ficou provado em tribunal se era ou não Salira a cabecilha da legião de malfeitores. O certo é que a minha mãe grávida foi alvo de ameaças telefónicas. Ela andava em estado de choque. E Olímpio ajudou Kora Tai a sair de Luna Nova, em regresso à Terra, sob falsa identidade. Quando eu nasci, ele arranjou maneira de forjar os meus registos genéticos, dando-me como filha de um homem fictício. Uma vez instaladas em Zurique, nunca Olímpio falhou com a semanada luxuosa que permitiu à minha mãe criar-me sem problemas materiais, com o bastante até para sustentar um marido, doméstico de profissão, a quem eu sempre chamei pai. (Pausa.) É esta a minha história.
HÉLIO: E que história! Com matéria de sobra para uma longa metragem. És um poço de surpresas, Nária! Mas essas ameaças podem ter sido um estratagema de Olímpio. [Com essa bruxa por esposa, o exílio das duas no globo terrestre deve tê-lo feito suspirar de alívio.]
[NÁRIA: Nunca o pude saber. Olímpio foi sempre para mim um pai abstracto, mediático, que só conheci ao vivo aqui em LiberAres. Pelo menos em termos financeiros, nunca me esqueceu, e repara que até nesta mensagem ele me protege; nunca me trata por filha.
HÉLIO: Estou a pensar uma coisa: se o casamento de Olímpio e Salira era um contrato negocial, é bem provável que o teu pai partilhe com ela as culpas nessa rede de ladrões de fetos.
NÁRIA: (Perturbada.) Deves estar certo, Hélio, embora me custe admiti-lo. Já me bastou ser filha incógnita. Não queria desfazer o pouco de bom que associo ao meu pai.]
HÉLIO: Quem mais sabe disto?
NÁRIA: Ninguém, julgo eu, porque Olímpio é capaz de estar morto.
HÉLIO: E agora, o que vamos fazer?
NÁRIA: Esperar por visitas que não tardam. Se o meu pai tiver morrido depois da gravação, os serviços de vigia de Ange Roi depressa descobrem o destinatário. Temos de nos preparar para tudo. Vou accionar o sistema de segurança do edifício. Ele será o nosso bastião de defesa, no caso de Lucy e os seus paus mandados decidirem pôr-nos fora de jogo.
HÉLIO: Não te esqueças que temos a gravação. Se vierem com vontade de fazer-nos guerra, ameaçamos divulgá-la pela TvPhobos.
NÁRIA: (Céptica.) Não te entusiasmes. Não é assim tão simples. A família Pet é proprietária de um império mediático. Basta a palavra dum deles para que tu fiques sem permissão de entrar nos estúdios. (HÉLIO mostra-se intimidado com as palavras de NÁRIA. )
|