(OVELHO PAI dorme numa cadeira de baloiço e veste de preto num fato comum. Junto dele há uma secretária desarrumada com livros empilhados e um monitor de computador. De pé, a MÃE-SOMBRA rodeia-o, trajando uma túnica púrpura e, embora tratando-se de uma personagem espectral, as suas faces pálidas não são cadavéricas. Quando o palco se ilumina, ela deixa entender que foi apanhada desprevenida.)
MÃE-SOMBRA: (Fala para o seu viúvo e abana-lhe a cabeça.) Acorda, Roberto! Acorda! Já aqui estão as pessoas. Tinhas de ser tu a falar primeiro, para ambientar os espectadores a esta história! (OVELHO PAIremexe-se na cadeira mas cai no sono, e ressona, outra vez.) Como é que eu vou despertá-lo? A idade tem-lhe dado um sono tão pesado. (Ríspida.) Roberto! A dormir assim não cumpres a função dramática!... E não adianta abaná-lo porque ele não sente nada. (Atrapalhada, para o público.) Pois... Não percebem, não é? Não era suposto eu estar no palco. Mas agora, paciência... Ah! Como é que eu vou dizer isto? Eu pareço viva, não é? Mas não passo de uma ilusão teatral. Eu já estou morta há muitos anos. Perfeitamente morta! Sou aquilo a que se chama um fantasma. Mas por favor, não me confundam com uma alma penada, dessas que por aí andam a fingir para si mesmas que respiram e que comem e... o resto. Não! eu estou aqui por escolha própria, mas não foi fácil obter o visto de exilada. Porque vou contar-vos uma coisa: a gente nem depois de mortos se livra da burocracia. O martírio continua... É certo que não há dinheiro deste lado, não temos de pagar IRS, não há multas por excesso de velocidade, mas... é tanta a negligência, que só no mundo dos vivos se vê coisa parecida. Os anjos da guarda não dão conta do recado. São poucos em número e, depois, contam-se pelos dedos os que são realmente competentes. A maior parte anda a esvoaçar na cauda dos cometas, em turismo inútil. E se uma alma briosa os chama à razão, eles respondem logo que têm a eternidade toda para fazer o que devem. É um deixa andar que se reflecte em tudo. Se não, olhem para o meu caso. Sofri na Terra uma morte horrível e vim descobrir aqui que morri por engano. Um anjo de terceira classe baralhou o código das invocações e, em vez de chamar uma velhota que se enforcou no asilo, fez-me morrer a mim com uma doença fulminante. E imaginem, mal cheguei em forma de alma a esta dimensão, já os anjos de terceira classe queriam abafar o erro do colega, para evitar a despromoção do safado. Trataram logo de maquinar para mim uma encarnação à pressa numa civilização extraterrestre. Mas eu revoltei-me. Fui queixar-me ao anjo mais luminoso que encontrei e tive sorte. Era um arcanjo de categoria, dos poucos que recebem ordens directas do patrão celeste. Intercedeu por mim e acabaram por conceder-me uma indemnização. Deram-me um livre trânsito até o Roberto terminar os seus dias. (Pausa.) Mas agora não consigo acordá-lo. Vou tentar mais uma vez; não me dou assim por vencida. (Concentra-se e coloca as mãos na cabeça do VELHO PAI. Manifesta satisfação.) Ah! Já está... (Ela vai distanciando-se progressivamente ao olhar para oVELHO PAI até sair enquanto este acorda.)
VELHO PAI : (Bocejae olha em seu torno.) É estranho! Pareceu-me ouvir alguém. Seria a mulher da limpeza? Giralda! És tu Giralda? Não, ela ainda não veio... Mal vão as coisas quando um tipo começa a ouvir vozes! (MÃE SOMBRA ri-se do embaraço dele e sai de cena. O VELHO PAIlevanta-se com alguma dificuldade e parece procurar um papel qualquer na secretária. Agarra finalmente num sobrescrito, abre-o, lê-o com brevidade para se certificar, volta a dobrar o papel e mete-o no envelope. Com a carta na mão, regressa em direcção à cadeira de baloiço; junto desta encontram-se duas outras cadeiras vazias sobre uma das quais está enrolado um cobertor. Pega no cobertor e volta a sentar-se na cadeira inicial, agasalha-se com ele, não tendo largado das mãos o envelope.)
Há muitos anos que o meu filho não me escrevia... Mas todas as semanas falamos por videofone. Aparece no ecrã a dar-me as boas-noites, interroga-me sobre o estado dos meus ossos e da máquina cardíaca. Respondo-lhe quase sempre o mesmo. Nunca há grande coisa a dizer. A manutenção dos velhos melhorou muito no século XXI, mas o segredo para a vida eterna ainda não foi inventado; também se o fosse era uma grande maçada. Vem uma altura na vida em que tudo parece uma repetição menor do que passou. Mas, enfim, eu sei que nem todos os velhos são como eu... E ainda bem... (Pausa.Olha insistentemente para o envelope, acariciando-o entre os dedos.)
Desta vez fiquei emocionado. O Hélio escreveu-me uma carta... das antigas, daquelas que recebemos na caixa de correio. A maioria dos vizinhos já não tem caixas dessas. Eu nunca me desfiz da minha. Sempre gostei de receber cartas, do entusiasmo de rasgar o envelope, adiando o momento de saber o que lá vem dentro. (Irónico.) É evidente que não estou a pensar nas contas domésticas ou no lixo publicitário. (Continuando em tom trocista.) O Hélio deve querer pedir-me alguma coisa. Na carta diz que tenciona visitar-me em carne e osso. Se fosse para me apresentar uma namorada nova, não precisava vir a propósito de Berlim; bastava o videofone para que eu visse a cara da rapariga a acenar para um velhote que nunca a viu mais magra. Se bem que isto hoje das viagens é tudo num instante [: metemo-nos nas cápsulas subterrâneas, que são comboios enxertados em foguetes, e damos volta e meia ao planeta em menos de nada.] (Pausa.)
(Para o público.) Mas vocês não vieram do passado só para ouvir as tolices de um velho do futuro. A Terra mudou muito desde há cem anos. Começou nos desastres climáticos. Depois deixámos de poder viver ao ar livre. Foram anos terríveis, em que uma exposição ao sol de um quarto de hora podia custar-nos a vida. Os terrenos incultiváveis, onde nem ervas rasteiras resistiam, os lençóis de água envenenados, a situação de caos social e de pilhagem reduziram drasticamente o número dos vivos. Apenas uma minoria no planeta teve meios para se refugiar no subsolo. Eu escapei vivo e não adianta sentir-me culpado por todos os que morreram em meu lugar. Se eu avaliasse a culpa, seria esmagado por ela, só pelo facto de respirar este ar potável, emanado pelas estações de tratamento. (O olhar perde-se, vazio, num rosto opaco, inexpressivo. Do lado oposto onde se encontra o VELHO PAI, entram em cena duas personagens: HÉLIOeNÁRIA, vestindo fatos futuristas de passeio, com cores vivas, fluorescentes. Caminham e param hesitantes, como quem procura uma casa ou uma rua numa cidade que não visita há muito.)
HÉLIO: Já não tenho a certeza se é este o caminho. As casas desta zona são tão semelhantes.
NÁRIA: Tinhas obrigação de conhecer isto melhor!
HÉLIO: Passou tanto tempo e a traça do bairro já não é a mesma.
NÁRIA: Temos de perguntar a alguém. Eu nunca cá estive.
HÉLIO: Onde é que está o mapa?
NÁRIA : Sou eu que o tenho. (Desdobram o mapa e percorrem-no com os olhos.. Ficam estáticos na semi-obscuridade.) MÃE-SOMBRA surge, observando-os muito interessada e curiosa, especialmente por NÁRIA. Para este fim, retira mesmo uns óculos de uma bolsa, limpa-os à sua túnica e coloca-os para apurar a vista.)
MÃE-SOMBRA: (Para o público.) Um fantasma também precisa de óculos. É a força do hábito. (Avaliando viperinamente NÁRIAcom os olhos.) A rapariga é engraçada, mas o Hélio já teve namoradas mais bonitas. Pode ser que ela o cace a valer. O meu filho não é animal de cativeiro, mas esta miúda tem fibra. Tão jovem ainda e já é nome de destaque nos meios científicos. E depois, sempre há-de necessitar de um jornalista bem colocado para divulgar as suas pesquisas. (Ri-se de si mesma.) Mesmo morta não deixo de ser mãe-galinha. E não resisto a confessar-vos uma coisa: fui eu que fiz com que eles se cruzassem numa festa social, no primeiro dia em que se conheceram. O resto esteve a cargo deles... eu só dei o empurrão inicial. (Repara neles, ocupados que estão em decifrar o mapa.) Tenho de ajudar aqueles tontos. É uma vergonha o Hélio não se lembrar do caminho de casa. (Aproxima-se GIRALDA-SEM-AMOR, um atraente autómato feminino de mini-saia e pernas cor de metal. Desloca-se com segurança bamboleante e tem um rosto maquilhado e humaníssimo. Fala com acentuado sotaque alentejano.)
GIRALDA-SEM-AMOR: A senhora vem tã branquinha. Está-se sentindo bem?
MÃE-SOMBRA: Ó filha, como é que tu me podes ver? Então agora os andróides também falam com os mortos? (Para o público) Vocês olhem só para isto? A tecnologia evolui tão depressa que até um fantasma fica desactualizado.
GIRALDA: Não se apoquente D. Ydaura. Ê sou caso raro. Tive uma avaria a lavar o chão, na casa da senhora, salvo seja. Escorreguei na esfregona e caí de cabeça no balde cheio de água. Entrou-me lixívia para a caixa dos pirolitos. E o homem da oficina a consertar-me trocou-me os fusíveis. Agora tou assim que falo com vivos e mortos. Sou com’ós telemóveis. Apanho todos os comprimentos de onda. A minha cabeça é cá um burburinho...
MÃE SOMBRA: Ai coitada! Calculo... Eu já te tinha visto lá em casa um dia destes, a limpar as janelas.
GIRALDA: Trabalho à do senhor sê marido vai pra quinze dias, mas tive de meter logo baixa por causa da queda.
MÃE SOMBRA: E já recuperaste totalmente?
GIRALDA : Agora tou fina que nem um prego.
MÃE SOMBRA : Como te chamas? e quem é que te fabricou?
GIRALDA: Giralda-sem-Amori, uma criada prá serviri. Sou um produto da Tecnogates, e fui montada na fábrica do Redondo. Pertenço a uma série especial de andróides rústicos. (Orgulhosa) Os robôs como eu foram criados pra manter a tradição do sotaque alentejano. Toda ê sou uma paisagem protegida.
MÃE SOMBRA: Mas porquê o nome de Giralda-sem-Amor? Soa tão triste numa moça bonita.
GIRALDA : (Subitamente desolada) E é mesmo uma desgraça, minha senhora. Houve um engano na linha de montagem e ê saí defeituosa. Só sou mulher da cintura para cima. Tenho umas maminhas perfeitas e uma barriga torneada, mas daqui para baixo (faz o gesto), é só fios e microchips. Fiquei por acabar. Sou como aquelas bonecas antigas, com um buraco pequenino que só serve para fazer chichi. Ê sei que sou jeitosa. Mas basta ê contar a razão do mê nome, fogem-me logo os homens todos, os de carne e os sintéticos. É uma tragédia a minha vida. E ê que tenho um coração de açúcre, e choro baba e ranho a ver as novelas.
MÃE SOMBRA : Ó Giralda, e tu não reclamaste junto da fábrica?
GIRALDA : Ó minha senhora, se reclamei. Até fui fazer greve da fome à porta do directori. Deixei as baterias em casa mas de nada me valeu. Eles sabem que os robôs na morrem à míngua, se estiverem dentro da garantia.
MÃE SOMBRA : A Tecnogates é uma multinacional de prestígio. Tem de haver solução para o teu caso.
GIRALDA : Haver há, mas êna lhe chego. Eles dizem que me tinham de desmontar todinha e voltar a construir-me de novo, peça por peça. E isso custa muito dinhêro. Só pode ser feito no estrangero. Com o que ê ganho nas limpezas, os bancos na me emprestam nada de jêto. Estou condenada a ser sozinha. É este o mê destino.
MÃE SOMBRA : Mas tu não desistas, Giralda. Luta por aquilo a que tens direito. Já te inscreveste no sindicato dos andróides?
GIRALDA : Fui lá hoje mesmo buscar o mê cartão. Eles vã pôr uma acção por mim na justiça. Êna sou de me atrapalhar, na senhora. Sou uma moça animosa, cheia de vida. Gosto muito de cantari. Quando ando mais triste canto pra esquecer os males. Tenho muita fé no que há-de viri, (refere-se ao público) assim como a estes senhores que nos vieram veri. (Olha para o relógio.) Ai, mas agora tenho de ir indo. Está na hora da limpeza à do sê marido. Ele esfola-me se ê chego atrasada, depois de faltar tantos dias.
MÃE SOMBRA : Então fazes-me um favor. Indicas o caminho de casa àqueles dois jovens que estão ali às voltas com o mapa.
GIRALDA : Com certeza, D. Ydaura. Ah! Na me diga que é o sê filho mais a namorada nova? (Ydaura dá um sorriso de assentimento. Giralda embasbaca-se a olhar para Hélio e Nária.) Sã tã queridos. O sê marido bem me disse que eles o vinham visitari. (Olha o relógio outra vez.) Tanto que ê gostava de ficar aqui na cavaquêra consigo, mas na posso, na senhora...
MÃE SOMBRA : Vai Giralda, não te atrases. Tive muito gosto em conhecer-te.
GIRALDA : Ê também, acredite. A senhora está-me no coração. (Giralda dirige-se a Hélio e Nária. Ydaurafica a segui-los com o olhar por mais algum tempo.) Atãovossemecêsestã perdidos? Quem é a pessoa que andam buscando?
HÉLIO : A senhora mora por estes lados?
GIRALDA : Ê não, na senhori. Mas faço a limpeza em duas casas do bairro [do Bacelo] (1). Agora vou fazer umas horas à do senhor Roberto, que vive na rua do lado. Se na estou errando, é ele o sê paizinho...
NÁRIA : Como é que você sabe isso?
GIRALDA : Ora menina, quantas vezes na limpei eu o pó ao retrato deste maroto? Venham comigo, que ê sou mulher de paz.
HÉLIO : Olha que sorte!
NÁRIA : (Curiosidade científica) Nunca tinha visto ao vivo um andróide étnico de última geração. Em que ano é que você foi fabricada?
GIRALDA : (Melindrada) Ora essa, menina, na fica nada bem perguntar a idade a uma senhora. Ê sou máquina mas sou muito sensível.
HÉLIO: (Apontando o pai.) Repara, Nária, vês aquele homem na varanda, sentado na cadeira de baloiço? É ele o meu pai.
NÁRIA: Mantém o perfil de uma forte personalidade, e pelo que dele vejo, não creio que o consigas convencer...
HÉLIO: Os cientistas não devem tirar conclusões precipitadas!
NÁRIA: Não é conclusão, é apenas hipótese...
GIRALDA: Veja só senhor Roberto, quem ê trago hoje comigo! Se na fosse a Giralda a guiá-los, nunca mais cá chegavam.
HÉLIO: (Guardando alguma distância do VELHO PAI, chama por ele, como se este estivesse numa varanda.) Pai! Pai! Ainda me reconheces a voz?
VELHO PAI: Não só te conheço a voz como a figura, ou não tivesse eu um belo par de olhos sintéticos da melhor marca que há no mercado. Mas subam os dois, vá lá! (Aproximam-se e cumprimentam-no, beijando o VELHO PAI.) E tu, Giralda, já estás boa do acidente?
GIRALDA: Estou pronta pra outra e já venho atrasada. Mas a culpa foi das suas visitas. Vou mudar a vestimenta. A minha lida espera-me. (Para Hélio) É pra isso que o sê pai me paga. (Sai de cena.)
VELHO PAI: A Nária é mais bonita ao vivo do que no écrã do videofone.
NÁRIA: Ora, ora, isso é simpatia sua ou então - ( ri-se ) - é porque tem os olhos mal focados.
HÉLIO: Sabes que custei a descobrir o caminho de casa. Andámos por aí às voltas sem destino. As ruas estão muito transformadas.
VELHO PAI: É de não vires cá há muitos anos, Hélio. O tempo rói-nos a memória como um rato vadio. (Registo rápido e coloquial.) Mas não fiquem de pé como duas estátuas! (HÉLIOeNÁRIAsentam-se nas cadeiras.)
NÁRIA: (Referindo-se aHÉLIO.) O que ele precisa é de tomar umas cápsulas contra a amnésia.
VELHO PAI: Cápsulas, cápsulas, é delas que todos nós dependemos. (Breve pausa.) Digam-me lá então, que causa foi essa que vos fez sair duma cidade onde o futuro se fabrica, para virem visitar um velho no exílio alentejano?
HÉLIO: O meu pai continua com a eloquência de sempre. (Falando paraNÁRIA.) Parece que estou a ouvir de novo os discursos que fazia quando eu era pequeno. Eu não percebia a maior parte das palavras, mas achava que elas tinham muita importância.
VELHO PAI: E se calhar não tinham, Hélio. Um dos meus erros foi ter acreditado demasiado na força das palavras. Vivemos entre os papéis e as ideias e um dia descobrimos que falamos e escrevemos para ninguém. A plateia está vazia porque as pessoas preferiram outra distracção e nós continuamos a falar para nos convencermos de que não perdêmos ainda o uso das palavras.
NÁRIA: Mas esse é um medo que o senhor não tem razão para sentir. Posso afirmá-lo porque já li obras suas.
VELHO PAI: (Vaidosamente grato.) Obrigado pelo calor das suas palavras. A Nária é uma mulher de ciência com intuição para frases definitivas.
HÉLIO: E dizias tu, pai, que te arrependias de dar importância às palavras! Isso é mesmo manha de literato, sempre a fazer figuras de estilo.
VELHO PAI: (Fingindo ressentimento.) Já estavas há muito tempo ao pé de mim sem me lançares uma piada seca.
NÁRIA: Vá lá, eu não quero ser o foco da discórdia. Vocês não se encontram há tanto tempo. E eu nunca tinha estado em Évora. Vou dar um passeio pela zona antiga enquanto conversam. (Levanta-se da cadeira onde se encontra.)
VELHO PAI: Acho uma óptima ideia, melhor do que aturar as nossas birras.
[NÁRIA: Vou dedicar o fim da tarde às construções de pedra, que fazem da cidade um lugar secreto. Volto daqui a um par de horas, para irmos jantar a uma casa típica.]
VELHO PAI: Aconselho a Nária a tomar o teleférico.
HÉLIO: Não te demores muito porque temos de partir ainda hoje.
VELHO PAI: Já tu estás com as pressas. Eu estou curioso em saber das últimas descobertas sobre o cérebro humano. [Devem ter muito mais interesse do que os teus jornalismos televisivos.]
NÁRIA: (HÉLIOvai ripostar, masNÁRIAaperta-lhe no braço, com cumplicidade, tranquilizando o VELHO PAI.) Eu terei o maior prazer em informá-lo das minhas pesquisas. Falamos ao jantar. Até logo! (Sai de cena.)
VELHO PAI: Tens aí uma mulher a valer. Vê lá não lhe faças o mesmo que fizeste às outras!
HÉLIO: Eu não te nomeei para conselheiro sentimental.
VELHO PAI: Também seria escusado. Tens mais rodagem do que eu nesses campos. (Pausa.) Mas desabafa lá que isto torna-se monótono. Quero eu saber a razão da vossa viagem e querem estas pessoas (Refere-se ao público.) que vieram do passado e pagaram para estar aqui.
HÉLIO: Estamos decididos, eu e a Nária, a deixar de vez o planeta Terra.
VELHO PAI: (Irónico.) Com a cabeça na lua andas tu desde que nasceste.
HÉLIO: Estou a falar a sério, pai...
VELHO PAI: E eu tenciono ouvir-te. Mas diz lá, se vão sair do planeta, têm três alternativas: ou vão viver para Luna Nova, a estação orbital mais antiga, que gira entre a Terra e a Lua; ou instalam-se em Blue Moon, a primeira colónia fixa do nosso satélite natural; ou então escolhem a recente LiberAres, que prospera na órbita de Marte. [Como vês, o teu pai não perde um pormenor da colonização do espaço.]
HÉLIO: Assim já nos entendemos. Optámos pela última das hipóteses. LiberAres é a mais atractiva das comunidades espaciais. Tem uma dinâmica impressionante. É um estado democrático composto por gente de espírito pioneiro, transracial, poliglota...
VELHO PAI: E tu acreditas nessa utopia... Nas sociedades nunca vinga a lei do maior número mas sim de quem detêm maior poder. [Sempre assim foi, e essa república das estrelas não vai fugir à regra.]
HÉLIO: Conheço uma maneira para amaciares o cepticismo!
VELHO PAI: Sou todo ouvidos ...
HÉLIO: Vem connosco para LiberAres! não digo de forma permanente, mas numa estadia temporária, e poderás confirmar com os teus olhos biónicos se as tuas teorias estão certas ou erradas.
VELHO PAI: As estadias são sempre temporárias. E com a minha idade, não me apetece fazer de emigrante espacial. Se gostas de me ter por perto, para te contrariar com as minhas ideias, basta ligares o videofone. Na tua profissão recebes o bastante para pagar extravagâncias.
HÉLIO: (Com algum nervosismo, levanta-se da cadeira.) Eu gostava que visitasses uma realidade diferente da que sempre conheceste. (Muda de tom.) Mas há uma razão forte que me leva a fazer-te este pedido. O planeta Terra corre um grande perigo, pai, e nele não há sítio seguro.
VELHO PAI: Mais perigos, filho, do que a Terra correu no século passou?... Já nada me assusta. Desde a degradação da atmosfera e dos solos, quando tudo o que comíamos ou bebíamos podia ser uma sentença de morte. Com o horror de sairmos à rua de dia e o sol cegar os olhos ou enlouquecer as células. E quando o terrorismo começou a usar armas nucleares, aumentaram mais ainda os níveis de radiação... e foi a tua mãe, a minha Ydaura, uma das vítimas, morrendo-me nos braços com o sangue a desfazer-se... (Pausa.) Não precisas vir de Berlim para falar-me de perigos mortais. Estou acostumado a eles, fazem parte da minha vida.
HÉLIO: (Voz ferida.) E da minha também. (Pausa) Calculei que me fosses falar assim. (Pausa)
Os centros de decisão política sabem-no. A divulgação tem sido cautelosa para evitar o pânico. Não se conhece a data concreta, mas aproxima-se um asteróide, com as dimensões do planeta Mercúrio, que irá colidir com a Terra. Os efeitos serão devastadores. Não sabemos se o nosso planeta aguentará na órbita ou, no pior dos casos, se poderá fragmentar. Livre de perigo só estará LiberAres, a única comunidade que, no mais grave dos cenários, assegurará a continuidade da espécie humana.
VELHO PAI: Então está explicado o interesse frenético dos investidores por esse país marciano. Acho que fazes bem em optar por um sítio com futuro. (Pausa.) Asteróides à deriva são objectos que não me tiram o sono. Foi um bom argumento para filmes de série Z, mas já está muito visto.
HÉLIO: Deixa-te de indiferenças. É a tua vida que está em jogo, se continuas neste planeta com os dias contados.
VELHO PAI: Não me convences. E quanto à minha vida, já pouco valor tem ela. Tal como a Terra, também eu tenho os dias contados...
HÉLIO: (Alarmado.) Porquê? Sofres de alguma doença grave?
VELHO PAI: (Agastado.) Sofro sim, filho. (Pausa) A minha doença chama-se... vida, em estado muito, muito avançado. Mais dia menos dia tem o desfecho que se sabe.
HÉLIO: Assustaste-me!
VELHO PAI: Na tua idade ainda se sente um medo verdadeiro. Eu já não tenho pachorra para isso. Exilar-me para salvar a pele, na minha idade, é uma decisão ridícula.
HÉLIO: Gostava que viesses connosco, mas não me parece que mudes de ideias.
VELHO PAI: [Eu estou de acordo com aquilo que escreveu Herberto Helder, um grande mago da poesia - olha tenho aqui a frase mesmo à mão: (Lê na folha de um pequeno bloco-notas, ou no monitor da secretária.) «Viajar é idiota. Bom para a crassa primeira juventude. Também para os homens de negócios e os intelectuais que vão escrever livros de viagens ou fazer conferências (...)» (2)*. Ora eu escrevi livros, mas nunca de viagens e para as conferências, mandava o texto por e-mail para outros lerem. A ausência impressiona sempre mais do que o corpo presente.
HÉLIO: (Divertido.) Sempre foste um grande vaidoso!
VELHO PAI: Vaidade que tu herdaste, senão não terias escolhido a televisão.] Que vais tu fazer nos écrãs marcianos?
HÉLIO: Vou trabalhar na TvPhobos, o canal de maior audiência em LiberAres.
VELHO PAI: Sei bem qual é.
HÉLIO: O meu primeiro programa na TvPhobos vai ser com uma dama vip de LiberAres. Irás divertir-te. Eu aviso-te quando for para o ar.
VELHO PAI: É com orgulho que sigo o teu trabalho. Lá por estares em Marte e eu na Terra, não há motivo para que haja guerra dos mundos. (Giralda entra em cena com olhar comprometido.)
GIRALDA-SEM-AMOR : Vossemecês vã desculpar-me mas ê estive escutando a vossa conversa. Na foi por quereri. Calhou ê estar ali a aspirar o chão da entrada e na pude tapar os ouvidos. A culpa é do diabo do aspiradori. Sã tã silenciosos que a gente dá metícia de tudo.
VELHO PAI : Ó Giralda, isso é muito feio. Mas já que assim foi, diz-me uma coisa: também me queres enviar para o espaço?
GIRALDA : Nasenhori. (Embaraçada) Ê na sê como dizeri... mas cá vai. Ó senhor Hélio, eu é que quero iri. Leve-me consigo e com a drª. Ê sou muito habilidosa. Sê fazer de tudo numa casa e o que na saiba os senhores compram o programa, e instalam-me aqui atrás (Mexe na nuca.), que ê memória na me falta.
HÉLIO : Tu, Giralda? Então e depois quem é que trata do meu pai?
GIRALDA : Ora robôs como eu estã sendo montados às dezenas na fábrica do Redondo. Basta a gente encomendari.
HÉLIO : Mas porquê esse desejo de te ires embora? Ficaste com receio do asteróide. Não és feliz aqui na terra?
GIRALDA : Feliz eu? Vê-se mesmo que na sabe nada da minha vida... Pedras do espaço na me metem medo.
VELHO PAI: A Giralda quer fazer uma operação complicada que eles aqui no Redondo não podem realizar. (Em meia voz) Ela tem um defeito de fabrico. Esqueceram-se de lhe fazer o sexo.
HÉLIO : Ah, coitada...
GIRALDA : A fábrica-mãe da Tecnogates funciona em LiberAres. É por isso que ê queria ir convosco. Na vos dou encargos porque os robôs podem embarcar como bagagem. E eu em qualquer canto me acomodo.
VELHO PAI: Mas mesmo se fores com eles, Giralda, como pensas tu pagar a cirurgia? Não podes pedir ao Hélio que te pague a despesa!
GIRALDA: Modéstia à parte, ê sou muito talentosa. Na me fizeram vagina mas deram-me uma voz afinada. Ê posso ganhar dinheiro nos casinos de LiberAres. Até já estou avistando os cartazes: Andróide alentejano dá show musical para mudar de sexo! Vejam lá se isto na chama a freguesia? (Descarada e cúmplice) E o senhor Hélio há-de ajudar-me metendo umas cunhas para ê ir aparecendo na tv marciana.
HÉLIO: Tu és uma espertalhona. E como é que tencionas convencer a Nária? Olha que ela é dura de roer.
GIRALDA: Ê bem vi o interesse dela em estudar o mê corpo. Ê sei que sou o último grito da robótica. A sua namorada há-de querer fazer experiências comigo. Desde que na me estrague mais do queó que ê estou, ê consinto em que faça uso de mim.
VELHO PAI: Vês Hélio, valeu a pena cá vires. Em vez de mim, levas esta jovem automática. Perco a empregada, mas se ela voltar um dia há-de ser na forma de uma super-mulher arrasadora. (Ri.)
GIRALDA: O sê pai é um malandreco...
(As luzes de cena deixam de incidir sobre eles, tornando-se os três presenças estáticas. Do fundo do palco emerge a MÃE-SOMBRA.)
MÃE-SOMBRA: (Fala para eles.) Força Giralda! estás a um passo de resolver o teu problema, e tu, Roberto, agiste bem. Não precisei acenar-te com um apelo dos meus. O teu lugar é este e a breve trecho os dois nos cruzaremos. Pouco falta para tal encontro. [(Pausa. A emoção transfigura-a.) Se os fantasmas pudessem chorar, Roberto, eu teria chorado quando falaste da minha agonia... Lembro-me desse dia, revejo-o como um video velho cujas cores se gastam a cada rodagem da fita. Encerrados num veículo, fomos os três para o campo, tu, o Hélio e eu. Mas para quê se o campo desse tempo era um cemitério mineral? Um entardecer de Primavera estranha para vocês (Refere-se ao público.), que chegaram do passado. Aventurámo-nos por zonas interditas ao tráfego humano. As cúpulas protectoras não estavam ainda de pé. Árvores carcomidas de carvão, espoliadas de folhas, como cactos de um deserto que eu pintara. E com mais uns quilómetros, avistavam-se as espumas amarelas do mar. Os gelos derretidos dos pólos devoravam, dia a dia, o mapa antigo das costas ibéricas. O carro trancado era uma fortaleza estanque. Parvos os meus olhos julgaram avistar flores vivas na berma da via. Não sei o que sucedeu comigo... num ataque de demência, adivinhei algo a brotar na tela mortal da charneca. Roubei o comando de segurança do carro, das tuas mãos fechadas.... Por momentos saí da viatura, pus em perigo as vossas vidas e condenei a minha. E não eram flores que eu vira, apenas pedras brancas na orla da auto-estrada. Chorei ruidosamente o resto da tarde e a minha morte sobreveio em escassos dias. (Pausa.) Nunca me culpaste, Roberto, pelo meu acto tresloucado. Não desejava morrer... muito menos abandonar-vos, mas desafiei a morte de um modo infantil. A criança em mim quis colher flores e estiraçar o corpo na relva de Maio inexistente. Contaste às pessoas conhecidas que tínhamos sofrido uma grave avaria no sistema de ventilação do automóvel. A tua mentira evitou que censurassem o meu gesto suicida. (Pausa.) Promoveste exposições com os quadros que pintei.] Cuidaste da minha memória de artista como quem rega uma estufa que floresce. Em troca dou-te sonhos onde eu te apareço. E é este o sonho preferido que planto no teu espírito. Com ele te habituarás à tua morte. (Da esquerda para a direita da cena aparece a deslizar muito lentamente o simulacro de uma barca esguia, num plano ligeiramente mais elevado face ao nível onde se movem as personagens; de modo que duas escadas em cada umas das extremidades da gôndola se articularão a certa altura para nela tomarem assento, quando a texto o explicitar,O CANTORbarqueiro, surgido em cena, e aMÃE-SOMBRA, respectivamente à direita e à esquerda na canoa, do ponto de vista do espectador.) Somos uns clássicos, Roberto, nada como a barca de Caronte para nos vir buscar. Por agora vês-me sozinha nela. Subo e tomo assento nessa gôndola da Veneza dos mortos. (Uma vez na barca, a MÃE-SOMBRAsenta-se mas O CANTORmantem-se de pé, pousa a lanterna, e pega num remo em gesto parado de remador.) O barqueiro não se limita a remar, também canta, como tu cantavas ele canta. E entoa no sonho sempre a mesma melodia que um dia compuseste para um soneto de Florbela.
O CANTOR: (Interpreta uma canção cujas palavras são o poema Minha Terra / Pobre de Cristo, de Florbela Espanca. Depois disso, a barca some-se pelo lado direito da cena, levando consigo a MÃE-SOMBRA.)
«Ó minha terra na planície rasa,
Branca de sol e cal e de luar,
Minha terra que nunca viu o mar
Onde tenho o meu pão e a minha casa ...
Minha terra de tardes sem uma asa,
Sem um bater de folha ... a dormitar ...
Meu anel de rubis a flamejar,
Minha terra mourisca a arder em brasa !
Minha terra onde meu irmão nasceu ...
Aonde a mãe que eu tive e que morreu,
Foi moça e loira, amou e foi amada ...
Truz ... truz ... truz ... Eu não tenho onde me acoite,
Sou um pobre de longe, é quase noite ...
Terra, quero dormir ... dá-me pousada !» (3)
Fim do Primeiro Acto
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