MÃE-SOMBRA: (Vestida novamente com a túnica do início.) Afinal apareço antes do previsto. Já não sabia o que fazer fechada no camarim. A gravidez desta senhora perturba-me. Como irá ser o futuro das crianças programadas? A sua perfeição fará delas o quê? Seres superiores ou monstros indiferentes? A natureza é muito tenaz mas imperfeita. Nós bem tentamos remendá-la e corrigi-la, no mesmo gesto com que a chacinamos. Não sei se estamos preparados para criar gente perfeita. Há-de haver nela um mal maior que vingará sobre tudo o resto. Os nossos filhos semideuses serão nossos carrascos. Sem doenças, com a vida eterna nos seus genes destilados, a terrível juventude desses seres gritará em vozes de metal cristalino: (Ouve-se, retumbante, uma voz gravada.)
Voz off: Morreu o homo sapiens. Morte ao humano primitivo. Nasceu o homo divinus. Todos os espécimes da estirpe ancestral defeituosa deverão ser exterminados, para que a evolução não retroceda. -
MÃE-SOMBRA: Não sei. Talvez por ser fantasma, só consiga ver melhor coisas sombrias. [Mas é neurótico o refúgio no passado. Quem é que de entre vós gostaria de ter vivido antes da invenção da penicilina? Ou antes de ser descoberta uma vacina para a sida, uma cura para o cancro, que é o tempo histórico do qual vocês vieram? Que bom será quando esta frase já não tiver actualidade para ser dita no palco... ](Numa semi-obscuridade, trava-se o diálogo entre LUCY PETe MÃE-SOMBRA.)
LUCY PET: Não pude deixar de ouvi-la.
MÃE-SOMBRA: (Desagradada.) Não, vá-se embora... Não quero falar consigo. As nossas personagens não se cruzam neste enredo.
LUCY PET: No teatro todos os encontros são possíveis.
MÃE-SOMBRA: Não simpatizo consigo. Nada temos em comum.
LUCY PET: Espero um filho. Vou ser mãe tal como Ydaura o foi em vida.
MÃE-SOMBRA: Isso é a fatalidade biológica das fêmeas. A gestação não suaviza um mau carácter.
LUCY PET: Fala então por experiência própria?
MÃE-SOMBRA: Não me atinge o seu sarcasmo. Sou uma sombra do limbo. Estou imune às guerras da linguagem.
LUCY PET: Eu venho em missão de paz. Queria perceber a razão dos seus medos acerca das crianças que vão nascer como esta. (Acaricia o ventre.) A Ydaura foi uma artista, uma criadora do que não existe. E os artistas pressentem o futuro. Repare esta maravilha de nos estarmos a libertar da lotaria da natureza, ao encomendarmos por completo os nossos filhos. Em todos estes séculos estivemos sujeitas aos caprichos do acaso natural, amedrontadas com o espectro dos defeitos congénitos.
MÃE-SOMBRA: É preciso aceitar a diferença.
LUCY PET: Palavras bonitas, mas amargas.
MÃE-SOMBRA: Que quer que lhe diga? Eu sei coisas que a Lucy desconhece.
LUCY PET: Acredito. Espero que no outro mundo se possa aprender mais do que neste. Esclareça-me então! Estou às escuras!
MÃE-SOMBRA: Eu não quero alongar-me Nós já devíamos ter saído de cena. (Faz tenções de sair de cena. LUCY segura-lhe na mão a impedi-la.)
LUCY PET: Por favor, não me deixe sem resposta!
MÃE-SOMBRA: Lucy, a espécie humana nasceu de um erro trágico semelhante àquele que vejo repetir-se agora. (GIRALDAsurge tristonha a um canto distanciado e ouve-as, imóvel.)
LUCY PET: Como assim? Não somos nós o fruto da evolução dos primatas?
MÃE-SOMBRA: Somos e não somos. Há milhões de anos, chegou à Terra uma raça de um planeta remoto. Eles interessaram-se por uns macacos agressivos que andavam em dois pés. Fizeram experiências para ampliar a mente desses animais.
LUCY PET: Não me diga que pertenciam a uma seita de caridade celeste!
MÃE-SOMBRA: Eles queriam penetrar nos segredos da criação. Desejavam sentir-se deuses porque também eles foram criados assim. Fabricaram os nossos primeiros antepassados por melhoramento genético; mas não conseguiram que estes saíssem à sua imagem e semelhança. O nosso sangue de macacos toscos não estava adaptado a um cérebro tão complexo. Os nossos avós-cobaias foram expulsos do laboratório a que se chamou paraíso. Os deuses-astronautas partiram e deixaram-nos entregues à nossa sorte, num mundo que se tornara estrangeiro também para nós.
LUCY PET: Esse povo deu-nos um belo empurrão.
MÃE-SOMBRA: Tenho muitas dúvidas. Eles abriram-nos os olhos, mas não nos ensinaram a ver através deles.
[LUCY PET: Talvez eles próprios não possuíssem meios para nos guiar. Sentiram-se ultrapassados pela obra que criaram.]
MÃE-SOMBRA: Fomos crianças abandonadas pelos pais demasiado cedo. Ficámos incompletos.
LUCY PET: É por isso que devemos prosseguir a tarefa do aperfeiçoamento.
MÃE-SOMBRA: E saberemos nós fazê-lo? Quem nos garante que não seremos expulsos outras vez dos paraísos experimentais, por criaturas revoltadas com a vida que para elas destinámos?
GIRALDA-SEM-AMOR: (Aproxima-se de ambas e fala para Mãe Sombra, quase chorosa, com a cara esborratada.) D. Ydaura, estou tã entristecida. O sê filho esqueceu-se de mim. Prometeu-me que eu entrava no programa dele para cantar no finali. Disse-me que em sendo a minha vez me iam chamari. Ê esperei tantas horas nos bastidoris. Por causa dos nervos, borrei a pintura e agora veio o segurança dizer que tinha de fechar o estúdio. Isto na se faz D. Ydaura. Ê estava pensando em pedir donativos prá minha operação. Apelar à compaixão do público e entretê-lo com uma cantiga. Mas já abalaram todos. (Chora. Abraça Mãe Sombra, que a consola.)
MÃE SOMBRA: Então, Giralda, tem calma. As coisas na televisão são assim. Eles mudam de planos de repente. Não podes culpar o Hélio. Ele tentou ajudar-te, mas isto foi também uma estreia para ele. Vá lá! Anima-te! Tu és uma rapariga de coragem.
GIRALDA: Ê nem rapariga sou, D. Ydaura. E nos casinos e bares tamémna me querem. Parece que os robôs andam tirando emprego aos músicos de carne e osso. Atão os artistas uniram-se e exigiram a mudança das leis em LiberAres. Agora os patrões só podem contratar robôs cantores com dedicação exclusiva. Ora na é o mê caso, que sou empregada doméstica. Na posso cantar a na ser de graça. Sendo assim mais vale estar calada.
MÃE SOMBRA: Diz-me Lucy, o que podemos nós fazer por ela?
LUCY PET: A Giralda esteve lá dentro a falar comigo. O caso dela impressionou-me. As gravações terminaram, mas temos o público do teatro que continua resistente. (Para Giralda) Porque é que não cantas para eles? No fim sempre há-de haver quem te dê uma nota. (Oferece um cartão a Giralda, que ganha novo alento.) E toma lá o contacto do meu marido Ange Roi. Ele pode ajudar-te no Instituto de Robótica.
GIRALDA: (Limpando as lágrimas.) Muito obrigada, Drª. Ê canto sim, nem que seja só prás duas!
MÃE SOMBRA: (Acena para o pessoal técnico ao fundo da sala.) Meus amigos do som e das luzes. Tenham paciência! O intervalo vem já a seguir. Olhem para a vida nova que acabámos de dar a esta pequena! Digam-me lá se não vale o esforço? Vamos, Lucy! O palco agora é da Giralda! Palmas para ela! (Ambas se afastam para um canto discreto da cena, batendo palmas, de modo a assistirem ao número musical de Giralda.)
GIRALDA: (Para o público) Obrigada mêsamoris! Com aplausos assim na preciso de baterias. Vou cantar uma música antiga da terra onde fui fêta: À Sombra de um Chaparro Vip e Jet Set. (Interpreta um funk jocoso com rap à mistura.)
refrão: À sombra dum chaparro vip e jet set
Contigo marco encontros no site da internet
À sombra da azinheira durmo a soneira global
Protege tu a cabeça que o sol não é virtual
[ e até pode ser fatal ]
O Alentejo é bué de giro
E a açorda é muita fixe
Vou à caça e dou uns tiros
E o resto que se lixe
Dinheiro a fundo perdido
Sou jovem agricultor
Comprei um jeep curtido
Não preciso de tractor
(Quem precisa de tractor ?)
Para te chamarem tia
Tu não sejas possidónia
Fora a casa da cidade
Tens de ter monte e herdade
Com piscina na parvónia
Vá para fora fique dentro
Faça deste longe perto
O turismo é um sustento
Antes qu'isto vire deserto
Vem navegar para o campo
Que a cidade é uma selva
Tenho um iate que é um espanto
Ancorado no Alqueva
fim do segundo acto |