(A figuração humana, em pose estática, mimetiza livre e parodicamente o quadro de Velázquez, Las Meninas - sugere-se que os figurinos dos actores-estátua citem o vestuário de um modo trapalhão, sem pretensões de decalque fiel. GIRALDA-SEM-AMOR, ajoelhada sob a saia para ter altura de criança, e com sapatos falsos presos aos joelhos, representa a infanta, ladeada pelas aias que são: a actriz intérprete de LUCY PET e o actor deFRANZ VON PET. À sua direita, ligeiramente mais próxima do espectador, encontra-se a anã, figurada por um ANGE ROI PET, ajoelhado também sob a saia do vestido para fingir-se mais pequeno; junto desta, está um melancólico cão de fantasia, em cujo dorso um cortesão menino assenta o pé - trata-se do CANTOR, de bandolim nas mãos. Ao fundo esquerdo da cena, um homem com um manto nobre, indeciso se entra ou não pelo umbral de uma porta, é representado por OLÍMPIO AREIA. Na esquerda média, vê-se o reverso de uma tela, porém de dimensões mais modestas do que aquela que o quadro do pintor supõe. Em fundo ao centro, HÉLIO eNÁRIAfitam o público, detrás de um vidro transparente, sentados costas com costas, ele sobre um televisor, ela sobre uma réplica aumentada do encéfalo humano. À esquerda na boca de cena, oVELHO PAIdorme aninhado a descoberto, no seu fato preto e com gorro bobo rubro de guizos, sobre um paralelipípedo formado por livros empilhados; no chão à sua cabeceira, repousa um crânio hamletiano.
A MÃE-SOMBRAentra espectacularmente em cena, envolvida por sons de cósmica ambiência e uma luminotecnia que a destaca. Traz na cabeça um capacete de astronauta e está travestida com um fato semelhante ao que Velázquez apresenta na referida pintura. Ela dirige-se até próximo do público e principia por falar enquanto máscara de actriz incorporada na personagem.)
MÃE-SOMBRA: Eu já celebrei seis décadas de palco, mas uma coisa é certa: é esta a primeira vez que entro em cena travestida de Velázquez com um capacete de astronauta enfiado na cabeça. E tudo por amor à viagem do teatro. (Para Roberto que dorme.) Tu sempre amaste o teatro e eu sempre amei as viagens. Tal como o teatro, a viagem é um sonho. Somos cativos dos nossos sonhos, mas só eles nos dão a ilusão da liberdade. (Dirige-se à tela, pousa o capacete, mune-se de um lápis a carvão, e ocupa o papel activo do pintor. No seu sonho, o VELHO PAIlevanta a cabeça e intriga-se com o que ela desenha.)
VELHO PAI: O que estás a pintar, Ydaura ?
MÃE-SOMBRA: Adivinha, se és capaz !
VELHO PAI: Posso espreitar ?
MÃE-SOMBRA: Espera aí, está quase pronto.
VELHO PAI: (Fazendo poses de modelo.) É o meu retrato ?
MÃE-SOMBRA: Não querias mais nada, meu narciso, do que uma enviada do além para te pintar as fuças de velho petulante.
VELHO PAI: Mesmo em sonhos, és muito mázinha!
MÃE-SOMBRA: Não sou nada. Olha o que eu desenhei para ti! (Vira a tela para ele, tornando-a visível ao público. A tela exibe um esboço a carvão baseado no quadro de Goya: La Maja Desnuda.)
VELHO PAI: Para uma morta que convive com os anjos, não achas que tens sangue quente em demasia ?
MÃE-SOMBRA: Tu estás é mais morto do que eu, Roberto! Olha que debaixo destas vestes, guardo o corpo arfante de Viola disfarçada e da cigana nua de Goya.
VELHO PAI: Só se for na escuridão total, mentirosa! Demónio gerado pelo sono da razão.
MÃE-SOMBRA: Sim, sim, chama-me demónio da carne que vem incendiar os teus delírios de viúvo abstinente. A Lilith desgrenhada e lúbrica que te salta sobre o leito.
VELHO PAI: Pois, estou a ver-te na pele do monstro nocturno que enlouquece os homens solitários.
MÃE-SOMBRA: E se sou um monstro, irei mesmo estrangular-te, pôr-te a dormir para sempre.
VELHO PAI: (As luzes de cena apagam-se e ouve-se-lhe a voz e os gemidos.) Ó mulher tu não me mates que sou o teu marido... Ah, mas se a morte for assim que venha ela muitas vezes. Estrangula-me todo, Lilith danada, agora!... Agora !...
(As luzes acendem-se. AMÃE-SOMBRAe os actores-estátua rodeiam com interesse divertido o despertar molhado do VELHO PAI.)
Olhem para isto! (Leva a mão à braguilha para avaliar a nódoa.) E eu a julgar que já não tinha idade para sonhos húmidos. Pareço um adolescente acabado de ordenhar. Preciso de ir lá dentro ver se me limpo.
GIRALDA: (De uma bolsinha que retira do colo do vestido, oferece-lhe um toalhete.) Ó sr. Roberto, pegue lá num toalhete!
VELHO PAI: (Atrapalhado.) Obrigado Giralda, mas só um não me vale de nada.
GIRALDA: Atão pronto, na se esteja agastando, fique lá com eles todos! Dizem na minha terra que um homem atrapalhado é pior que uma mulher bêbeda. (Dá-lhe um pacotinho para as mãos.)
VELHO PAI: (Vai falando durante a saída de cena.) A minha Ydaura é que me apronta destas. Quer-me fazer crer que nem a morte nos separou por completo.
GIRALDA: Ela mesmo morta tem-lhe muito amori.
VELHO PAI : (Enquanto se limpa, consulta o relógio.) Ora esta, está quase na hora do programa do Hélio. Por pouco deixava-me dormir.
MÃE-SOMBRA: Por isso é que eu te acordei, meu velho tonto. (Dirigindo-se para todos os outros.) Caros amigos, toca a sair do palco! Vocês têm de mudar de roupa, mas eu não. A fábula a seguir só tem papéis para gente viva. (Os actores-estátua saem e ela fica para trás, numa última tirada para o público.) Mas eu hei-de regressar no fim do drama. (Sai de cena.)
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